3. O Buraco Na Terra

2185 Palavras
O amanhecer chegou cinzento, abafado, como se o céu também carregasse o peso da noite anterior. A chuva cessara, mas a névoa permanecia densa, cobrindo o lago como um véu de respiração gelada. Ethan acordou com o som distante de motores — um grupo de trabalhadores da prefeitura abrindo uma nova estrada nos limites da floresta. Ele vestiu um casaco pesado, ainda tonto da insônia, e saiu para ver. O ar tinha cheiro de ferro e terra molhada. Cada passo rangia sobre as folhas úmidas. Quando chegou à clareira, encontrou Tom Grady observando uma escavação recém-iniciada. Homens com pás e tratores trabalhavam sob o olhar vigilante do xerife, que parecia desconfortável. “Estranho te ver por aqui tão cedo”, disse Tom, sem desviar os olhos do buraco que se abria no solo. Ethan encolheu os ombros. “Ouvi o barulho. E não consegui dormir.” Tom soltou um suspiro e coçou o queixo. “Ninguém dorme direito nessa cidade há dias. Desde o desaparecimento do garoto.” Ethan não respondeu. Seu olhar estava preso ao chão. A terra ali era diferente — escura, quase n***a, e úmida demais, como se algo vivo respirasse sob ela. Um dos homens gritou. As pás tinham atingido algo duro, metálico. Um som oco, abafado, reverberou pelo ar, e um arrepio percorreu a espinha de Ethan. O trator desligou. Silêncio. Tom se aproximou com cautela, as botas afundando na lama. “Parece pedra”, disse o operador, limpando o suor da testa. Mas quando as pás removeram a última camada de terra, o que surgiu não era pedra. Era uma superfície irregular, coberta de inscrições desgastadas — linhas curvas, símbolos que pareciam olhos e espirais entrelaçadas. Ethan se ajoelhou, fascinado. Passou os dedos sobre um dos sulcos. A textura era áspera, fria, e parecia pulsar sob a pele. “Não é granito. Nem ferro.” “Então o que é?” perguntou Tom. “Algo antigo”, respondeu Ethan, sem perceber que falava quase num sussurro. “Muito mais antigo do que essa cidade.” O operador recuou um passo. “Quer que a gente continue cavando, xerife?” Tom hesitou. O vento soprou da direção do lago, trazendo um cheiro forte de algas e podridão. E então, um som — um estalo profundo, vindo do subsolo. Os homens se entreolharam. Ethan ergueu o olhar. A superfície sob seus dedos tremia. Um segundo estalo ecoou, mais alto. Depois, o chão cedeu. A lama se abriu em torno do buraco, e Ethan quase caiu dentro. Tom o puxou pelo braço a tempo, enquanto o buraco se alargava, revelando uma f***a que descia fundo, engolida pela escuridão. De lá de baixo, veio um som abafado — algo entre o roçar de unhas e uma respiração úmida. Um dos trabalhadores recuou, fazendo o sinal da cruz. Tom fitou o abismo, a voz firme, mas o olhar inquieto. “Que diabos tem aí embaixo?” Ethan, ofegante, ainda olhava fixamente para o vazio. “Algo que estava dormindo”, murmurou. “E que a gente acabou de acordar.” O vento soprou mais forte. A névoa do lago começou a rastejar em direção à clareira, como se algo invisível estivesse exalando de dentro da terra. Tom ordenou que todos se afastassem. Mas Ethan permaneceu imóvel, sentindo algo prender seus pensamentos — uma presença, uma voz antiga, baixa, surgindo dentro dele. "O sangue chama o sangue." Ele fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, percebeu que uma gota escura escorria do canto do buraco. Não era lama. Era sangue. O buraco foi isolado com fita amarela, mas o cheiro metálico do sangue ainda pairava no ar. Tom Grady ordenou que os homens recuassem e chamou o departamento de obras para interromper os trabalhos até segunda ordem. A névoa se adensava, escondendo metade da clareira. Parecia que o próprio ar tinha peso. Ethan ficou por último. Não conseguia tirar os olhos da f***a. Aquela superfície coberta de símbolos parecia viva, pulsando em intervalos lentos. Ele se agachou novamente, mesmo com o olhar de reprovação de Tom. “Isso não é uma rocha comum”, disse em voz baixa. “Esses entalhes… são mais antigos que qualquer registro da região.” Tom cruzou os braços. “E o sangue? Vai me dizer que também é geologia antiga?” Ethan não respondeu. O líquido escuro escorria em filetes finos, desaparecendo entre a lama. Quando ele passou a lanterna, a luz refletiu — por um instante, parecia um olho abrindo-se lá embaixo. Tom puxou Ethan pelo casaco. “Sai daí. Agora.” Ethan se levantou devagar, o rosto pálido. “Tem algo lá embaixo, Tom. E acho que não devia estar preso.” O xerife desviou o olhar, incomodado. “A prefeitura vai mandar fechar tudo com concreto. Ninguém vai mais chegar perto.” Ethan sorriu, amargo. “Você sabe tão bem quanto eu que isso não vai impedir o que quer que esteja aí. Só vai deixá-lo irritado.” Tom não respondeu. Apenas mandou que os homens cobrissem a área com lonas e recolheu os equipamentos. Enquanto caminhavam de volta, Ethan olhou para o lago ao longe. A superfície estava calma demais. Nenhum pássaro. Nenhum som de vento. Só o reflexo imóvel do céu cinzento — e algo, sob a água, movendo-se lentamente, como uma sombra girando no fundo. *******†*********†*******†******†**** Naquela tarde, Ethan foi até a biblioteca. O prédio cheirava a papel antigo e verniz. A luz entrava pelas janelas em faixas pálidas, revelando partículas suspensas no ar. Sarah Miller estava atrás do balcão, catalogando jornais. Quando o viu, franziu o cenho. “Você tem uma expressão h******l. Aconteceu alguma coisa?” Ethan colocou sobre o balcão um pedaço de argila retirada da escavação. Dentro dela, havia uma marca em espiral. “Encontrei isso perto da estrada nova.” Sarah examinou o objeto, os olhos atentos. “Esses símbolos… parecem pictogramas. Ou inscrições cultuais. Onde exatamente achou?” “Nos limites da floresta. O solo cedeu. E havia… sangue.” Ela o fitou, incrédula. “Sangue?” “Sim. E mais. Algo mexeu lá embaixo.” Sarah fechou o livro que segurava, devagar. “Você precisa descansar, Ethan.” “Eu sei o que vi. E acho que tem relação com as histórias antigas da cidade.” Sarah suspirou e se inclinou sobre o balcão. “Você fala das lendas que Henry Calder vive repetindo? Aquelas sobre o ‘olho sob o lago’? Ele é um velho maluco.” Ethan balançou a cabeça. “Talvez não seja tão louco assim.” Ele abriu o caderno da mãe — o mesmo que se movera sozinho na noite anterior — e mostrou uma anotação feita à mão: "O selo não deve ser quebrado. O sangue guarda o que a terra esqueceu." Sarah leu em silêncio, a expressão mudando. “Isso é dela?” “Sim. E ela nunca falava sobre religião ou mitos. Mas, de repente, começa a escrever sobre selos e sangue? Alguma coisa ela sabia.” Sarah apoiou o queixo na mão, pensativa. “Henry vive sozinho perto do pântano, não é? Talvez ele reconheça esses símbolos.” “É o que eu pensei.” Ela olhou para o pedaço de argila novamente. “Ethan… se for só uma história, você vai parecer louco. Mas se não for…” “Então Darrow’s Hollow está em perigo.” *******†*********†*******†******†**** Quando ele saiu da biblioteca, o sol já se punha atrás das montanhas. A névoa retornava, rastejando pelas ruas, escondendo as casas. Ethan passou diante da igreja e notou o sino oscilando levemente — ninguém estava ali para tocá-lo. Um som baixo veio do lago. Um estalo. Depois outro. Ele parou. O reflexo da lua tremia na superfície. Por um instante, pareceu ver uma forma submersa — redonda, n***a, com algo no centro… como uma pupila. O mesmo som abafado da escavação ecoou de novo, mais forte, como se a terra respirasse. Ethan recuou um passo, o coração acelerado. A água do lago fez uma ondulação e, então, parou de novo. Tudo voltou ao silêncio. Ele sabia que aquilo não era coincidência. Algo sob o solo e sob a água estava se movendo. E, pela primeira vez, teve certeza de que o que chamava por ele vinha de dentro da própria terra. O caminho até a casa de Henry Calder era uma estrada estreita, tomada por raízes e névoa. O velho vivia isolado há décadas, numa cabana perto do pântano, onde o solo era sempre úmido e o ar, pesado. Ethan dirigia devagar, o som dos pneus sobre a lama abafado pela bruma espessa. Sarah mantinha o olhar fixo pela janela, os dedos entrelaçados no colo. “Você tem certeza de que ele vai nos receber?” perguntou. Ethan assentiu, embora não tivesse certeza alguma. “Henry conhecia minha mãe. Ela confiava nele. Acho que ele sabia mais sobre a cidade do que deixava transparecer.” Quando o carro parou diante da cabana, um corvo voou do telhado, soltando um grito rouco que se perdeu na floresta. A porta se abriu antes que Ethan pudesse bater. Henry Calder estava à soleira, curvado, a pele marcada como madeira antiga. Os olhos, pequenos e claros, tinham um brilho desconfiado. “Eu sabia que você voltaria, menino Cole.” A voz era rouca, arrastada. Ethan sentiu um arrepio. “Como sabia?” Henry deu de ombros. “O lago começa a se mover sempre que um Cole volta pra cá. Ele lembra.” Sarah cruzou os braços, desconfortável. “O lago lembra?” Henry olhou para ela. “Tudo que sangra lembra. E o lago sangra há muito tempo.” O interior da cabana era escuro e cheio de cheiro de mofo, ervas secas e cera derretida. Em uma mesa, havia recortes de jornal, mapas, e um grande livro de capa grossa, coberto por **. Ethan tirou o pedaço de argila do bolso e colocou sobre a mesa. “Encontramos isso na nova estrada. A terra se abriu.” Henry examinou o símbolo, e seus dedos começaram a tremer. “Vocês mexeram no selo.” Ethan se inclinou. “Selo?” O velho o fitou com seriedade. “Os antigos deixaram marcas pra conter o que vivia aqui antes da luz. O primeiro sangue da tua família foi derramado pra selar aquilo. Era a condição.” Sarah franziu o cenho. “Condição de quem?” “Da água”, respondeu Henry, quase num sussurro. “A água tem olhos, menina. E ela não gosta de ser vista.” O silêncio tomou o cômodo. O vento bateu nas janelas, e uma vela se apagou. Ethan sentiu o mesmo frio que o envolvera na noite em que vira Sarah — a sombra. “O que acontece se o selo se romper?” perguntou. Henry não respondeu de imediato. Passou a mão sobre o livro, abrindo-o em uma página com desenhos circulares, linhas se entrelaçando como correntes. No centro, havia uma figura disforme — algo com dezenas de olhos e bocas abertas. “Quando o selo quebra, ela acorda. E vem buscar o que é dela. O sangue. A memória.” Ethan sentiu o estômago revirar. “Você está dizendo que algo vive ali embaixo?” Henry o encarou com uma calma terrível. “Não vive. Espera.” Sarah deu um passo atrás. “Isso é superstição. Nada mais.” Henry sorriu, sem humor. “Diga isso ao lago quando ele te chamar pelo nome.” Um som distante os interrompeu — grave, profundo, como um trovão subterrâneo. As paredes da cabana vibraram levemente. Ethan olhou pela janela: o pântano estava coberto de neblina, mas no meio dela havia movimento. Ondulações, como se a água fervesse. “É tarde demais, não é?” perguntou. Henry fechou o livro. “Nada dorme para sempre, menino Cole. E agora, o olho está aberto.” *******†*********†*******†******†**** De volta ao carro, Sarah tremia. “Ele é louco.” Ethan não respondeu. O som vinha do chão, de novo — fraco, mas constante, como um coração batendo sob a terra. Quando passaram perto da estrada da escavação, Ethan freou. As lonas que cobriam o buraco estavam rasgadas. O vento soprava do fundo, frio e úmido, com cheiro de ferro oxidado. Sarah o segurou pelo braço. “Não desce aí.” Ele pegou a lanterna e se aproximou da borda. O facho iluminou as paredes de lama, as marcas antigas… e algo novo. Um dos símbolos estava sangrando. O sangue escorria devagar, se misturando à terra. E então, do fundo, veio um som. Não era vento. Era um suspiro — longo, arrastado, quase humano. Ethan recuou, o rosto pálido. O buraco exalou um vapor branco, e por um instante, ele viu — ou pensou ver — um olho se abrir dentro da escuridão. Grande. Úmido. O olhar fixo nele. A lanterna piscou e apagou. Na escuridão, apenas uma voz, baixa, sussurrando entre as batidas do coração: "O sangue voltou."
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