Kaique
O morro acorda antes do sol, como se o Cruzeiro inteiro tivesse um relógio interno sintonizado com a escuridão que ainda cobre o Rio.
Eu acordo junto, porque aqui em cima, no topo da ladeira, o silêncio nunca é completo, é só uma pausa entre os barulhos que não param de verdade.
Meu alarme no celular vibra baixo na mesinha de madeira improvisada ao lado da cama, mas eu já estou de olhos abertos há minutos, encarando o teto rachado onde uma infiltração velha desenha mapas imaginários de rios que nunca existiram.
Aos 28 anos, o sono é um luxo que troquei por vigilância faz tempo; três ou quatro horas por noite, interrompidas por sonhos que misturam tiros reais com ecos de risadas antigas. Meu quarto é simples, uma cama de solteiro com colchão fino que range a cada virada, uma cômoda de compensado onde guardo roupas, e a janela gradeada que dá para o abismo de luzes piscantes lá embaixo.
Eu me levanto devagar, sentindo os músculos das costas protestarem, resquício de uma queda feia na semana passada, quando tive que pular um muro para escapar de uma viatura que subiu sem avisar.
Meu reflexo no espelho pequeno e embaçado na parede mostra um cara cansado, cabelo preto curto e desgrenhado, barba por fazer que coça, olhos castanhos fundos de quem carrega o peso de 500 almas nas costas. Eu visto a camiseta preta básica, e a calça jeans.
As botas de couro sintético, gastas, mas firmes, completam o uniforme. E então, por costume, mais que por necessidade imediata, eu pego a Glock da gaveta da cômoda e enfio na cintura da calça, cobrindo com a barra da camisa.
Nunca foi sobre querer carregar isso; sempre foi sobre precisar. Aqui no Morro do Cruzeiro, precisar é o que mantém a gente vivo, e vivo é o que separa os que mandam dos que viram estatística na delegacia.
Eu pego uma xícara fumegante e um pedaço de pão com manteiga, comendo em pé enquanto ouço o rádio chiado na mesa.
O cheiro de maconha vem da laje vizinha, onde o Seu Zé, o aposentado que vive de b***s, já tá fumando seu cigarro matinal para espantar as dores nas juntas. Vida normal para qualquer um daqui. Vida que eu não escolhi, mas que mando, porque se não for eu, vai ser pior.
Lá fora, o beco tá vivo no escuro: um grupo de moleques mais velhos joga conversa fora encostados num muro grafitado, fumando baseado e rindo de piadas que eu já ouvi mil vezes. Eles me acenam com a cabeça — respeito silencioso, sem bajulação —, e eu respondo com um gesto curto, subindo a ladeira curta até o galpão que serve como “sede”.
O galpão é uma estrutura improvisada de zinco com portas de ferro que rangem e paredes internas cobertas de mapas rabiscados à mão: rotas de fuga marcadas em vermelho, pontos de vigia em azul, territórios rivais sombreados em cinza. É aqui que a gente planeja, divide e sobrevive, não um QG de filme, mas um barracão que fede e caixas de papelão empilhadas nos cantos.
A porta tá aberta quando chego, dois dos meus homens já estão lá dentro, iluminados pela lâmpada pendurada no teto: Brunão, meu braço direito, encostado na mesa principal com um cigarro entre os dedos grossos, a fumaça subindo devagar; e Teto, apelidado assim porque sua voz explode como tiro de fuzil em discussões, sentado num banquinho de plástico que geme sob seu peso, rolando o feed do celular com o polegar sujo.
— Chefe — Brunão acena com a cabeça, ele parece um tanque humano, 1,90m de altura, ombros largos tatuados com caveiras entrelaçadas em rosas espinhosas, e uma cicatriz no queixo que ganhou numa briga de faca há cinco anos, quando ele me salvou de um atentado que eu nem vi vir. Brunão é o cara da calma no caos; sem ele, eu teria explodido faz tempo.
Teto sorri como se tivesse feito merda de novo, olhos apertados em fendas, dentes à mostra num sorriso torto que não engana ninguém. Aos 22, ele é o mais novo, impulsivo como um foguete, com cabelo raspado nas laterais e uma tatuagem fresca no pescoço que diz “Fiel até o fim”. Ele já me meteu em duas encrencas que custaram balas e favores, mas é leal como um cão de guarda.
— Atualizações — digo, direto ao ponto, me encostando na parede fria de concreto e cruzando os braços sobre o peito. Não tem espaço para papo furado; o sol nasce em meia hora, e com ele vem o movimento, entregas, olheiros, o risco diário de uma viatura aparecer do nada.
Brunão apaga o cigarro num pires rachado e pega o caderno de anotações, suas páginas amareladas e cheias de rabiscos em caneta azul.
— A carga da madrugada chegou sem problema. Veio pelo caminho da Bica, dois caras num fusca 78 todo enferrujado, sem placa. Descarregamos na laje do Seu João às três. Fizemos a divisão: 60% pra gente uns 15 quilos, 20 pro Campo Alto, 20 pro resto da rede de distribuição. O Campo Alto deve vir pegar a parte deles, logo mais, tipo nove da manhã, com o carro do irmão do chefe deles.
— Não gosto deles subindo o morro. Eles têm seus becos na Baixada; aqui é nosso. Toda vez que eles pisam, trazem fedor de problema, olheiros rivais, ou pior, rastro de polícia.
— Eles também não gostam, patrão. Dizem que o Cruzeiro é labirinto de rato, mas voltam porque gostam do nosso produto. É o melhor da cidade, puro, sem corte r**m. O n***o até elogiou na última reunião, disse que vende como água em dia de calor. — Teto fala.
— O Campo Alto tem polícia no bolso — explico, voz baixa para não vazar pelas paredes finas. — Eles sobem aqui com viatura amiga atrás, e a gente vira alvo. Quanto menos eles aparecerem, melhor. Se quiserem a cota, que mandem um muleque de confiança subir sozinho, a pé, sem carro chamativo. E checa o rádio antes; se tiver chiado estranho, adia.
Brunão assente, virando a página do caderno com um gesto seco, o papel farfalhando no silêncio tenso.
— Por falar em polícia… a viatura andou rondando mais cedo, perto da Vila Baixa. Tipo quatro da manhã, luzes apagadas, subindo devagar pela descida principal. Acho que alguém denunciou movimentação ontem, quando a gente tava descarregando na laje, talvez o vizinho novo que comprou casa ali, o cara da construtora, que reclama de “barulho noturno”.
— Reforça a vigilância na descida principal. Coloca o Zé na moto preta, rodando de hora em hora, com rádio ligado. Se vierem de novo, avisa todo mundo, espalha a galera, esconde as caixas nas cisternas, dispersa os olheiros pros becos laterais. Ganha tempo, e tempo aqui é ouro. — Ordeno.
— Pode deixar — Brunão responde, anotando rápido com traços firmes, já mentalizando os turnos. Ele é o cérebro da operação; eu sou o punho, mas sem ele, o punho erra o alvo.
Teto para de balançar o banquinho, o pé inquieto batendo no chão de cimento rachado, um ritmo nervoso que irrita.
— Ah, e o menino da Bica veio pedir ajuda, Kai. O Piá, aquele magrelo de 14 anos com o boné virado pra trás. A irmãzinha dele, a Lica, tá com febre alta que não baixa faz dias. Ele choramingou que precisa de dinheiro pro remédio na farmácia da praça de baixo, antibiótico, paracetamol, essas coisas que custam os olhos da cara aqui.
Suspiro fundo, o ar saindo do peito como fumaça pesada, e sinto aquela sensação velha apertar o estômago, consciência batendo na porta como um cobrador r**m. Piá é um dos olheiros mirins, olhos grandes e ágeis que veem tudo sem ser visto, mas que ainda carrega o peso de ser criança num mundo de adultos armados.
— Dá o dinheiro pro Piá. Uns 200 reais em notas miúdas, pra não chamar atenção, e leva remédio junto, ibuprofeno infantil, amoxicilina, o que o farmacêutico da Dona Cida indicar. Diz que é ordem minha, e vê se convence o doutor da UBS a subir pra ver ela hoje, sem custo pra família. Se precisar, eu ligo pro contato lá.
Brunão sorri de canto, os cantos da boca se erguendo num respeito quieto.
— Vai virar pai do morro de vez, chefe. Todo mundo já te chama de protetor, o Kai que conserta telhado, que manda vacinar as crianças, que freia os tiroteios pros velhos dormirem.
— Não fode, Brunão — retruco, mas com um meio sorriso que quebra a tensão, porque, no fundo, eu sei que é verdade. Eles dão risada, uma gargalhada baixa e rouca que enche o galpão por um segundo, aliviando o ar carregado como uma válvula de escape. Mas o morro não ri de verdade. O morro sobrevive, dia a dia, com um sorriso falso para enfrentar o sol impiedoso e as sombras que alongam à noite.
Saio do galpão e subo para laje de observação, daqui, eu vejo tudo, o coração pulsante do Cruzeiro.
Brunão sobe a escada atrás de mim, os passos pesados ecoando no ferro, e bate o ombro no meu.
— Você dormiu de verdade essa noite? — pergunta, voz baixa, olhos fixos no horizonte.
— Dormi o suficiente — minto, tragando fundo e sentindo a nicotina queimar a garganta. Na real, foram fragmentos: três horas picadas por pesadelos de tiros que ecoam e rostos de amigos que enterrei cedo demais.
— Kai, sobre a reunião com o Marreta… ele mandou áudio ontem à noite, no zap criptografado. Tá querendo subir o preço da armação em 20%, disse que a polícia apertou pra ele, mais blitz na fronteira com a Baixada, helicóptero sobrevoando as rotas. Acha que pode repassar porque a gente depende das peças dele.
— Problema dele — respondo seco, Marreta é o fornecedor de armas, um baiano corpulento de 45 anos que opera de um barracão na Baixada Fluminense, com contatos na fronteira que trazem ferro de São Paulo. Ele acha que me tem na mão porque preciso de munição limpa, mas alianças aqui são como cordas: esticam até romper. — Ele que arrume outro jeito de subornar os PMs. A gente é cliente fiel, não patrão dele. Se subir, eu ativo o Careca na Rocinha, o cara tá louco pra entrar no jogo, e o preço dele é 15% menor. Manda o áudio de volta: “Pensa bem, Marreta. Amigos não apertam amigos.”
Quando a gente desce de volta para o galpão, o ar já aquece, e encontro Cegueta encostado na parede externa, suado e nervoso como um rato farejando gato. Cegueta, apelido irônico para o olheiro mais velho do grupo, com 52 anos, óculos escuros Ray-Ban falsificado que ele usa dia e noite pra esconder olhos que viram demais, limpa as mãos na calça jeans, o corpo magro curvado como uma vara de pescar velha.
— Chefia… tem uma parada aí que não tá cheirando bem — diz ele.
— Fala logo, Cegueta. Não tenho o dia todo — ordeno, parando na porta do galpão.
— De cima do morro… chegou um aviso estranho pelo rádio da prefeitura. Um projeto social novo, daqueles de gringo com dinheiro. Vão começar hoje à tarde, na quadra da Vila Baixa, aulas de dança, tipo balé clássico pra meninas.
Fecho os olhos por um segundo, e sinto a irritação subir como bile. Zona Sul. Branca demais, rica demais, inocente demais. Burra demais para achar que morro é playground de novela, com samba na praia e abraços coletivos.
Projetos sociais são armadilhas disfarçadas, vêm com câmeras, perguntas incômodas e olhos que julgam sem entender, atraindo repórteres, assistentes sociais e, pior, polícia “preocupada” com “segurança infantil”.
— E quem p***a aprovou isso? — pergunto, a voz saindo rouca de raiva contida, punhos se cerrando nos bolsos.
— Organização lá da região central, parece — Cegueta responde. — Coisa de prefeitura com parceria de gringo americano, dinheiro do exterior pra “cultura comunitária”.
Brunão, que tava checando uma caixa no canto, cruza os braços enormes sobre o peito, os músculos se tensionando como cabos de aço.
— Isso vai dar r**m, chefe. Essas pessoas da Zona Sul acham que morro é cenário pra foto no i********:, “olhem, eu salvo o mundo de saia”.
Eu penso, o cérebro girando cenários como roda de roleta, ela chega de ônibus lotado na base, sobe a pé ou de táxi pirata, entra na quadra com sorriso e saia rodada, e atrai olhares errados, curiosos, rivais, ou pior, o tipo de elemento que vê fraqueza como oportunidade.
O morro tem ritmo próprio, lento nas manhãs de escola, acelerado nas noites de entrega, letal pra quem entra sem sintonizar a batida. Projetos assim perturbam, meninas na quadra em vez de em casa, perguntas sobre “segurança”, e o risco de uma denúncia anônima que traz o BOPE.
— Mantém distância total. Coloca o Piá pra vigiar a quadra da laje vizinha, com binóculo se precisar, mas sem se mostrar, só reporta movimento. Se ela trouxer mais gente ou câmera, avisa na hora e eu decido.
— E se der problema? Tipo, se um dos moleques zoar ou se o Campo Alto souber e mandar espião? — Brunão pergunta, prático como sempre, já mapeando rotas de extração na cabeça.
— Se der problema… a gente resolve. Como sempre resolvemos, mas prefiro que não dê. Morro não precisa de salvadores de fora; precisa de paz que a gente constrói aqui. Se ela quiser ajudar, que ajude sem bagunça. Caso contrário, eu mando um aviso educado pra ela descer e não voltar.
Cegueta assente rápido, os óculos escuros piscando no sol nascente, e sai correndo pela viela pra espalhar o recado para os outros olheiros.
— Pra que diabos alguém da Zona Sul ia querer ensinar balé aqui, chefe? Elas vão de salto na lama, tutu enganchando em arame farpado. As meninas daqui preferem funk e futebol de rua.
Brunão dá de ombros largos, um riso seco e cético escapando dos lábios.
— Às vezes o povo rico quer limpar a consciência, Teto. Tipo, passa o dia no shopping, à noite “salva” o morro pra postar no feed e dormir no edredom de plumas. Mas consciência aqui custa caro, uma bala errada, e o salvador vira mártir no jornal.
Fico em silêncio, olhando para o chão de cimento do galpão, rachado como as promessas da prefeitura, sentindo um formigamento incômodo na nuca que não é só vento ou cigarro. Porque, por mais que eu tente ignorar como uma coceira superficial, algo nesse “projeto” não me deixa tranquilo.
— Fiquem atentos o dia todo — digo, por fim, a voz baixa e dura como o cano da Glock na cintura, ecoando no galpão vazio. — Esse morro é meu, construído com o que sobrou de todos nós. Ninguém entra aqui sem sentir meu olhar primeiro.
Eles concordam com acenos firmes, saindo para o dia como engrenagens em movimento, Brunão pra checar as caixas escondidas e ligar para os contatos, Teto pra pegar a moto e rodar a vigília inicial.
Volto pra janela do galpão, encostando no batente de madeira acendendo outro cigarro. De longe, o morro parece quieto no amanhecer.
Algo está vindo, rastejando pelas vielas como sombra alongada. Algo que não tem cheiro de polícia infiltrada, nem de inimigo rival com fuzil na mão… mas de destino cru, de mudança que eu não chamei e nem quero.