6. As Lendas De Darrow's Hollow

2839 Palavras
O dia seguinte amanheceu com o mesmo cinza pesado que parecia pesar sobre Darrow’s Hollow desde o desaparecimento de Danny Harper. O céu permanecia imóvel, e até o vento, que às vezes soprava do norte, parecia hesitar antes de cruzar a cidade. As ruas estavam quase desertas. As janelas, fechadas. Crianças mantidas em casa, proibidas de brincar nas calçadas. Os adultos andavam apressados, falando baixo, como se temessem que o próprio ar pudesse ouvir. O medo já não era murmúrio — era presença. Estava em cada esquina, em cada olhar rápido e desviado. O desaparecimento de Danny não fora apenas uma tragédia. Fora um aviso. Ethan sentia isso a cada passo. O silêncio da cidade pesava sobre os ombros como uma sentença. O som de suas próprias botas contra o asfalto parecia alto demais, deslocado, quase uma profanação. Sarah o encontrou próximo à antiga loja de ferramentas, o rosto tenso, o olhar cansado. “Não podemos continuar às cegas”, disse, sem rodeios. Ethan concordou. Sabia que ela tinha razão. “Precisamos falar com Henry Calder. Ele conhece a história real de Darrow’s Hollow — os segredos que a cidade tentou enterrar.” ************ A cabana de Henry ficava afastada, na borda do pântano, entre árvores antigas que pareciam dobrar-se sobre o telhado como mãos protetoras. A neblina ali era mais espessa, quase sólida, como se o tempo se movesse mais devagar. A cada passo, o som da floresta se tornava mais abafado, mais úmido, e Ethan teve a estranha sensação de que o ar observava. A floresta parecia viva, respirando no mesmo compasso que seus passos. Quando chegaram, Henry os esperava. Nenhuma surpresa em seu rosto — apenas resignação. “Eu sabia que voltariam”, disse ele, apoiando-se no bastão. A voz soava gasta, mas firme, como se viesse de um tempo anterior à própria cidade. Ethan colocou sobre a mesa o pedaço de argila com os símbolos. “Isso estava na escavação. Está ligado ao desaparecimento de Danny. Precisamos entender. Precisamos das lendas.” Henry observou o objeto em silêncio, os olhos claros refletindo o brilho do lampião. Depois, suspirou. “As lendas de Darrow’s Hollow não foram criadas para assustar crianças. Foram deixadas como advertência.” Apoiou o bastão ao lado e continuou: “Antes mesmo dos colonos, havia aqui povos antigos. Tribos e cultos que reverenciavam algo que vivia sob o lago.” Sarah franziu o cenho, a incredulidade misturada ao medo. “Algo sob o lago?” Henry assentiu lentamente. “Uma presença antiga. Antes da luz, antes das cidades, antes da própria memória humana. Eles chamavam de ‘A Coisa’. Um ser que se alimenta do que o homem teme lembrar — o medo, a culpa, a memória do que foi esquecido.” O velho passou os dedos trêmulos sobre o pedaço de argila. “Para mantê-la adormecida, realizavam rituais. Sangue, símbolos, selos. O sangue de certas famílias sustentava o equilíbrio. E a sua família, Ethan, estava entre elas.” Um frio percorreu a espinha de Ethan. A verdade parecia mais pesada do que o ar. Cada palavra de Henry encaixava-se perfeitamente com o que ele temia desde que retornara à cidade. O olho sob a água. Os sussurros. O sangue nos símbolos. Tudo estava conectado. “Então o que está acontecendo agora?” perguntou, a voz rouca. Henry aproximou-se do livro antigo sobre a mesa. As páginas, amareladas, pareciam respirar sob a luz do lampião. “O selo foi perturbado. A criatura desperta. O desaparecimento de Danny é apenas o primeiro sinal. Ela observa, aprende, e o medo a alimenta. Quanto mais a cidade teme, mais forte ela se torna.” Sarah olhou para Ethan, assustada. “E como podemos detê-la?” Henry levantou o olhar, firme. “Ainda é cedo para isso. Primeiro, vocês precisam compreender as lendas. Entender os sinais. Ler o diário antigo de 1887. Só conhecendo o que está sob o lago poderão enfrentar o que desperta.” Um estalo seco atravessou o chão da cabana, fazendo os três olharem ao redor. Ethan sentiu o mesmo arrepio que o acompanhava desde a floresta. Henry não se moveu. “Ela sabe”, disse baixo. “Sabe que vocês sabem. E cada passo que derem será observado.” *********** O velho começou então a narrar. Falou de desaparecimentos esquecidos, de crianças que sumiam em noites de névoa. De rios que mudavam de curso sem razão aparente. De sombras que sussurravam nomes humanos na escuridão. As histórias soavam antigas demais, quase mitológicas, mas cada uma carregava detalhes que faziam sentido — símbolos repetidos, sons descritos, marcas idênticas às encontradas por Ethan na escavação. A medida que Henry falava, a cabana parecia encolher. A luz oscilava, lançando sombras que se moviam sozinhas pelas paredes. Sarah ouvia em silêncio, os olhos presos no velho, mas o corpo tenso, pronto para reagir. Ethan, por sua vez, observava as anotações, tentando ligar as lendas à realidade. Quando saíram, o sol já se punha atrás das colinas, tingindo a névoa de dourado e cinza. A cidade, ao longe, estava muda. Mas o lago... O lago não descansava. Ondulações finas percorriam sua superfície, pequenas, rítmicas, refletindo a névoa como olhos disfarçados. Ethan sentiu o olhar. A criatura estudava. Aprendia. E esperava. O vento soprou, fraco, trazendo um sussurro quase imperceptível: "Vocês estão prontos para ver a verdade?" Ethan apertou o pedaço de argila nas mãos. Sabia que o próximo passo seria decifrar o diário. Entender os símbolos. Encarar o que dormia sob a água. ********** Mais tarde, de volta à cabana, o lampião queimava baixo. Ethan sentou-se à mesa, o diário antigo aberto diante dele. As páginas frágeis exalavam o cheiro agridoce do tempo. As letras, escritas com precisão obsessiva, dançavam entre manchas escuras que poderiam ser sangue. Os símbolos — círculos, espirais, marcas retorcidas — pareciam se mover sob a luz. Henry observava, silencioso. Sarah se inclinou, estudando as páginas, o rosto iluminado pelo brilho trêmulo do lampião. Cada desaparecimento, cada evento inexplicável estava registrado ali. Tudo meticulosamente datado. Ethan folheou o diário com cuidado, até parar em um trecho específico. Leu em voz baixa: “A presença adormece sob o olho da água. O selo mantém a ordem, mas apenas o sangue dos Cole pode sustentá-lo. Qualquer perturbação e ela despertará, sedenta pelo medo humano.” O estômago de Ethan se contraiu. A confirmação estava ali, escrita há mais de um século. Sua linhagem era a chave. Sua família havia mantido o m*l contido — e agora, o selo se quebrara. Sarah o observava, a respiração presa. “Então... você faz parte disso?” Ethan respirou fundo. “Parece que sim. O diário deixa claro. Minha família sustentava o selo. E agora ele falhou — talvez muito antes de mim.” Henry se aproximou, apontando para um símbolo circular no rodapé da página. “O culto acreditava que o sono da criatura só podia ser mantido com rituais de sangue. O selo não é feito de pedra, mas de lembrança. Quando o medo retorna, o selo treme. E quando o selo treme, o olho se abre.” O vento soprou pela janela, balançando as cortinas e virando uma página do diário. As palavras ali escritas pareciam pulsar: O medo é a chave. O medo é alimento. Henry fixou o olhar na escuridão lá fora. “Ela sente cada pensamento. Cada emoção. Está mais próxima do que imaginam.” Sarah passou a mão pelos cabelos, tentando conter o tremor. “Então... Danny...” Henry assentiu. “O primeiro. Ela testa. Observa. Aprende o gosto do medo antes de tomar o corpo.” Ethan fechou o diário devagar, o som seco do papel ecoando pela cabana. O peso daquilo o esmagava. Tudo convergia para sua família. Para ele. Um estalo ecoou lá fora — um som que se repetia desde a primeira noite. Rítmico. Paciente. Como batimentos subterrâneos. Ethan olhou para Henry. “Ela não vai parar, vai?” O velho negou com a cabeça. “Não enquanto houver medo. Não enquanto vocês a alimentarem.” ************ Horas depois, a cabana estava mergulhada na penumbra. As chamas do lampião projetavam sombras que pareciam respirar. Henry contou as histórias que não estavam no diário — as que ninguém escrevera. Sobre rituais à beira do lago. Sobre cavernas sob a terra. Sobre selos marcados com sangue. E cada história terminava da mesma forma: desaparecimentos. Olhos na água. Silêncio. Ethan ouviu tudo em silêncio. Cada palavra parecia gravar-se em sua mente, pesada, definitiva. Sarah observava o lago pela janela, o reflexo da lua tremendo na superfície como se o próprio olho piscasse. “Ela sabe que estamos tentando”, disse Henry, sem virar o rosto. “Cada pensamento de resistência é uma centelha que a atrai.” Um vento atravessou a janela aberta. As páginas do diário se moveram sozinhas. E por um instante, Ethan teve a nítida sensação de que não eram apenas eles que liam. “Está aqui”, murmurou. “Entre nós.” Henry assentiu. “E cada hesitação nossa a fortalece.” O trio ficou em silêncio. O som distante da floresta enchia o ar — estalos, farfalhar de folhas, algo rastejando. O lago, ao longe, refletia a névoa como uma pupila imóvel. Antes que saíssem para descansar, Henry olhou fixamente para Ethan. “O próximo passo será entender o passado. Decifrar cada símbolo. Só assim terão alguma chance.” Um último sussurro atravessou as paredes da cabana, gelando o sangue dos três: "O olho observa. E vocês são os próximos." E então, o vento cessou. O silêncio caiu como um manto. Ethan sentiu que, dali em diante, cada palavra, cada respiração, seria observada. O m*l não esperava mais. O m*l aprendera a olhar. O sussurro ainda ecoava no ar quando o silêncio se instalou novamente dentro da cabana. Henry permaneceu imóvel, os olhos fixos na porta como se esperasse que algo a atravessasse. Ethan sentia o coração bater forte demais, um som abafado dentro do peito que parecia ecoar pelo chão. Sarah respirava devagar, tentando conter o tremor nas mãos. Do lado de fora, o vento cessara completamente. Nem o farfalhar das folhas, nem o som dos insetos — apenas o silêncio absoluto, denso, quase líquido. Era como se a floresta estivesse escutando. Ethan passou a mão sobre o diário fechado. As páginas pareciam mais frias do que antes, e por um instante ele teve a sensação de que o livro respirava — lenta, profundamente, como um ser adormecido. A lamparina vacilou, lançando sombras que se alongaram sobre as paredes de madeira. Sarah quebrou o silêncio, a voz baixa, rouca. “E se ela estiver aqui, agora?” Henry olhou para ela sem desviar o olhar. “Ela está.” Ethan ergueu a cabeça. A firmeza na voz do velho o gelou. Henry não parecia falar em metáforas. Falava com a certeza de quem já vira aquilo antes. “Ela sempre está, quando o nome dela é lembrado.” A chama da lamparina diminuiu, como se o ar rareasse dentro da cabana. O frio penetrou pelas frestas das janelas, e o estalo da madeira se misturou ao som distante — uma sequência de três batidas, lentas e compassadas, vindas do pântano. Ethan ficou de pé. O som se repetiu. Três batidas. Depois silêncio. Depois mais três. Um ritmo antigo, metódico, como uma prece invertida. Henry se aproximou da janela, os olhos marejados de luz. “O som dela. O mesmo que antecedeu as outras vezes. A terra avisa quando o selo se move.” Ethan sentiu o corpo inteiro enrijecer. “O selo... está quebrando?” Henry não respondeu. Apenas fitava o escuro entre as árvores, onde a névoa parecia formar contornos — algo quase humano, mas fluido, sempre mudando de forma. O reflexo da lamparina no vidro criava a ilusão de olhos. Muitos olhos. Sarah deu um passo para trás, o corpo rígido. “Não são só sombras...” “Não”, disse Henry, sem se mover. “São ecos. Fragmentos do que ela foi antes de dormir.” A cabana pareceu gemer. O chão tremeu levemente, um estremecimento quase imperceptível, como o de um corpo tentando acordar. Ethan colocou a mão sobre a mesa para manter o equilíbrio. A lamparina se apagou. Por um instante, a escuridão foi total. E dentro dela, o som. Um arranhar suave. Não na janela. Não na porta. Mas sob o assoalho. Sarah prendeu o fôlego. Ethan inclinou-se, escutando. O som se movia lentamente, como algo que rastejava debaixo deles. Henry, calmo apesar do terror, sussurrou: “Não olhem. Ela quer ser vista. É assim que ela escolhe.” Mas já era tarde. Ethan olhou. Por entre as frestas do piso, um brilho tênue se movia — não dourado, nem prateado, mas de um tom indeciso, como luz filtrada pela água. Era o mesmo brilho que ele vira no lago. O mesmo olho. O mesmo olhar. Ele recuou, tropeçando. Sarah agarrou seu braço. O chão cessou de vibrar. O silêncio voltou. Henry acendeu novamente a lamparina, as mãos trêmulas. A chama revelou rostos pálidos, suados, e olhos que não piscavam. “Ela só quer que saibam que estão sendo observados”, murmurou o velho. “O olho nunca dorme.” Ethan respirou fundo, tentando conter o desespero que subia como uma onda. “Então é isso... o selo não está apenas se rompendo. Está reagindo.” Henry assentiu. “E o medo é o que o alimenta. Quanto mais vocês sentem, mais ela desperta. Ela se move entre o pensamento e a lembrança, entre o que existe e o que foi esquecido.” Sarah passou as mãos no rosto, os olhos marejados. “Isso significa que ela está dentro de nós?” Henry fitou-a por um momento longo, pesado. “Está dentro de tudo o que teme o que não entende.” Ethan abriu novamente o diário. As páginas pareciam vibrar sob seus dedos. As linhas escritas em tinta escura ondulavam levemente sob a luz, como se a escrita ainda estivesse viva. Ele leu em silêncio uma passagem curta, quase ilegível: "Quando o selo se mover, a terra respirará. Quando a água olhar de volta, o homem lembrará seu papel." As palavras queimaram dentro dele. Lembrar. Era sempre sobre lembrar. “Ela quer que a gente lembre”, disse Ethan, num sussurro. “Mas de quê?” Henry respondeu com voz grave, cansada. “De onde viemos. Do que fizemos para mantê-la dormindo. E do que sacrificamos para que ela esquecesse.” O vento voltou a soprar do pântano, frio e carregado de cheiro metálico. A lamparina oscilou novamente. E por um instante, o reflexo da chama no vidro da janela se multiplicou — dezenas de olhos dourados observando-os da escuridão. Sarah fechou os olhos. Ethan ficou imóvel, sem respirar. E Henry, com a voz firme e baixa, pronunciou as palavras antigas que pareciam acalmar a casa: “Que o olho veja, mas não acorde. Que a água respire, mas não se levante.” O vento cessou. Os reflexos desapareceram. A cabana voltou ao silêncio. Por um momento, o trio permaneceu ali, em silêncio absoluto. Ethan percebeu o peso do diário em suas mãos e o guardou com cuidado. Sabia que aquela noite havia selado algo. Não apenas o início de uma busca — mas o reconhecimento de que estavam sendo observados a cada passo. Henry quebrou o silêncio, num tom quase solene: “Ela agora sabe o nome de vocês. E isso muda tudo.” Do lado de fora, a floresta voltou a respirar. Um único som — lento, rítmico, familiar. Três batidas. Um intervalo. Mais três. O selo pulsava. E, quando Sarah se virou para fechar a porta, um último sussurro atravessou o vento, tão baixo que quase se confundiu com a respiração da terra: "O olho observa. O selo treme. A lembrança desperta." ******* Ethan permaneceu por alguns segundos imóvel, os olhos fixos na escuridão além da janela. Sabia que dali em diante nada seria igual. O que estava sob o lago — aquilo que Henry chamava de “a presença” — agora tinha consciência. E ele, mais do que qualquer outro, podia senti-la. Sarah tocou seu ombro. “Vamos sair daqui.” Ethan assentiu, mas antes de atravessar a porta, lançou um último olhar ao diário sobre a mesa. A lamparina ainda tremia, e por um instante, jurou ver as letras se moverem. A palavra “olho” parecia expandir-se, tomando forma, como se algo dentro da página tentasse atravessar o papel. Pisou para fora da cabana. O ar estava pesado, a névoa mais espessa, o som do lago longínquo parecia vir debaixo da terra. Henry ficou na porta, observando-os partir. O velho não sorriu. Apenas murmurou, como quem fala para a própria noite: “Agora é tarde demais para fugir.” E, enquanto Ethan e Sarah se afastavam, o vento soprou entre as árvores, carregando de volta o mesmo eco que os acompanhava desde a floresta: "O olho observa. E vocês são os próximos."
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR