2 Cont Serpente

2196 Palavras
A boca amanheceu com aquele cheiro de café forte e olhares. Quem conhece meu ritmo sabe que não se descansa quando tem coisa para ajeitar. Sentei na mesa velha de sempre enquanto Cobra acendia o primeiro cigarro do dia e o Nerd não desgrudava do notebook — o cara vive dentro da tela, e o que sai dali vale mais do que arma às vezes. A sala da “boca” é meu posto de comando: mesa, papelada, uma antena improvisada, rádio chiando com mil conversas, e o mapa das zonas colado na parede. É ali que eu resolvo as contas. — Patrão — Cobra começou, com a voz arrastada — O servidor tá limpo. Ninguém furou nossa rede, nem as câmeras. O Nerd deixou tudo no esquema, firewall, spoof, o escambau. Tô marcando a ronda também, ninguém chega perto da mansão sem avisar. Eu respirei e levantei um pouco a mão, sinalizando que tava satisfeito. Informação é território agora: sem controle do digital, você vira fantasma. — Bom — falei. — Nerd, atenção máxima nisso. Quero que você vasculhe tudo sobre a mina que eu peguei ontem da praia. Histórico, família, contato, fotos, redes social ativa.Quero qualquer arquivo que diga quem é. E mais — retoma a investigação da morte da Jessica e do nosso filho. Quero levantar quem eram os policiais que passaram na rua daquela noite, nomes, viaturas, escala, tudo. Hoje. Entendeu? Hoje eu vou fazer o estrago que eu tinha que ter feito, mas não pude porque estava preso, tem o corpo da minha mulher e do meu filho me deixaram enterra, só me mandaram o vídeo queimando eles, depois falam que polícia é boa, com bandido e sua família. O Nerd nem piscou. Dedos voando no teclado como se estivessem catando informação do ar. A gente não pode errar. Se tem fio que leva àquele dia, eu vou puxar até o juiz sujar as mãos dele, porque ele me prendeu como o mandante da morte da sua filha, só que ela era a mulher que eu amava, e ele não aceitou isso. Cobra se encostou na cadeira, olho lento, mas eu vi a chama dos olhos nele. Todo mundo que tá comigo sabe que eu não brinco quando falo em justiça. E a justiça que eu quero é direta e suja do mesmo jeito que foi comigo. Não vou deixar barato. Fechei mais umas pontas de negócio; negociação dura, firma de alianças com outro morro, promessa de respeito e proteção. Tem portas que eu preciso deixar abertas e outras que eu preciso trancar com chave de chumbo. Saí dali tarde, com o peso de quem tem promessa pra cumprir, o Cobra veio comigo. _ Aí bora curtir sua liberdade, pegando só as top lá da Fabiana, aquela ali ensinou sou putas a trabalhar certinho, igualzinho ela, e o marido tem desconfia que ela é a dona do puteiro que ele frequenta- Cobra fala rindo e eu nego _ Hoje estou de boa, mas amanhã já pode deixar fechado pra nós e nossos vapores que eles merecem- falei e ele já riu _ Já vou lá passar pra ela o pedido, e já aproveitar a p*****a da Karina. Sai de la e fui pra mimha moto, hoje eu queria ter almoçado em casa — um gesto simples que eu precisava, mas não consegui, tive que almocar la da boca mesmo, entao agora vou compra dois lanches, pra mim e pra Talita. Parei na lanchonete da esquina, pedi dois X-tudo duplos e uma Coca, paguei com notas grossas e saí de volta pra minha moto. O motor fazia aquele ronco que acostuma o morro,a me ver chegar. A mansão lá em cima do morro sempre aparece aos olhos de quem sobe: muro alto, portão branco, grama aparada, garagem com cinco carros blindados alinhados como sentinelas. Alguns acham que é extravagância, eu chamo de fortaleza. Tudo que eu conquistei foi pra poder proteger o que sobra de bom da minha vida. E olha que o que sobrou é pouco,e também preciso honrar o morro que eu herdei do meu coroa. Entrei na casa — luxo frio, tecnologia no lugar certo, aromatizador que não disfarça a saudade — e vi Talita sentada na sala, imóvel, olhando pra televisão desligada como se numa espera ela fosse ligar. O sofá grande pareceu pequeno do lado dela; a sala imensa e silenciosa. A adega com vinhos que Jessica gostava brilhava ao lado do bar, as prateleiras com whisky punham o brilho de sempre; tudo na casa lembra ela. Meu corpo travou por uma fração de segundo. O encontro dela com o mar e a semelhança com Jessica ainda martelavam minha cabeça. _ Aí meu Deus que susto, você me deu- ela falou com a mão do seu coração. — Não queria lhe assustar — falei entrando mais pra dentro — desculpa. — Coloquei as sacolas na mesa, tirei a tampa da Coca e senti o som do gás subir como se fosse detonador. — Por que tá aí olhando a TV desligada? Ela virou o rosto devagar. Os olhos grandes, a pele ainda com algumas marcas, e aquele olhar que me apertou o peito: igualzinho ao rosto dela, mas era triste, e inocente, menos astuto. Uma versão quebrada, como se o mundo tivesse lhe deixado esquecida para ser machucada. — Meus pais — ela disse com a voz como se puxasse lembranças — por mais que fossemos ricos, não me tratavam bem. Eles não vê em mim a mesma potencia dos meus irmaos, que são tão ruins ou piores que eles, essas coisas. Queriam que eu tivesse postura, me deixaram terminar os estudos, e fazer a faculdade que eu quis de médica, porque uma família de médicos amigo deles viu potencial em mim, e até brincaram sobre me casar com o filho deles, que também cursava medicina da Italia- ela fala triste Aquela frase disparou dentro de mim lembranças da minha Jéssica. Ela também tinha umas brigas com os pais sobre o futuro — gente querendo moldar a vida dela com diploma. Jessica sonhava em ser advogada, mas era pra trabalhar ao meu lado,mesmo que eu soubesse quem era seus pais, a gente nao tinha medo deles, e ate ajudei ela a terminar sua faculdade. Eu fechei a cara, lembrando de quando ela me dizia que não queria palanque, que queria sentir a vida no próprio peito. E foi isso que a tiraram. Palavras de pessoa rica e posição que valem pouco contra bala e covardia. — Só minha babá Helo que cuidava de mim — continuou Talita — Ela me dava comida, conversava, me deixava ser criança. Os meus pais deixavam os funcionários decidirem como eu devia ser, mesmo se eu não fizesse nada, poderiam me bater. A simples menção da babá me puxou lá pra baixo — a ideia de que a vida dela foi entregue a estranhos, que era levada por mão alheia sem ter família de verdade. p***a, eu senti raiva. Raiva de quem tem tudo e acha que subcontratar alma resolve. E também senti um tipo de ternura feroz: essa mina não merecia nada da merda que passou. — Aqui — falei, e a voz saiu dura como sempre — aqui você tem opção. Pode ligar a TV, comer quando quiser, usar a piscina, ir lá fora com o Rui e o Neguinho, só me avisar antes. Eles são meus vapores de confiança. Podem te levar e te mostrar o morro quando você estiver pronta. Ela olhou pro meu rosto como se me disse a sinceridade. Eu não era flor que se cheirar, mas também não queria ser só medo. Queria ser porto seguro, queria ser confiança.— Trouxe lanche — avisei — Desço rapidinho, só vou tomar banho rapidinho. Você arruma a mesa? Ela sorriu timidamente, algo quase de criança, e foi ajeitar o prato como se cada talher fosse um tesouro novo. Fui pro banheiro, deixei a água quente tocar o corpo com pressa de lavar o dia. De dentro do vapor, pensei no plano: Nerd vasculhando, Cobra fechando os passos. Eu precisava dos nomes dos policiais que entraram na nossa rua naquela noite como se a vida deles fosse troféu. Os nomes tinham que perder o brilho, só não vou atacar a família deles porque não sou covarde assim. Quando saí, a casa estava com cheiro de comida e tabaco. Talita tinha colocado os lanches na mesa com cuidado; parecia que montar um prato era um ato quase religioso pra ela. Sentei e percebi que o modo como ela pegou o X-tudo, a forma como mordeu a primeira fatia — tudo era novo. Ela comeu devagar, segurando o lanche com respeito, como quem prova algo proibido. — É a primeira vez que come isso — falei, com o copo na mão — é? Ela assentiu, olhando o pão, as batatas, e a expressão dela me bateu no peito. Nunca comeu lanche, nunca comeu pizza. A briga do homem dentro de mim, era aquela mistura de raiva e calor, subiu. Queria quebrar tudo e procurar os pais dela, mas respirei, contei até três e segurei a fera. Não era hora de fuzilar todo mundo com perguntas. Era hora de ganhar a confiança e colher a verdade. A conversa foi desatando. Ela falava das viagens curtas que fazia com a babá, do tédio das casas de luxo cheias de silêncio, do medo que aprendeu a ter por causa das ordens da família. Eu ria baixo com cada bobagem, e por vezes a gente desviava a risada e lembrava do que nos trouxe aqui: a razão da minha vigília era a morte da minha Jéssica. Entre uma mordida e outra, eu contei pra ela, em poucas palavras, sobre Jessica, sem falar seu nome, e sem falar que as são identicas,sobre como a casa inteira cheirava a lembrança dela, sobre o filho que hoje faria cinco anos. A menção do filho fez ela parar. O olhar que ela me deu foi de pena. Talvez por saber o que é vida dirigida por outro. — Eles eram rígidos — ela repetiu — Quiseram me moldar. Mas eu queria ter gostado de música, de andar sem hora, de não ter tanta regra, e principalmente ser amada como meus irmãos sempre foram. A fragilidade da fala me cresceu um nó na garganta. Jéssica gostava do simples assim como ela queria ter gostado. E Talita com esse olhar triste era o espelho do que perdeu.Não era só semelhança — era lembrança viva, e eu tinha que ter cuidado pra não confundir amor com memória. Jessica está morta. Isso eu repeti como um mandamento: jura que não ia deixar que a dor me enganasse, e não posso usar essa garota que já sofreu muito. _ Quantos anos você tem Talita- perguntei e ela sorriu _ Tenho vinte e três anos, faço vinte e quatro, agora dia 24 de Abril- ela fala simples Só que aí não podia ser, a garota é idêntica a Jessica, tem as mesmas vontades bem dizer, mesmo não vivendo nada em sua vida, e ainda fazem aniversário do mesmo dia, só fiz um tendi. Depois do lanche, levei-a até o quarto ao lado do meu. Mostrei o armário, a cama, a janela com vista pro lado das árvores. — Esse quarto é seu — falei — Hoje eu vou lhe emprestar uma cueca minha, e uma blusa, e amanhã você é a Maria saem pra comprar roupas pra você, aqui do morro, pede pro Rui ou pro Neguinho ir com vocês- falei Ela tocou o lençol, sorriu e chamou o lugar de “meu quarto” com uma voz miúda que me deu vontade de abraçar ela. Eu aceitei que proteger essa mina era minha obrigação agora, uma obrigação que vinha tanto do rancor quanto da compaixão. E tinha uma alerta claro: eu não ia deixar a morte da minha esposa ficar sem resposta, deixei ela ali, e fui do meu quarto pega a roupa, entreguei a ela, lhe deu boa noite, e fui pro meu quarto. Antes de dormir escovei os dentes, olhei pro lado e vi a porta fechada do closet dela — sempre trancado a do meu lado, aberta, porque a casa tem que respirar alguma novidade. Deitei e fechei os olhos, mas a mente não desligou. Pensei no Nerd revirando acesso, nos logs das viaturas, nos nomes, pensei em Talita, naquela primeira mordida do lanche. Pensei no filho que faria cinco anos e imaginei o riso de uma criança que nunca vi. A promessa saiu baixo: não deixo a morte da Jessica passando em branco. E enquanto eu puxava fio por fio, Talita ia ficar sob minha guarda, vigiada pelos meus vapores, protegida por quem conhece a faca e o escudo. Amanhã o Nerd já teria algo. E eu, com a raiva no peito e a casa cheia de lembrança, iria seguir cada pista até a verdade. Adormeci pensando como vai ser o dia de amanhã, o que espera por nós, como a Talita vai reagir amanhã quando sair, e vê pessoas, e como as pessoas vão reagir quando vê ela pelo morro, se também vão confundir com a minha Jéssica.
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