Na manhã seguinte, Élise acordou com o som sutil de uma melodia instrumental vindo do corredor. Abriu os olhos devagar e percebeu que o quarto já estava inundado pela luz natural. As janelas haviam sido abertas por alguém — provavelmente a governanta. A mansão funcionava como uma engrenagem bem azeitada: tudo no horário, tudo automático.
Ela se vestiu com pressa: calça bege, camisa azul clara e jaleco branco. Prendeu os cabelos ruivos em uma trança baixa e seguiu em direção ao quarto de August. Antes mesmo de bater, a porta se abriu lentamente.
August estava no centro do quarto, cercado por blocos de madeira. Ao vê-la, não fugiu nem se afastou — apenas levantou os olhos por um instante, como quem reconhece algo familiar.
— Bom dia, August — disse ela com um sorriso gentil. — Dormiu bem?
Ele voltou a se concentrar nos blocos. Não respondeu, mas também não a ignorou. Isso, para ela, já era um avanço.
Ela se sentou no tapete macio e pegou alguns blocos também.
— Hoje pensei que poderíamos montar algo juntos. Talvez… uma ponte?
August olhou para ela. Por um breve momento, parecia considerar. Então se levantou, foi até uma prateleira e pegou um livro. Entregou-o a ela.
Era um livro de ilustrações arquitetônicas. E na página aberta: pontes do reino de Velançay.
— Você é exigente — murmurou ela, com um sorriso mais largo. — Vamos fazer uma ponte digna de Elsemar, então.
E trabalharam juntos, em silêncio confortável. Às vezes, Élise indicava uma peça ou corrigia um ângulo com leveza. August aceitava as sugestões com pequenos acenos ou pausas pensativas. Era como uma dança sutil entre confiança e autonomia.
Quando desceram para o café da manhã, Cassian já estava sentado à mesa. Ele lia um relatório em um tablet, com um copo de café ao lado. Ao ver August caminhando ao lado de Élise — sem segurar sua mão, mas também sem resistir — ergueu os olhos, visivelmente surpreso.
— Ele saiu do quarto com você? Sem crise?
— Ele só precisa que o tempo seja respeitado. E que as escolhas dele sejam levadas a sério.
Cassian observou August puxar a cadeira e sentar-se sozinho. Pegou o garfo com precisão, ainda que não tocasse os alimentos imediatamente. Estava ciente de cada detalhe.
— Ninguém aqui jamais conseguiu isso — murmurou o duque. — Nem mesmo eu.
Élise se sentou do outro lado da mesa.
— Talvez seja porque todos aqui esperam que ele se encaixe no que é esperado. Mas August… August tem o próprio ritmo. Se forçar, ele se fecha.
Cassian ficou em silêncio. Depois de alguns minutos, largou o tablet e levantou-se.
— Preciso ir à sede da ElsemarTech. A governanta saberá onde estou caso algo aconteça.
— Não se preocupe. Eu e August ficaremos bem.
Ele hesitou na porta. Como se quisesse dizer algo. Mas apenas assentiu, seco.
Assim que ele saiu, August olhou para a porta e depois para Élise.
— Papai… vai?
Ela congelou.
A primeira palavra.
— Sim, August. Ele vai trabalhar. Mas volta depois.
Ele balançou a cabeça lentamente. Depois voltou a comer.
Mas o coração de Élise… esse tremia por dentro. A primeira palavra.
E havia sido “papai”.
Élise não conseguia parar de olhar para ele.
A palavra ainda ecoava na mente dela, suave e grave, dita com aquela vozinha baixa e quase surpresa. Papai. Era como se August tivesse testado o som, experimentado a segurança de dizê-la com ela ali por perto.
Ela sabia o peso que aquilo carregava. Não era só linguagem — era confiança, era vínculo. Era reconhecimento.
August, que por dias m*l a olhava nos olhos, acabava de fazer história.
Ela não quis reagir demais. Engoliu o impulso de correr até Cassian e contar. Em vez disso, apenas ficou ali, com ele, fingindo que tudo era natural.
— Hoje podemos sair um pouco para o jardim. Se você quiser — disse baixinho, enquanto August separava as uvas do prato em fileiras metódicas.
Ele não respondeu, mas também não recusou.
Depois do café, Élise o ajudou a calçar os pequenos sapatos de couro, e desceram juntos até os jardins. Era um dia de céu opaco, com nuvens acinzentadas, mas o ar ainda era fresco. O jardim interno da Maison Elsemar era vasto, com labirintos de arbustos e fontes de pedra onde os pássaros se banhavam.
August caminhava devagar, arrastando os dedos pelas folhas. Parava sempre que encontrava uma flor caída ou uma pedra fora do lugar. Era como se o mundo precisasse de equilíbrio para que ele funcionasse por dentro.
— Sabe… meu pai também era um homem difícil — comentou Élise, mais para si mesma do que para o menino. — Mas ele me ensinou a ouvir o que as pessoas não diziam em voz alta.
August parou em frente a uma roseira branca. Tocou uma das pétalas com delicadeza quase reverente.
— Você também fala com o silêncio, August. E eu estou escutando.
De repente, um som cortou a paz do jardim: vozes vindas da ala leste, agitadas. Um dos seguranças passou apressado, cochichando algo ao mordomo. Os dois sumiram pelo corredor.
Élise pegou August pela mão — ele não recuou — e o guiou de volta à entrada da mansão.
Assim que passaram pelo hall, encontraram a governanta, Madame Sorel, de postura impecável e expressão preocupada.
— Senhorita Varnier — ela disse, inclinando a cabeça —, por favor, leve o jovem August de volta ao quarto. Parece que há um pequeno problema na empresa do duque. Ele solicitou que ninguém o interrompa hoje.
— Alguma coisa séria?
— Apenas… negociações. Nada que nos diga respeito. — Mas o tom dela parecia tenso demais para algo rotineiro.
Élise assentiu e conduziu August de volta.
Mais tarde, quando o menino dormia, ela não resistiu. Desceu até a biblioteca, e por impulso, escreveu uma pequena nota. Dobrou com cuidado e pediu ao mordomo que a entregasse a Cassian.
"August falou hoje. Uma palavra só. Mas foi tudo.
– Élise."
Ela não esperava resposta. Nem naquela noite, nem nos dias seguintes.
Mas, no fim da tarde, encontrou sobre sua escrivaninha um envelope de papel grosso, selado com o brasão da família Elsemar. Dentro, apenas uma linha escrita com a letra forte e elegante de Cassian:
"Você é a primeira pessoa a quem ele respondeu desde a morte de Myrielle."
Élise segurou o bilhete contra o peito.
O nome da mãe, enfim pronunciado. Um elo quebrado, agora lembrado.
E pela primeira vez, ela compreendeu o peso que August e Cassian carregavam — cada um à sua maneira, no silêncio e na culpa.
E ela… agora fazia parte disso.