13. O Ritual Antigo

2552 Palavras
A manhã seguinte chegou sem cor. O sol não atravessava mais as nuvens — um cinza espesso cobria o céu, tornando o dia indistinto da noite. O ar era pesado, saturado do cheiro de água parada e ferro oxidado. Sarah caminhava pela estrada, os pés afundando na lama fria, o diário de Ethan preso contra o peito. Atrás dela, Darrow’s Hollow parecia morta — sem som, sem movimento, como uma fotografia antiga de uma cidade esquecida. Ela olhou para o lago. As margens haviam se expandido. A água alcançava as primeiras casas, engolindo lentamente o que restava do cais. Mas o que mais a aterrorizava era o som. Lá embaixo, no fundo, algo batia. Ritmico, constante. Como um tambor. Como um coração. Sarah sabia o que significava. O selo estava vivo. ************ Na antiga prefeitura, os poucos sobreviventes haviam se abrigado em silêncio. Dois homens, uma mulher e uma criança. Todos olhavam para o chão, evitando as janelas, como se o simples ato de ver o lago pudesse atraí-lo. Quando Sarah entrou, eles a encararam com um misto de esperança e medo. “Você estava com o xerife” disse o homem mais velho. “Ele vai voltar?” Ela não respondeu. A pergunta era uma ferida aberta. No canto, a criança tremia sob um cobertor. Sarah ajoelhou-se diante dela. “O que foi?” A menina apontou para um copo d’água sobre a mesa. Dentro dele, pequenas bolhas subiam, formando um redemoinho. E então, do centro, uma voz suave, quase um sussurro, se ergueu. "Guardião..." O copo caiu e se quebrou. A água escorreu pela madeira e formou, sobre o chão, uma espiral perfeita. Sarah recuou, o coração acelerado. A criatura não precisava mais do lago. A água era suficiente. ********* Horas depois, ela estava de volta à casa da mãe, revirando as páginas do diário. O papel estava frio ao toque, úmido, como se o livro respirasse. Ela procurava por algo — qualquer pista sobre como reverter o ritual. Então encontrou. No final, entre as últimas linhas escritas por Ethan, havia um parágrafo rasurado. Com esforço, ela decifrou as palavras. “Se o selo cair, deve-se ir ao coração. O sangue do guardião deve ser misturado ao do selador. Somente assim o ciclo pode cessar. Mas o preço é o reflexo e aquele que fechar o selo jamais verá o sol novamente.” Sarah apoiou o livro sobre a mesa. O guardião — Tom. O selador — Ethan. Ambos haviam sido levados. “Então o que resta sou eu” sussurrou. No fundo da casa, a madeira estalou. A água começou a brotar das rachaduras do assoalho. Pingos lentos, compassados. Cada gota formava uma espiral. Ela pegou o casaco, amarrou o diário à cintura e saiu. O vento trazia o som distante de passos — lentos, pesados, cadenciados — ecoando do lado do lago. Ela sabia que o seguiria até o fim. ******** Ao entardecer, Sarah chegou ao antigo ponto de escavação. A cabana de Henry não existia mais. Em seu lugar, uma a******a larga, n***a, respirando. O ar que saía de dentro era frio, denso, quase sólido. A entrada das cavernas. Ela acendeu uma lanterna e desceu. A luz tremia sobre as paredes úmidas, cobertas de musgo e símbolos em espiral. Cada curva parecia se mover quando a chama passava. O som do lago vinha de cima e de baixo ao mesmo tempo, como se ela estivesse andando dentro dele. Mais fundo. Mais frio. Mais escuro. E então, a voz. Baixa. Perto. Familiar. “Sarah.” Ela parou. O som vinha adiante, do corredor estreito. “Ethan?” A sombra à frente se moveu. Da escuridão, surgiu o contorno dele — o rosto pálido, os olhos cheios de água. “Não pode vir aqui” disse a voz. “Você está vivo?” “Parte de mim. Parte dela. O selo não se fecha com força. Só com lembrança.” Ela deu um passo à frente. “O que devo fazer?” “Descer até o coração. Onde o lago nasceu. O selo espera o sangue. O sangue fecha.” Sarah sentiu o ar gelar. “E o preço?” Ethan sorriu, triste. “O reflexo.” A luz piscou. E ele desapareceu. ******** Sarah continuou. O túnel se alargava. O som da água tornava-se ensurdecedor, como um trovão constante. De repente, o chão se abriu em uma grande caverna subterrânea. No centro, uma poça circular — um espelho perfeito — pulsava como se tivesse vida. Acima dela, símbolos gravados na rocha brilhavam, refletindo a luz da lanterna. Ela se aproximou. O diário vibrava contra o corpo. As últimas páginas se abriram sozinhas, revelando uma inscrição final, escrita em caligrafia irregular: “O selo é sangue, não pedra. Feche-o com o que resta de você.” Sarah tirou um canivete do bolso. A lâmina refletiu a luz fraca. Ela hesitou, o som da água sussurrando seu nome. Mas quando se ajoelhou à beira do espelho líquido, viu algo. O reflexo. Mas não era o dela. Era o de Ethan, sorrindo, debaixo da superfície. E atrás dele, o xerife — parado, imóvel, com os olhos abertos. “Sarah” disse a voz do lago, suave. “Tudo que resta é lembrar.” Ela fechou os olhos. E cortou a palma da mão. O sangue caiu em gotas sobre a água, e a caverna inteira pareceu tremer. As espirais nos muros começaram a brilhar, e o som do lago se transformou em um rugido. Mas o reflexo de Ethan não sumiu. Ele apenas olhou para ela, murmurando algo que ela não ouviu. A última gota caiu. A luz desapareceu. E, pela primeira vez, Darrow’s Hollow ficou completamente em silêncio. Por alguns segundos, houve apenas silêncio. Um silêncio absoluto, pesado, tão denso que parecia ter forma. Depois, o som. Não o som do lago — mas algo mais profundo, mais antigo, vindo debaixo da própria terra. Um gemido grave, como o mundo se contraindo. Sarah abriu os olhos. A lanterna ainda estava acesa, mas a luz oscilava, refletindo sobre a superfície escura à sua frente. O espelho d’água havia mudado. Antes imóvel, agora girava lentamente, como um redemoinho preguiçoso. Cada volta formava pequenas espirais luminosas que subiam pelas paredes da caverna, pulsando com o mesmo ritmo do coração dela. O sangue em sua mão ainda gotejava, misturando-se à água. Cada gota fazia o chão vibrar. De repente, uma voz atravessou o ar — baixa, rouca, mas familiar. “Sarah…” Ela se virou. Do outro lado da caverna, emergindo da escuridão, estava Tom Grady. Ou o que restava dele. O corpo estava encharcado, pálido, coberto de marcas em espiral. Os olhos, completamente brancos. Mas ainda havia algo de humano na voz. “Você não devia ter vindo.” Ela recuou um passo. “O selo… precisa se fechar.” Ele caminhou lentamente, e onde pisava, a rocha ficava úmida, viva. “O selo quer sangue. E o sangue quer lembrança. O lago não esquece.” “Você não é mais ele” disse ela, firme. Tom parou, o rosto contorcido entre dor e raiva. “Sou parte do lago. Parte do guardião. Parte do erro.” A água ao redor começou a subir. A caverna inteira respirava. O espelho no centro expandia-se, como se o lago tentasse atravessar a terra. Sarah levantou a mão ferida. “Se eu terminar o ritual, ele dorme.” “Não” respondeu Tom. “Se fizer isso, ele sonha.” Ela hesitou. “E se eu não fizer?” “Então ele acorda.” A luz piscou, e por um instante, ela viu Ethan ao lado dele — o rosto sereno, o olhar profundo. “Há um caminho” disse a voz de Ethan. “Mas exige lembrança. Tudo que foi esquecido precisa voltar.” Sarah entendeu. O selo não era um feitiço, nem uma prisão. Era memória. Era o peso da culpa, o registro das vidas que o lago havia tomado. E, para fechá-lo, ela precisaria se lembrar — de tudo. Ela ajoelhou-se à beira da água, o sangue ainda escorrendo. “Mostre-me” murmurou. “Eu aceito.” O espelho reagiu imediatamente. A superfície se iluminou, e imagens começaram a surgir — rápidas, fragmentadas, cortadas pelo som do coração do lago. Ela viu o passado. — Homens de túnica desenhando símbolos na areia. — Mulheres sacrificando filhos ao pôr do sol. — O rosto do primeiro Cole, o sangue escorrendo pelo chão. — O xerife Grady original, ajoelhado, as mãos cobertas de lama. A dor veio junto com as lembranças, rasgando a mente dela. Era como se cada vida esquecida agora gritasse dentro de sua cabeça, pedindo para ser ouvida, para ser lembrada. O som da água aumentou, tornando-se ensurdecedor. E então, do centro do espelho, algo se ergueu. Uma figura. Feita de água, sombra e luz. O rosto era o dela. Sarah recuou, o coração acelerado. A cópia a observava, imóvel, os olhos idênticos, mas sem alma. A voz veio em sussurro. “Você me chamou.” Ela tentou falar, mas o ar faltou. O reflexo inclinou a cabeça. “Sou o que você teme esquecer. Sou o que fecha o selo.” Sarah entendeu. O reflexo era o preço. Para selar o lago, ela teria de entregar a si mesma — a parte que lembrava, a parte que existia. “Se eu me der a você… o lago dorme?” “Sim. E o mundo esquece.” Ela olhou para o diário amarrado à cintura. A última página tremulava, e novas palavras apareciam, como escritas por uma mão invisível: “A lembrança é a corrente. O esquecimento, o selo.” Sarah deu um passo à frente, o reflexo espelhando cada movimento. As duas se encararam por longos segundos. Depois, ela estendeu a mão. “Então me leve.” O reflexo sorriu. A água se ergueu em volta das duas, girando como uma espiral viva. O frio a envolveu, penetrando até o osso. E, no instante em que tocou a superfície, tudo parou. A luz apagou. O som cessou. E Darrow’s Hollow, acima da terra, mergulhou em um silêncio perfeito. ******** Horas, talvez dias depois — ninguém saberia dizer — a água recuou. O lago voltou ao seu tamanho antigo. As marcas nas casas desapareceram. A chuva cessou. Quando os primeiros moradores se aventuraram a sair, encontraram o ar leve, limpo. E no lugar onde ficava a cabana de Henry, havia apenas terra firme. Nada mais. Nenhum sinal de Sarah. Mas na margem do lago, sobre uma pedra, repousava o diário. Aberto. A última frase escrita com tinta fresca: “O selo dorme. E com ele, eu.” O vento soprou, e o lago permaneceu imóvel. Mas, por um instante — breve, quase imperceptível — uma ondulação atravessou a superfície. Pequena. Circular. E no reflexo da água, um par de olhos se abriu. ****** O silêncio na caverna não durou muito. Logo, o som da água voltou — não mais como rugido, mas como respiração lenta e constante, o som de algo vivo que repousa, mas nunca dorme por completo. Sarah abriu os olhos, tateando o chão frio. A lanterna se apagara. O ar estava úmido, pesado, quase sólido. O espelho d’água diante dela permanecia calmo, liso, perfeito. Nenhum reflexo. Nenhuma ondulação. Apenas uma superfície escura, que parecia flutuar no ar. Ela tentou falar, mas a voz não saiu. O peito doía, e a mente girava. Lembranças vinham e iam como fragmentos de sonhos — Ethan sorrindo, o xerife desaparecendo na chuva, Henry caindo no abismo. Tudo misturado, distorcido, como se o tempo tivesse perdido forma. Então, o som. Passos. Molhados, lentos, vindos do fundo da caverna. Sarah se levantou, apoiando-se na parede. A luz fraca que vinha do espelho iluminou uma silhueta. Era ela. Não o reflexo líquido, mas o corpo físico, idêntico, caminhando em sua direção. A cópia parou a poucos metros. Os olhos eram os mesmos — frios, cansados, mas vazios, como se contivessem o peso de todas as lembranças do mundo. Quando falou, a voz era a mesma, mas mais profunda, como se viesse debaixo da terra. “Você me chamou. Eu atendi.” Sarah recuou um passo. “Você… é o lago?” A cópia inclinou a cabeça. “Sou o que o lago lembra. Tudo que ele levou, tudo que você quis esquecer.” Ela sentiu o sangue gelar. As lembranças voltaram com força — o corpo do pai no lago, o rosto da mãe desaparecendo na névoa, as crianças que nunca voltaram. Tudo. A cidade inteira, como um eco interminável. “Se eu fechar o selo, tudo isso desaparece?” perguntou. “Não desaparece. Dorme. Mas o sono precisa de guardiã.” Sarah entendeu o que a entidade pedia. O preço não era apenas o sangue. Era a permanência. “Você quer que eu fique.” “Quero que se lembre. Para que o mundo possa esquecer.” Ela olhou para o espelho. A superfície refletia a si mesma, o lago acima, o céu — e dentro de tudo isso, milhares de rostos. Os mortos de Darrow’s Hollow. Todos esperando. Todos chamando. A cópia estendeu a mão. “Uma lembrança final. Uma respiração. Depois, silêncio.” Sarah se ajoelhou à beira do espelho. O sangue ainda manchava a palma da mão. As espirais gravadas nas paredes começaram a brilhar novamente, em tons dourados, vermelhos, vivos. Ela encostou a mão na superfície. A água era fria como gelo, mas pulsava, viva. Um arrepio subiu pela espinha, e a cópia se aproximou até que seus rostos quase se tocassem. “Você me fecha,” disse o reflexo. “E eu te guardo.” Sarah olhou pela última vez para o diário preso à cintura, agora molhado, as letras escorrendo como tinta viva. Respirou fundo. “Então feche.” A cópia sorriu. E, em um movimento suave, puxou-a para dentro da água. ******* A superfície do espelho se partiu como vidro, e a caverna tremeu. As paredes vibraram, a luz piscou, e a água subiu até o teto. Por um instante, tudo foi som — o som da cidade, do lago, das vozes, das memórias. Depois, silêncio. Quando a água recuou, o espelho havia desaparecido. No chão, apenas o diário. Aberto, as páginas vazias — exceto por uma frase escrita com tinta viva: “O selo dorme. O lago lembra. A guardiã observa.” A superfície do solo, antes pedra, agora refletia luz como se fosse água endurecida. E, no reflexo, por um instante, uma sombra — o rosto de Sarah, sereno, os olhos abertos, olhando de dentro para fora. O lago havia sido selado. Mas parte dele — a parte que lembrava — agora tinha um nome. ********* Dias depois, a chuva cessou completamente. Os sobreviventes voltaram a andar pelas ruas. O lago estava calmo, o ar limpo, e o som do vento parecia normal outra vez. Mas os mais velhos — aqueles que ainda lembravam — diziam que, à noite, quando o mundo ficava quieto demais, podiam ouvir um som fraco vindo das águas: Um sussurro. Feminino. Tranquilo. "Durmam. Eu estou aqui." E assim, Darrow’s Hollow voltou a viver. Mas ninguém se aproximava do lago ao cair da noite. Pois sabiam que, sob a superfície, havia um par de olhos abertos — não malignos, apenas atentos. Lembrando.
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