Capítulo 2 - A sombra que disse meu nome

2638 Palavras
"Zael." O nome dele cortou o ar como uma lâmina fria. Eu o senti pousar na cozinha, pesado, definitivo, e por um instante tudo o que existia era o som do meu próprio coração, uma coisa viva e desobediente dentro do peito. Ele não se moveu. Também não sorriu. Tinha o corpo de quem sabe o que é guerra: ombros largos, o pescoço firme, as mãos que descansavam ao lado do corpo como se pudessem fechar-se sobre qualquer perigo. O cabelo preto, denso, caía em ondas indecisas até a linha da mandíbula. Os olhos... os olhos eram outra noite dentro da noite. Não havia brilho neles, só profundidade. "Quem é você?" repeti, mesmo já tendo a resposta. "O que quer aqui?" "Eu já disse quem sou." A voz veio grave, clara, sem pressa. "O que eu quero você ainda não pode ouvir sem tremer." "Então diga baixinho," respondi, sem reconhecer a coragem da minha própria boca. Um músculo saltou na lateral do maxilar dele, como se as palavras que prendia tivessem garras. Ele avançou um passo. Eu recuei outro, sem pensar, e bati o quadril na borda da mesa. O toque me devolveu ao corpo — à minha cozinha pequena, à lâmpada que zumbia, ao pano de prato esquecido na cadeira arranhada. Eu pensei na gaveta da direita, onde uma faca de pão dormia. Pude alcançá-la? Pude — mas não alcancei. Era inútil. Ele não parecia uma coisa que se pudesse cortar. "Você entrou pela janela," sussurrei, apontando. "As portas... as portas são para convidados." "Eu não sou convidado." O jeito como ele disse não trouxe culpa nem desculpa. Era só fato. As palavras ficaram um tempo entre nós, e então, como se a casa tivesse ouvido, o piso rangeu no corredor. Minha avó. Minha avó, cega, andando devagar, procurando meu nome com os pés. "Amelie?" A voz dela veio mansa, e eu nunca quis tanto que ela dormisse. "Está tudo bem?" "Está." Minha mentira saiu macia e m*l costurada. Ele inclinou a cabeça, atento ao som, e por um instante o rosto dele se suavizou numa curiosidade que não era humana — era mais concentrada, mais animal. "Há outra pessoa," afirmou. "Minha avó," contei, e foi menos uma explicação do que um aviso. "Ela não enxerga. Não assuste ela." "Eu não minto," ele disse, como se tivesse ouvido outra coisa. "E não prometo gentileza." "Então prometa nada." Os olhos dele me atravessaram; eu quase senti o chão um pouco mais fundo sob os meus pés. Ele respirou. A respiração dele tinha o som de coisa que viajou muito: longa, medida, silenciosa. A avó encostou a mão na parede, tateou o batente e apareceu na curva do corredor. O cabelo preso em nó baixo, o cardigã marrom torto sobre os ombros. Quando ela levantou a cabeça na direção de onde ele estava, eu soube que também o "via" à maneira dela. "Boa noite," disse, e não era uma saudação: era uma coragem. Zael ficou imóvel. Eu vi as narinas dele abrirem um milímetro, como se aspirasse a palavra. Depois, respondeu: "Boa noite." Minha avó sorriu com a boca de porcelana. "Eu não te conheço, mas conheço o que você traz. E é pesado." Ele não se defendeu. Deu um passo para o lado, ficando entre nós e a janela aberta. As sombras ajustaram a postura, como se obedecessem a ele. "Não vim machucar vocês." "Não?" A avó inclinou a cabeça, o ouvido apontado para aquele corpo impossível. "Então por que entrou pela janela?" "Porque portas são para quem pertence." "E você pertence a quê, rapaz?" "Àquilo que mantém de pé o que vocês chamam de mundo." Ele disse isso de frente, sem teatralidade, como quem diz "esquerda" e "direita". "Eu trabalho para uma comunidade que pune no escuro o que vocês não veem à luz." Fiquei com a boca aberta por um segundo inteiro, o ar raspando na garganta. "Isso é... polícia?" "Não." A resposta dele veio tão rápida que não deixou sequer nascer a esperança de uma explicação simples. "É anterior a isso. É menos limpo." "Você vai chamar outras pessoas? Vai... levar algo?" perguntei, e odiei o tremor no "algo". "Não. Eu vim por você." A cozinha encolheu. Foi um centímetro apenas, mas eu senti. A avó apertou meus dedos sem me tocar — é assim que ela me alcança quando tem medo. Minha voz achou uma dureza inesperada: "Eu não tenho nada que interesse a—" "Você tem um nome," ele cortou, e havia um peso antigo na palavra nome. "E um desejo que gotejou por anos até molhar a calçada. Eu sigo desejos. Quando eles vazam, eu encontro a casa." A linha de luz que eu tinha visto na rua. O risco claro no encosto da cadeira. Minha vontade antiga de ser arrancada daqui por algo que significasse... Eu quis negar, e neguei: "Não chame isso." "Não estou chamando," ele disse, calmo. "Estou ouvindo." O rádio no canto da sala engasgou num chiado breve e morreu. O silêncio que ficou tinha o tamanho de um telhado inteiro. Eu tive a súbita, absurda vontade de oferecer chá. "Você bebe... chá?" "Não preciso." "Mas pode?" "Posso." Ele olhou a caneca vazia sobre a mesa, como quem observa um hábito humano por detrás de um vidro. "Mas não tenho sede." A avó se adiantou um passo. "Você tem fome de quê, então?" O tom dela era de quem pergunta se a chuva é fria. "De cumprir." Uma palavra de ferro. "E de acabar." "Acabar com o quê?" perguntei. "Com aquilo que me faz começar toda noite." Por um segundo eu quis que ele mentisse. Uma pequena mentira para amaciar as arestas. Nada veio. Ele apoiou as pontas dos dedos no encosto da cadeira — a mesma que eu tinha visto marcada — e acompanhou com a unha o sulco fino, como quem lê em braille a própria presença. "Eu deixei isso para lembrar você de que não sonhou." "Você não tinha o direito," soltei, sem saber se falava do risco, da janela ou da entrada dele na minha vida. "Os direitos de vocês valem para vocês," ele disse. "Os meus não se escrevem." A avó deu um risinho curto, surpreso com a franqueza brutal. "Você fala como quem já não espera perdão." "Eu não peço." Do lado de fora, um corvo pousou na calha e riscou o ar com um som áspero. Zael virou o rosto quase imperceptivelmente, como se ouvisse outra camada naquele grito. Eu segui o olhar dele até o retângulo escuro da janela. Foi quando o frio mudou. Não era mais o frio natural das coisas; era um frio que tinha uma intenção. "Não abram a porta," ele disse, e a voz perdeu a espécie de paciência cortês que tinha mantido até ali. Era comando puro. "Fiquem atrás de mim." "Quem está aí?" perguntei, o pavor me fazendo obedecer antes mesmo da explicação. "Outros que farejam perguntas." A batida veio — não na porta da frente, na dos fundos. Três toques curtos, um intervalo, dois toques longos. Alguma cadência que não era nossa. A maçaneta vibrou. Zael ergueu o queixo e toda a estrutura do corpo dele se preparou como se uma música de guerra tivesse começado. Sem olhar para mim, ele estendeu a mão aberta em minha direção, um gesto claro: não se mova. "Quem... quem são?" minha avó insistiu, e dessa vez havia um tremor na voz dela. "Chame-os de chacais," ele disse, e um quase-sorriso duro riscou o canto da boca sem chegar a ser sorriso. "Correm ao redor do que é fraco quando sentem sangue novo." Eu senti o gosto metálico na língua e só então percebi que tinha mordido por dentro. A maçaneta parou. O silêncio de novo. Depois, um arranhar lento, alto o suficiente para cortar dentro da cabeça. A casa me pareceu pequena demais para caber qualquer coisa além daquele som. Zael deu um passo que não fez barulho — como é que um homem daquele tamanho podia mover-se sem som? — e a sombra dele ficou dez vezes mais densa. "Se abrirem, a conversa muda," ele disse. "E eu teria de cumprir de outro modo." "Outro modo... qual?" perguntei, apesar de já saber, num lugar fundo e indesejado. "Com mais violência." Minha avó segurou o meu pulso. Não era medo por ela. Era por mim. Eu vi na curva da boca dela um gesto antigo — a benção que fazia quando eu era pequena e o trovão vinha cedo. Fiz com os dedos no ar, acima da cabeça, o sinal que ela gostava, um desenho simples de p******o. Zael viu. E por um instante o rosto dele, o rosto que parecia esculpido para a noite, se desarrumou numa surpresa breve. Como se aquele gesto antigo, humano demais, tivesse tocado uma coisa que ele tinha perdido. Os arranhões cessaram. Zael manteve o corpo inteiro tenso por mais alguns segundos, como quem ainda escuta a poeira assentando no outro lado. Depois, lentamente, soltou o ar. "Eles sentiram," disse, como quem recolhe uma sentença de cima da mesa. "Voltarão." "Por minha causa?" Eu me odiei por perguntar assim, com culpa. "Por causa de um risco que apareceu no mapa deles." Ele me olhou. Não havia doçura; havia precisão. "Você." "Eu não pedi nada." "Pediu." O olhar dele não piscou. "Não com a boca." A avó inspirou fundo e, com a gravidade que usa quando decide uma coisa para sempre, disse: "Seja como for, ela está sob meu teto. Não haverá nada aqui que eu não possa abençoar." Ele virou o rosto devagar para encará-la. E dessa vez, sim, algo que eu não explico passou pelo olhar dele — respeito, talvez. Ou o reconhecimento de uma força que não se mede pela vista. "Seu teto a mantém até onde alcança a sua fé," disse. "O resto... é meu trabalho." "Seu trabalho é o quê? Vigiar? Julgar? m***r?" Eu joguei as palavras como pedras, na esperança de acertar alguma e fazer sangrar um pouco o mistério. "Proteger," ele respondeu, e não tinha nada de bonito na forma como disse. "Vingar quando a p******o falha. Pagar o preço que escolhi quando ainda acreditava em escolha." Havia cansaço grudado naquela última frase. Cansaço de séculos. Eu quis perguntar quantos, mas ele me salvou de parecer criança: "Não contamos." "Então por que eu?" Minha voz finalmente achou um lugar firme para ficar. "Por que aqui? Por que agora?" Ele passeou o indicador pelo ar, à altura do meu rosto, sem me tocar, como se medisse a luz entre nós. A pele do meu braço se arrepios em pontos, não porque o dedo tocou — porque não tocou. "Porque você tem uma f***a," disse. "Uma linha de entrada. Como a que viu hoje no chão. Como a que está no encosto dessa cadeira. A cidade às vezes racha. Algumas pessoas também." "Isso é doença?" "É destino." Uma raiva limpa me invadiu, feita de todos os anos em que esperei que algo me escolhesse. "Eu não aceito destino nenhum que entre pela minha janela sem bater." "Eu bati." Ele lançou um olhar rápido para a porta dos fundos, e por um segundo eu ouvi de novo a batida de há pouco. "E você passou a vida pedindo que alguém te escutasse. Escutaram." "Isso é crueldade," eu disse. "É verdade." Era o que me restava dele sempre — a verdade nua, sem fita. Por mais que doesse, ela não me humilhava. Ela me colocava num chão diferente, duro, mas firme. Ele se aproximou da ombreira e, com a unha do polegar, riscou discretamente a madeira, alto o suficiente para eu ver, baixo o suficiente para não chamar atenção de quem passasse na rua. O sulco brilhou quase nada. "Isso é para confundir quem caça pelo cheiro. Eles não são bons com marcas de luz." "A avó não vê," lembrei, e tive vergonha imediata de falar como se precisasse pedir licença. "Eu vejo por ela quando for preciso," ele respondeu, e havia um tipo de promessa nisso que não parecia feita com saliva. Era prometer com os ossos. "Você vai voltar?" A pergunta escapou de mim antes que eu pudesse segurá-la. "Sim." "Hoje?" "Quando fizer sentido." "Você sempre responde assim?" Eu me ouvi sorrindo torto. "Eu não minto." "Eu sei." E, surpreendentemente, saber não me tornou segura; me tornou alerta. Como se por fim eu tivesse encontrado uma borda no escuro e pudesse tocá-la. Ele olhou ao redor como quem mapeia um território que já é seu. Os corvos bateram asas no telhado; uma chuva fina começou a espirrar no metal da calha. A avó, lá do corredor, ergueu o queixo e disse: "Rapaz, se vai voltar, aprenda as tábuas que rangem. Não acorde a casa." Os cantos da boca dele cederam meio milímetro. "Anotado." "E não assuste minha neta mais do que o necessário," ela completou, e eu senti uma ternura que doeu. "O mundo já fez a parte dele." Zael me olhou de novo, e dessa vez o olhar não atravessou — pousou. Um pouso breve, como o de um pássaro que toca a água e sobe. "Dormir é bom quando se pode," disse. "Mas hoje, não durma de cortinas abertas." "Tem alguém lá fora?" "Tem noite lá fora." Ele virou-se, e no movimento a luz fraca da lâmpada mordeu por um instante a linha do ombro dele — era um ombro feito para carregar o que não se escolhe. "E onde há noite, há quem trabalhe." "Como você." "Como eu." Ele saltou a janela com uma facilidade que me humilhou de tão silenciosa. Eu corri dois passos, a mão estendida, como se pudesse alcançar a barra do casaco que ele não vestia. Do lado de fora, a névoa engoliu tudo. Só ficaram os corvos e um fragmento de respiração que poderia ser vento. Fechei a janela e travei o trinco duas vezes. Passei o dedo pela marca recém-feita na ombreira e uma pontada de calor ficou na polpa — o calor mais estranho que já senti: frio e vivo ao mesmo tempo. A avó apareceu ao meu lado e pousou a mão no meu ombro. "Ele tem passos antigos," disse, simples. "Mas falou como quem ainda suporta o peso." "Você está com medo?" perguntei. "Estou." Ela franziu o nariz, avaliando o cheiro do ar. "E curiosa. O medo que vem com curiosidade é menos cego." Recolhi as canecas, desliguei o rádio morto, endireitei o pano de prato. Podia parecer inútil arrumar a casa depois de a casa ter sido atravessada por algo que não cabe em arrumação. Mas eu arrumei. Porque era o que eu sabia fazer quando o desconhecido batia a porta: tornar as bordas possíveis. Mais tarde, no meu quarto, a cortina fechada obedecendo a recomendação, ouvi de novo passos que não eram passos — um deslocamento sutil no ar, um peso que passa por cima das coisas sem tocar. Não acendi a luz. Deitei de lado, os joelhos dobrados, e fiquei escutando até que o som da chuva sobre o telhado cobrisse qualquer outra intenção. Quando finalmente dormi, sonhei com a f***a de luz no chão, abrindo-se devagar como uma boca que quer dizer meu nome. E, ao fundo, uma voz que não mentia repetindo, sem volume e sem piedade: Marcas de luz confundem os que caçam no escuro. Eu segurei a borda daquela frase e levei comigo, não como quem acredita — como quem decide sobreviver. Na manhã seguinte, o sulco na ombreira continuava brilhando por dentro, como se tivesse engolido um fiapo do amanhecer. E, antes da chaleira chiar, eu soube: ele tinha voltado sem entrar. E tinha visto que eu obedeci às cortinas. Porque, quando abri a gaveta dos talheres, encontrei, entre as facas, uma pena n***a — limpa, perfeita, leve — e um bilhete sem tinta, escrito apenas como relevo no papel: Eu volto quando fizer sentido.
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