O carro de Ethan Cole cortava a estrada sinuosa que levava a Darrow’s Hollow. O asfalto estreito, rachado pelo frio, se perdia entre árvores escuras, cobertas por uma névoa espessa que parecia respirar. Fazia mais de vinte anos desde a última vez que ele estivera ali, e ainda assim, cada curva soava familiar, o som dos pneus no cascalho, o cheiro de terra úmida e pinho queimado.
O rádio estava desligado. Não queria música, nem notícias. Só o som do motor e do vento, o tipo de silêncio que permite que a mente volte ao que se esforçou para esquecer. No banco do passageiro, uma caixa de papelão trazia o que restara da mãe: um álbum de fotos, um crucifixo de prata e uma chave pequena, enferrujada.
Quando viu o letreiro de madeira — “Welcome to Darrow’s Hollow – Founded 1763” — sentiu o estômago se contrair. As letras estavam desbotadas, cobertas por musgo, e o poste inclinava-se, como se cansado de sustentar o peso do tempo.
A cidade apareceu aos poucos. Casas antigas, algumas abandonadas, janelas fechadas por tábuas. O mercado local, o posto de gasolina, a antiga biblioteca municipal. Tudo parecia menor, mais gasto. O mesmo vento frio que agitava as folhas também carregava um cheiro agridoce vindo do lago — uma mistura de algas e ferrugem.
Ethan estacionou diante da casa da mãe. O portão rangia quando o abriu. A pintura azul descascava, revelando o cinza antigo da madeira. Entrou devagar, o piso rangendo sob seus pés. O ar era denso, imóvel, como se o tempo ali tivesse parado junto com ela.
Deixou as malas no corredor e ficou alguns segundos parado, ouvindo. Nada. Nem relógio, nem passos, nem vento. Apenas o silêncio absoluto, um tipo de silêncio que parecia observar.
Na cozinha, encontrou o bilhete que o advogado deixara sobre a mesa:
“Assinaturas na sexta. A propriedade é sua.”
Leu e guardou no bolso.
Abriu a janela. O vento frio entrou, trazendo o cheiro do lago.
Lá fora, o sol começava a se pôr, tingindo o céu de cinza e cobre. Ethan ficou olhando o horizonte. Do outro lado das árvores, o lago de Darrow’s Hollow brilhava como vidro escuro. Lembrava-se de nadar ali quando criança, com Tom Grady e Sarah Miller. Lembrava-se das histórias que a mãe contava sobre o “olho da água”, um ponto no centro do lago onde o reflexo nunca se movia, mesmo quando o vento agitava tudo ao redor.
Dizia que era amaldiçoado.
Que havia algo no fundo.
Ethan nunca acreditou.
Mas agora, parado na janela, sentiu algo se mover por baixo da superfície. Uma ondulação breve, isolada, que não condizia com o vento.
Deu um passo para trás sem perceber.
“É só o vento”, murmurou, tentando convencer a si mesmo.
Foi até a pia e abriu a torneira. A água saiu escura por alguns segundos, depois limpou. Lavou o rosto, mas o cheiro metálico ficou nas mãos.
Enquanto a noite caía, começou a ouvir o som — baixo, constante, quase imperceptível. Um eco que vinha do lago, como um zumbido distante. Era grave, rítmico, lembrando respiração.
Saiu da casa. O frio apertou. O chão úmido fazia barulho sob as botas. Caminhou até o final da rua, onde a floresta se abria para a margem do lago.
A neblina cobria quase tudo. Só se via o brilho difuso da água, imóvel, refletindo o pouco de luz que restava no céu. Ethan ficou parado, observando.
Então, ouviu novamente.
Aquele som.
Parecia vir de dentro do lago.
Um estalo profundo, seguido de um leve tremor na superfície.
A água se moveu, formando um círculo.
E, por um instante, teve a impressão de ver um ponto luminoso sob a camada escura — algo que o encarava de baixo. Um olho.
Piscou. A luz sumiu.
Mas o círculo continuava, expandindo-se lentamente, até desaparecer na neblina.
O vento cessou.
O silêncio voltou.
Ethan sentiu o coração acelerar, uma sensação antiga, quase infantil — o medo puro, irracional.
Voltou apressado para casa, mas antes de entrar, olhou para trás. O lago estava imóvel novamente.
Mesmo assim, a sensação persistia.
A de que algo o observava da escuridão.
A noite avançou devagar sobre Darrow’s Hollow.
Dentro da casa, Ethan acendeu apenas uma lâmpada antiga sobre a mesa da cozinha. A luz amarelada formava um círculo pequeno no ambiente, deixando os cantos mergulhados em sombra. O relógio de parede havia parado em 11h47, talvez há anos.
Preparou café, mas o cheiro do ** queimado e da água velha o fez desistir. Sentou-se à mesa, olhando para o vazio. O som do lago ainda ecoava em sua mente, aquele ruído abafado que lembrava respiração.
Abriu o álbum de fotos da mãe.
Nas primeiras páginas, ele era uma criança sorridente, coberto de lama, ao lado de Tom Grady. Atrás deles, o lago — sempre o lago — refletindo o céu. Havia algo incômodo na imagem, um borrão de luz na superfície, quase como se alguém ou algo observasse o fotógrafo.
Virou as páginas. Encontrou uma carta amarelada, dobrada entre as fotos. Reconheceu a caligrafia da mãe.
“Ethan, se algum dia voltar, não vá até o lago à noite. Há coisas que o tempo não conseguiu enterrar.”
Leu duas vezes. O coração acelerou. Guardou o papel com cuidado.
Subiu as escadas, cada degrau rangendo como se protestasse contra o peso do retorno. O corredor cheirava a mofo e lembranças. As portas dos quartos estavam entreabertas. Entrou no antigo quarto dele. O papel de parede desbotado mostrava desenhos de estrelas. Na estante, alguns livros escolares ainda estavam lá — História da Nova Inglaterra, mitos e lendas locais, um atlas amassado.
Deitou-se na cama sem tirar os sapatos. O colchão era duro e frio. Queria dormir, mas o silêncio o impedia. Sentia o vento bater nas janelas, e às vezes, algo mais. Um som lento, irregular, como goteira — mas não havia chuva.
Levantou.
Foi até a janela.
O lago estava invisível atrás da névoa, mas podia jurar que a escuridão tinha movimento.
E então ouviu.
Um som suave, vindo de dentro das paredes.
Toc, toc, toc.
Três batidas, espaçadas.
Como se alguém tocasse do lado de fora, no revestimento da madeira.
Ficou parado, o corpo inteiro em tensão. As batidas cessaram.
Esperou alguns segundos. Depois, o som recomeçou — mais perto, mais alto.
Desceu devagar as escadas, tentando não fazer ruído. O coração batendo forte no peito. A lâmpada da cozinha piscava.
Toc. Toc. Toc.
O som agora vinha da porta dos fundos, a que dava para o quintal e, mais além, para o caminho que levava ao lago.
Ethan parou diante da porta.
Inspirou fundo.
Abriu devagar.
O frio entrou como uma lâmina.
Lá fora, o quintal parecia maior, tomado por neblina espessa. Nenhum movimento, nenhuma figura. Só o som do vento nos galhos.
Deu um passo para fora.
A madeira da varanda gemeu.
Olhou para o chão: pequenas marcas úmidas, circulares, como pegadas deixadas por algo pesado que tivesse gotejado. As marcas seguiam até o portão, e depois desapareciam na direção do lago.
Uma gota caiu em sua mão.
Olhou para cima — nada. O céu limpo, sem nuvens. Outra gota caiu, escura, quase n***a.
O instinto o fez correr para dentro. Trancou a porta, encostou as costas nela e ficou ali, respirando rápido.
O som cessou.
Mas o silêncio agora parecia mais pesado, mais vivo.
Foi até a janela e puxou a cortina.
Do lado de fora, na névoa, algo se movia. Lento, fluido, como se deslizasse sobre o chão. Não conseguia distinguir forma, mas havia luz. Um brilho fraco, pulsante, lembrando um olho.
Ficou paralisado, tentando entender se era reflexo, alucinação ou lembrança.
O brilho sumiu.
O vento voltou a soprar, e com ele, um sussurro baixo — uma voz quase humana, que parecia vir do próprio lago. Ethan não entendeu as palavras, mas sentiu o significado. Era um chamado.
Voltou para a cozinha e pegou a garrafa de uísque esquecida no armário. Serviu um copo. Mãos trêmulas. Bebeu.
— É só o cansaço — disse para si mesmo. — É a viagem, a falta de sono.
Mas, ao olhar para a janela novamente, teve certeza:
o reflexo do vidro mostrava algo atrás dele, por um instante — uma sombra alta, de contornos líquidos, parada no canto da sala.
Virou-se rápido.
Nada.
Só o ar frio, e a sensação de que a casa respirava com ele.
***************
Ethan acordou com o som do relógio caindo da parede. O impacto ecoou pela casa como um disparo. O ponteiro das horas havia se soltado e girava sobre o chão, lento, até parar apontando para a janela.
O quarto ainda estava escuro, embora a madrugada já estivesse quase terminando. Um nevoeiro azulava o ar. Sentia o corpo pesado, a boca seca, a cabeça latejando. Não lembrava de ter dormido.
Levantou-se e foi até a janela.
O lago estava visível outra vez. A névoa agora se movia, arrastada por um vento que parecia vir de dentro da água.
Lá fora, o silêncio era absoluto. Nenhum pássaro, nenhum som de inseto. Só aquele vento gelado e constante, como um fôlego longo.
Ethan percebeu algo estranho: a porta dos fundos estava entreaberta.
Tinha certeza de tê-la trancado.
Desceu rápido.
O chão frio sob os pés, o som do piso rangendo com cada passo. Quando alcançou a cozinha, a lâmpada oscilava, emitindo um zumbido fraco.
Empurrou a porta. O ar da madrugada entrou, cheirando a ferro e podridão.
O quintal estava coberto por marcas. Não pegadas, mas círculos de umidade que pulsavam, como se respirassem. Ele se aproximou. As manchas evaporavam devagar, soltando um vapor esbranquiçado.
O som começou outra vez.
Um eco grave, ritmado, vindo do lago.
Ethan ficou imóvel, sentindo o coração acelerar. O som aumentava, repetindo um padrão — como se algo batesse do outro lado da água, tentando se comunicar.
E então ouviu o nome dele.
Baixo, arrastado, quase um sussurro:
“E...than...”
Congelou.
O som vinha de longe, mas parecia estar ao seu lado.
Olhou em volta. Nenhuma alma viva. Só a neblina, o frio e aquele chamado.
Deu alguns passos em direção à margem. Cada movimento parecia errado, mas não conseguia parar. O lago o atraía, silencioso, vasto, escuro.
A superfície estava imóvel. Tão lisa que refletia as árvores e o céu sem falha alguma. Quando chegou mais perto, viu algo no centro: um ponto brilhante, dourado, imóvel — como uma estrela afogada.
Ethan piscou, e o brilho pareceu se aproximar. Lentamente, o ponto expandiu-se, como se a água o trouxesse para mais perto.
O som aumentou.
Um murmúrio grave, vibrando dentro do peito dele.
O vento cessou.
Tudo ficou estático.
Então, o lago se mexeu.
Ondulações se formaram em volta do ponto luminoso, girando em círculos perfeitos. E no meio delas, algo subiu. Não uma forma definida — apenas movimento, densidade, matéria viva.
Ethan deu um passo atrás.
O chão sob os pés afundou na lama.
O brilho desapareceu.
No lugar dele, uma escuridão líquida, densa, pulsante.
E foi quando viu — por menos de um segundo — o que parecia ser um olho. Enorme, translúcido, flutuando sob a superfície, como se o lago inteiro fosse apenas a pálpebra de uma criatura adormecida.
A visão o paralisou.
O ar sumiu.
O olho piscou.
A água se abriu num estalo. Uma rajada de vento gelado varreu o rosto dele, fazendo-o recuar. A neblina se ergueu como fumaça viva, envolvendo tudo.
Quando tentou correr, tropeçou e caiu de joelhos. As mãos afundaram em algo úmido.
Era lama. Mas havia algo mais — uma textura viscosa, quente, quase orgânica.
Ergueu-se, ofegante, e correu de volta à casa. Bateu a porta, trancou-a e encostou-se nela, tremendo.
O som parou.
Nenhum vento, nenhum ruído.
Por um instante, acreditou estar seguro.
Foi até a pia, acendeu a luz. O reflexo no vidro da janela mostrava seu próprio rosto — pálido, suado, os olhos arregalados. Aproximou-se, tentando controlar a respiração.
E então o reflexo piscou.
Mas ele não.
Congelou.
O reflexo sorriu — um sorriso lento, distorcido, que não lhe pertencia.
Ethan recuou, o coração disparado. A luz piscou, e o vidro estalou, abrindo uma rachadura fina, que atravessou o reflexo bem no meio do olho.
A rachadura pulsou.
De dentro dela, escorreu uma gota escura, que desceu pelo vidro e caiu na pia com um som seco.
Ploc.
Ele ficou parado, olhando a marca que a gota deixara — um círculo perfeito, n***o, como a pupila de um olho.