Prólogo

2447 Words
Caótico. Este era o termo que melhor representava o ambiente atual em que Emilly e seus familiares se encontravam. O relógio marcava exatamente 16h30m do dia 24 de dezembro e boa parte dos preparativos para a ceia, ainda estavam em andamento. Enfeites coloridos encontravam-se espalhados pelo extenso quintal. Crianças corriam de um lado para o outro, causando desordem e alvoroço. Homens perambulavam entorno da varanda, pendurando pisca-piscas defronte a residência e o cheiro delicioso de quitutes natalinos emanava da cozinha, onde as mulheres batalhavam para terminar tudo a tempo. Os ruídos provocados pela grande família eram tão altos que sobrepunham a melodia gostosa de It Must Have Been Love, repercutida através dos alto-falantes da JBL azul presenteada a protagonista em seu último aniversário. Naquele ano, o natal seria comemorado na casa dos patriarcas da família Smith e todos os membros, além de convidados, contribuíam de alguma forma. Estavam todos muito empolgados para a chegada do crepúsculo e o início da festividade. Cumpriam com esmero as suas tarefas, apesar da correria envolvendo o término do trabalho pesado. No entanto, um dos familiares não parecia satisfeito com a sua parte… Emilly! Sendo a mais velha da última geração, a garota ficou responsável pelos pequeninos. Não era uma tarefa absurda, tinha que concordar; mas manter aqueles pentelhos em ordem quando estavam reunidos chegava a ser desgastante, exigia muito esforço e paciência — virtude ao qual não fazia parte de seus domínios. Largada em uma espreguiçadeira de madeira localizada a noroeste do jardim bem cuidado, a menina vigiava os miúdos, vez ou outra, enquanto lia pela quarta vez seu exemplar surrado de "O Jardim Secreto". Em meio a diversão, as crianças não perceberam quando o tio — Joel — puxou uma parte do pisca-pisca esparramado pelo chão, fazendo com que os fios se bagunçassem e formassem um labirinto, interferindo na brincadeira. Embora os maiores tenham se desviado da serpentina colorida com tranquilidade, os menores não obtiveram o mesmo êxito, o que acabou ocasionando em um pequeno acidente. — Que ótimo... Eu não pedi a vocês para pararem de correr? — Repreendeu Emilly, se aproximando das crianças que caíram após tropeçar no emaranhado de fios. A jovem as ajudou a se livrar dos enfeites multicoloridos e bufou, enquanto os advertia. — Deveriam ser mais cuidadosos, o que aconteceria se os fios estivessem ligados e se rompessem? Ou então se no lugar dos pisca-piscas, houvesse uma caixa cheia de tachas e agulhas? — A mão na cintura e as sobrancelhas franzidas, traziam a jovem um ar imponente sobre as crianças, exceto para a sobrinha. Helena, a garotinha de apenas três anos, não aparentava dar a mínima para o tombo que levara ou para a bronca que recebia, porém, foi só notar a mancha ensanguentada que se formara em um dos joelhos, para abrir o berreiro. — Não, não, não... — Murmurou a mais velha um tanto nervosa, se ajoelhando ao lado da menina. Detestava ver alguém chorando. — É só um raladinho, não precisa chorar. — Enxugou as lágrimas da pequena e se assentou sobre os calcanhares para averiguar melhor a situação. — Veja só, vou te ensinar um truque. Emilly ergueu a perna gordinha próxima aos lábios, soprou gentilmente o ferimento superficial e depositou um beijo estalado acima da pele machucada. — Melhorou? — Perguntou à sobrinha, baixando sua perna logo em seguida. — Uhum! — Agradeceu a menor com um sorriso no rosto, balançando a perninha como se nem a tivesse esfolado. — Obrigada titia! — Complementou empolgada, antes de voltar à correr. Não era à toa que os seus pais a apelidaram de Helena Furacão, aquela menina era um terror. Emilly suspirou, negando com a cabeça e sorriu de maneira sútil enquanto se levantava e regressava ao seu posto de observação. Pegou o livro marcado de cima do estofado e deitou-se confortavelmente, retomando a leitura. Não valia à pena discutir com aquela gurizada teimosa, eles fariam o que achassem melhor de um jeito ou de outro. [...] Entretida com a leitura, Emilly se deliciava com um copo de suco de laranja e biscoitos que conseguira surrupiar da cozinha, quando seus familiares começaram a sair um por um da residência amarela, levando as crianças consigo. Só deu-se conta do tumulto que se formava quando uma de suas tias passou correndo por si, puxando o filho e gritando. — CORRA, EMILLY! DEPRESSA! Confusa, a menina fechou o livro, marcando com uma folha seca a página que lia e deixou-o sobre a espreguiçadeira antes de correr em direção ao parente mais próximo para se inteirar do problema. — O que está acontecendo? É um vazamento de gás? — Indagou preocupada, notando o assombro no olhar dos mais velhos. — A casa… nós estávamos terminando a decoração quando... — Seu pai teria terminado de respondê-la se não fosse bruscamente interrompido pelo soar intenso de uma trovoada que os forçou a se abaixar e tapar os ouvidos em uma atitude involuntária. Conforme o barulho se extinguia, Emilly se reergueu atordoada e olhou para o céu livre de nuvens, retirando as mãos das orelhas. — De onde raios veio isso?! — Resmungou consigo mesma, franzindo o cenho antes de voltar-se novamente em direção aos pais. — Mãe, me explica por que... — A voz da garota fraquejou ao avistar sua progenitora toda encolhida perante seu pai e irmã caçula. Dona Ana sempre foi uma mulher de garra, independente e explosiva. Não baixava a cabeça para ninguém e encarava de frente o que quer quer estivesse em seu caminho. Diante disso, vê-la daquela forma toda retraída era um choque e tanto, principalmente para os seus filhos. — Mãe? — A menina chamou, se aproximando lentamente. — Mamãe, se isso for alguma de suas brincadeiras, saiba que não tem a menor graça! — Exclamou agitada, mas a mais velha continuava imóvel . Emilly chamou pela menor uma terceira vez, a chacoalhando bruscamente no processo, mas tudo o que conseguiu foi uma sensação de formigamento nas mãos, seguida de um arrepio que percorreu por toda a sua espinha. O corpo inerte de sua mãe estava gélido, sem pulsação... e a julgar pela postura retorcida de sua família, ela não era a única neste estado... Sem mais alternativas, a garota teimou em checar cada um de seus parentes com um nó invisível entalado na garganta e ao comprovar sua teoria, suas mãos gelaram. Estavam todos petrificados. [...] Depois de se beliscar para confirmar a si mesma que a cena testemunhada era real, Emilly se afastou daqueles com quem compartilhava o sangue e seus olhos marejaram devido à tristeza de perder tantos entes queridos de uma só vez. Ao mesmo tempo, sua mente lutava para se manter lúcida e firme, já que dali em diante ela estaria sozinha. A cacheada nunca foi um exemplo de força e coragem, muito pelo contrário. Era tímida ao seu modo e um tanto calada; gostava de ficar só e se distraía com facilidade. As únicas características que lhe destacavam entre os demais eram a inigualável capacidade dedutiva e observativa, acompanhada da intuição apurada e raramente falha. Estava a um passo de correr até a casa do vizinho em busca de ajuda, quando ouviu pela segunda vez aquele estrondo agoniante, desta vez acompanhado de um fraco tremor de terra. A parte emocional de seu cérebro vibrava ansiosamente, formulando teoria acima de teoria baseada nas incógnitas por trás daquele som incomum. A parte racional, porém, insistia em lhe amedrontar fixando a ideia de fuga caso aqueles fossem os primeiros sinais do apocalipse — fora, é claro, a lembrança de seus familiares petrificados a alguns metros de distância. O tremor aos poucos foi se intensificando e, para se prevenir de possíveis destroços, Emilly utilizou a escada usada anteriormente por seu pai para subir até o telhado da garagem, onde aguardou pelo pior. A angústia por deixar a família desamparada lá embaixo a atingiu copiosamente, levando-a ao choro. A dor da perda era sufocante, opressora, mas não havia nada que pudesse fazer por eles naquele momento. Alguns minutos de paz foram presenteados a garota quando o mini terremoto cessou e ela pôde se lamentar sem demais intervenções. Após isso, porém, as lágrimas de luto foram abruptamente interrompidas e substituídas por uma expressão de surpresa. O portão de grades pálidas que guardava o jardim frontal, foi arremessado longe por uma força invisível, sobrevoando o rancho vizinho feito uma folha de papel. A curiosidade que normalmente movia a jovem Smith, se manifestou. Dessa vez, contudo, a garota a manteve sob controle, reprimindo o desejo assíduo de solucionar o mistério envolvendo sua família, se concentrando no presente. Ela deslizou pelo telhado até a parte mais alta, analisando o aro recém formado pela ausência do portão e os fios de sua nuca se arrepiaram ao ouvir um rugido feroz vindo por trás de suas costas. Emilly virou-se vagarosamente para a casa de cor amarelada, agarrando-se as telhas de tijolos e seu queixo caiu ao vislumbrar os diversos animais que caminhavam ordenadamente, vindos da lateral direita da moradia herdada por seus avós. Nas fileiras da frente, várias espécies de animais mitológicos e exóticos se destacavam. Havia um trio de elefantes filhotes, um par de tigres albinos, um casal de pavões com as penas libertas e um pequeno time formado por raposas-do-deserto. Havia também um grifo, um pégaso e uma revoada de beija-flores arco-íris. Na sequência, animais comuns e selvagens marcavam presença, o que era o caso do grande leão de juba dourada acompanhado por duas leoas robustas, da mini alcatéia de lobos cinzentos e do emaranhado de insetos. Uma borboleta brilhante sobrevoou até o ombro da adolescente, deixando uma espécie de ** azulado em suas vestes como evidência e ao distanciar-se, a morena pôde contemplar pequenos diamantes incrustados nas asas cerúleas. Toda sorridente, Emilly ajeitou-se onde estava para acompanhar melhor o desfile dos mamíferos e ovíparos, se preparando para descer e observar tudo mais de perto quando eles estivessem à uma distância segura. Os animais se afastaram e ela alcançou o primeiro degrau da escada de madeira, quando uma movimentação repentina a fez reconsiderar. Respirou profundamente com as pernas penduradas e aguardou inquieta pelo próximo evento. Assim que a nova cena surgiu, seus lábios se entreabriram em descrença. O fenômeno da vez era um grande rio que fluía de maneira retilínea, formando um ângulo perfeito de 90° graus ao atingir a estrada. O trajeto era o mesmo dos animais anteriores, avançando incessantemente ao passar pelas estatuetas humanas espalhadas pela calçada. A água era tão límpida que, mesmo a distância, era possível enxergar com clareza os peixes fluorescentes nadando abaixo da mesma. A expressão da morena em nada suavizou ao reconhecer os crocodilos — que assim como a borboleta, possuíam pedras preciosas condecorando suas costas — nadando serenamente semi-submersos pela água. Emilly assistiu com atenção o grande rio se dispersar e aguardou cerca de 15 minutos, até que sua mente voltasse aos eixos e tivesse 100% de certeza de que nada mais aconteceria. Só então, ela criou a coragem necessária para voltar ao térreo e procurar pela a******a que permitiu o escape de todos aqueles eventos insólitos. Desceu rapidamente pela escada titubeante e assim que seus pés tocaram o chão, um último estrondo ecoou pelo ar trazendo consigo uma rajada de luz forte e arroxeada que sumiu segundos depois, dando lugar a uma voz grave e robótica. "Participante em posição! Que a aventura comece!" [...] Engolindo a seco, Emilly realizou um pequeno ritual para se auto convencer de que tudo ficaria bem, inspirou profundamente, olhando ao redor para se certificar de que nenhum animal foi deixado para trás e expirou, dando o primeiro passo em direção ao jardim. A residência antiga era grande o suficiente para comportar os 23 integrantes que compunham a família; mas abarcar aquela quantidade de bichos de diferentes tamanhos que fugiu de sabe-se lá onde, já era demais. Conforme seguia pela trilha de cascalhos rumo ao antigo casarão, ia adicionando questões e mais questões à sua lista, constatando que tudo parecia intacto, mesmo após a debandada e a passagem do rio. Todavia, à medida que se aproximava da residência, encontrou uma pequena rachadura a partir da borda da piscina que se estendia pelo solo até a parede do quarto principal, localizado na extremidade oeste da casa. Com cuidado, Emilly se aproximou da rachadura — que estranhamente possuía o formato de uma porta — e deslizou a ponta dos dedos por todo o relevo, contornando-o. Se ergueu novamente para investigar o restante do local, quando no centro da parede, duas palavras gravadas lhe chamaram a atenção. — Game over... — Leu em voz alta, compreendendo no mesmo instante o significado. "Fim de Jogo!" Franzindo o cenho de forma pensativa, a morena contornou o casarão para inspecionar o outro lado e por alguma razão, esperava encontrar outra atividade suspeita… Encontrou! Uma nova rachadura se estendia pela parede de tijolos, começando no solo e terminando no teto. Esta, porém, possuía um formato incerto e uma grande f***a no meio, denunciando profundidade. Inesperadamente, a f***a não mostrava nenhum móvel ou treliça do interior da casa, e sim um breu inigualável. Era como se houvesse outra coisa ali dentro, uma espécie de passagem ou até mesmo um túnel. A garota correu desconfiada até o interior da casa para verificar e pontuar os possíveis estragos, mas tudo o que conseguiu foram mais perguntas. Estava tudo em seu devido lugar. As panelas continuavam no fogo, os objetos pequenos não caíram com o tremor e a energia funcionava normalmente. Nos quartos, a situação era a mesma. As paredes permaneciam intactas e as únicas ranhuras e rachaduras presentes, eram as causadas pelo tempo. Irritada, Emilly vasculhou a caixa de ferramentas de seu avô a procura de uma trena e com o objeto em mãos, retornou a área externa. A adolescente prendeu os fios encaracolados com o elástico que tinha guardado no bolso, ajustou o óculos redondo em sua face e se aproximou novamente da rachadura indefinida, no intuito de medir o cumprimento daquele buraco ou o que quer que causasse aquela ilusão de ótica... Péssima idéia! Assim que se abaixou e tocou a parede destroçada como base de apoio, a garota sentiu o corpo pesar e se comprimir como se algo o estivesse esmagando. Suas pernas cederam, levando-a ao chão sem forças para levantar ou mover, até mesmo falar e respirar se tornou difícil. Luminosidade tomou conta da f***a que assumiu um brilho arroxeado e, aos poucos, a consciência deixava o corpo da jovem. A última coisa que viu antes de se entregar à escuridão, foi um vórtice reluzente que a acolheu como um velho amigo e desapareceu, tão rápido quanto o lampejo de um relâmpago...
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