Sua casa ficava algumas quadras do bar e era aparentemente simples. Ao chegarmos, Cecília olhou para nossos sapatos e bradou:
- Tirem os sapatos, por favor. Entre descalços.
Sem titubear, o fiz, enquanto Caio a questionava:
- Por quê? Não fará diferença.
- Fará porque é minha casa, mas pode esperar aqui, se quiser.
Caio suspirou aborrecido e retirou impacientemente seu sapato e os deixou no tapete com os meus.
Adentramos sua casa que possuía uma decoração exótica com alguns... símbolos... ou coisa assim. Parecia runas ou selos. Havia inúmeras cortinas, tapetes e até incensários – o que explicaria o aroma doce até fora de casa, mesmo que quase imperceptível, pude sentir. Cecília apontou à mesa para sentarmos e disse “irei preparar um chá e já volto”. Caio aproveitou a deixa para falar:
- Acha mesmo que ela pode nos ajudar? Olha isso...
- O que?
- Sei lá..., esquece. Só estou estressado. O trabalho é f**a.
- Ah, desculpa... arrastar você pra isso não parece ter sido uma boa. Já têm suas coisas, afinal.
Caio fez uma expressão um pouco cabisbaixa, como se novamente lembrasse de ser agradável e retrucou com um semblante arrependido:
- É demais, eu sei, mas quero ajudar. Mesmo se for contra o que acredito. Só quero respostas imediatamente. Fazer as coisas “foi isso, foi aquilo”, soa estranho.
- Desconfia de mim?
- Não foi o que eu quis dizer. É melhor esperar ela para esclarecer tudo.
Concordei com a cabeça e aguardamos em silêncio até Cecília chegar. Após alguns minutos, Cecília aparece com uma bandeja com um bule e três xicaras toda sorridente, como se não houvesse preocupação. Deixou-nos com a bandeja na mesa e disse “sirvam-se” e foi acender seu incenso. Ela estava com uma roupa mais relaxada, mas ainda com o mesmo semblante sério. Quando sentou conosco, sem rodeios, ela foi direta com muitas informações:
- Aqui é possível falar o nome dele sem que ele se sinta invocado. Os sapatos fora daqui é questão de higiene, caso estejam curiosos. Os incensos são garantias para que nada chegue aqui por entre permeio ou entrelinhas, as runas nos protegerão dos espíritos que permeiam e observam. Odeio essas almas curiosas que buscam brechas para nutrir-se de vida para auto revigorar-se. Por incrível que pareça, almas não são guardiãs como todos dizem! Eles selecionam o mais maleável e nutrem-se até que tenham chance de renascer. Eles podem trazer preocupações, ansiedade, medo, insegurança e afins. Quando fazem algo bom, é para benefício próprio: a redenção.
- Espera..., mas nunca ouvi essa versão.
Cecília deu de ombros e redarguiu:
- Pessoas inventam coisas: sejam boas ou ruins, e você sabe. Elas não sabem nada do mundo interior, exterior e o espiritual. Principalmente sobre Cosmos.
- Cosmos? Aquela lei do universo lá? – indagou Caio.
- Guarde seu ceticismo e busque respostas, por agora, não mais dúvidas para manter seu ego. Como estão na minha casa, posso canalizar energias e sentir como se sentem. Seu amigo tem tantas dúvidas e incômodos.
- Não acredito nessa idiotice – retrucou Caio enfurecido.
- Gente, só quero resposta. Depois discutimos isso.
Cecília manteve seu sorriso cínico para Caio, mas logo retomou sua conversa:
- Enfim, espíritos são a mais pura forma ou essência de alguém. A verdade é que todo ser humano tem interesse, se é coisa boa ou r**m, depende de quem enxerga, mas não altera o fato de que a realidade tende a ser decepcionante e seus interesses podem ser interrompidos por outros fatores ou pessoas. Como nós, eles se decepcionam quando não o ajudamos a voltar para cá..., tipo quando não realizamos a vontade daquele amigo que não aceita um não. Seres livres do aprisionamento, como eu, opta por ver ou não ver coisas, ser ou não ser coisas. Uma porcentagem rara nota isso, muitos acham que é outra coisa, não julgo. É o mundo.
- Ainda não entendi o que isso tem a ver com Victor. – Retruquei um pouco desanimado.
- Seja paciente. Uma mão lava a outra. Entenda a magnitude do que você está lidando agora. Depois contará o que houve detalhadamente.
Cecília tomou um gole de chá, levantou-se e caminhou até algumas velas aromatizantes para acender. Antes de prosseguir, descobriu sua janela e buscou paranoicamente algo fora do comum, cobriu-a novamente e voltou a caminhar pela sala falando:
- Não esqueçam do chá, ele sela corpo dos espíritos que querem “proteger”. Bom... os espíritos são mais ambiciosos que você pode imaginar, e com eles não se brincam. São eternos, vivem como andarilho em busca de pessoas desesperadas, perdidas e afins. Ajudar alguém por entrelinhas altera o Cosmos para que eles reincidam a morte e ganhem algo que a morte não é capaz de dar: esse mundo, a vida, a liberdade – disse alegremente Cecília.
- Isso não faz sentido. Ser um fantasma e passear por aí parece melhor que as merdas daqui – retrucou Caio com desdenhar.
- Não sabe o que tem lá, então não se trata de opinião e sim SABER. Retrate sua insolência e ignorância, meu amor.
Ficamos em silêncio brevemente, mas logo Cecília prosseguiu e aproximara seu rosto com semblante ainda mais sério até nós:
- Conte-me sua história e verei o posso fazer. Diga o seu nome e deixe as runas guardá-lo, quem sabe isso não me ajude a lembrar também – disse Cecília enquanto sorria.
Contei detalhadamente o que houve comigo na noite anterior e hoje, o que vi e o que houve antes de chegar aqui. Evitei citar o fato de eu ter pensado nela por constrangimento, claro..., não vem ao caso. Falei tudo o que podia e Caio também repassou cansativamente sua versão da história enquanto eu estava em transe. Cecília nos fitava conforme entreguemos detalhes, pensava e escutava atentamente. Quando terminei de relatar, ela se sentou à mesa com um semblante preocupado e pensativo. Depois exclamou:
- Como eu falei: espíritos são ambiciosos e querem só um passe pra cá. Infelizmente, Victor é algo diferente; ele faz acordo com espíritos que vagam, busca, os expurga, nutre-se e nem os vivos escapam disso.
Cecília falava de uma forma desconcertada de Victor, como se não quisesse se aprofundar sobre ele – o que fazia eu indagar a mim mesmo se eram amantes. Antes que eu perguntasse algo a mais sobre Victor, Cecília me atropelou com uma bela bronca sobre o que eu fiz no ônibus:
- Não devia ter interferido no caminho que leva almas como a de seu amigo. Não faça coisas que não saiba, porque isso pode ser uma catástrofe. Não quer mais Victor por aí, não é?
- É... mas ainda não sei o que fazer. Perdoe-me ter interferido no caminho do Cosmos, mundo espiritual ou sei lá, só fiquei indignado. Pareceu adequado.
- Mas não foi... temos que agir para expurgar seu amigo daqui agora, antes que Victor faça com ele o mesmo que fez com os outros. – Cecília se levantou bruscamente, fez um leve sinal com as mãos fazendo as velas se apagarem. Depois disse:
- Dormirão aqui e faremos a busca amanhã de noite. Têm coisas que trabalho melhor sozinha e explicar para vocês agora será cansativo. Tenho um quarto de hóspede. Farei os preparativos e... é isso.
Caio manteve um olhar desconfiado e tampouco se pronunciou sobre. Esperou até que ela desaparecesse para falar comigo; na verdade, para ser específico: reclamar.
- Ela não falou nada que pudesse nos ajudar. Pior ainda: deliberadamente disse que dormiríamos aqui e quando ajudaríamos. Não quero faltar, não quero motivo para reclamarem de mim.
- Calma..., a gente tenta convencer eles. Isso é necessário!
- Pra você. Espero que saiba como me tirar dessa depois.
Caio estava chateado pela situação em si e principalmente por ele não entender. O que me lembrava da nossa maior aventura em Bolton Strid, Inglaterra, que foi uma das nossas maiores programações de viagem já feito. Li sobre o local aleatoriamente e achei o riacho e a floresta perfeitos! Trazia paz e fazia eu pensar “tenha que estar em lugares assim”. Caio, sendo otimista como sempre, pesquisou sobre o local e viu que aquele riacho era um dos locais mais perigosos do mundo, dando início a inúmeros alertas de como agir, onde fica e o que evitar. Não preciso dizer que disse a ele que isso era desnecessário e que tínhamos que apreciar a brisa. Somente. Ainda nos acidentamos, mas consegui sair do riacho a tempo! Escorreguei numa rocha por lá e acabei caindo, mas Caio foi rápido, estava precavido – depois ficou aborrecido. Ainda sim foi nossos melhores dias, mesmo que ele não tivesse entendido a ideia “aproveitar”, aquilo ficou registrado.
Levar ele ao bar para saborear o melhor de um momento r**m era o mínimo que tínhamos para fazer, senão a situação seria mais desgastante. Chamei ele e cochichei em seu ouvido:
- Vamos ao bar beber um pouco, já que estamos protegidos. Precisamos de uma trégua.
- Você tem certeza de que isso é uma boa ideia agora? Minutos atrás você estava desesperado! – disse no seu tom sarcástico.
- Será coisa rápida. Vamos!
- Gosto quando você acorda esse seu espírito descuidado... às vezes.
Caio foi pelas pontinhas dos pés comigo até a porta, calçamos os sapatos e fomos até o bar. Já era noite, mas estava longe da madrugada, o que nos daria bastante tempo para descontrair à vontade. Saímos ao bar com a felicidade imensurável em nós. Conversamos sobre o tempo que precisaríamos ficar e sobre a Cecília:
- Acha que ela pode nos ajudar ainda? Acha que ela tem alguma ainda que esconde sobre Victor? – retrucou Caio titubeante, com uma expressão preocupada.
- Concordo que ela só explicou algo que não queríamos e m*l falou sobre Victor ou Os Olhos Mortos, mas sei o que vi.
- E se ela, na verdade, não souber nada dele? Pode ser que ela saiba sobre esse mundo louco, mas talvez nem imagine o que há em Victor.
Apenas fiquei em silêncio pensativo por ele não estar totalmente errado. Ela parecia hesitante ou cautelosa para falar, mas não como se estivesse preocupada com que Victor aparecesse de repente, era evidentemente outra coisa que desconhecíamos. Pensar sobre isso fez eu ter certeza do que precisaríamos... O Bar.
Ao chegarmos, ainda havia a mesma clientela no bar, só que menos eufórica. Apesar da música, o local estava calmo e repleto de bêbados deprimidos buscando respostas em um copo com álcool. Escolhi alguma mesa do lado de fora para respirar um pouco e apreciar o melhor daquela noite. Caio foi até Fabrício pedir nossas bebidas enquanto aguardava-o na mesa. Novamente pensei sobre nossa curta conversa: e se Cecília realmente não soubesse de nada sobre quem era Victor? Com poucos minutos de espera, Caio juntou-se a mim e aliviado, disse:
- Ainda bem que pensou nisso..., só de estar aqui, mudei por completo. Realmente Cecília muda esse local.
- É...
- Deveríamos pensar em uma viagem como aquela na Inglaterra, não é?
- Estava pensando nisso antes.
Caio serrilhou seus olhos, mudou a direção do seu olhar para meu lado para constatar quem seria. Assim que pode ter certeza, apenas retrucou “fodeu” e mudou a direção do seu olhar. Era Cecília com seus passos impaciente repleta de fúria:
- Vocês enlouqueceram?! Sabem no que se meteram, vocês têm IDEIA do que está acontecendo? – disse enquanto nos fitava e chacoalhava suas mãos.
- Calma..., só queríamos uma coisa boa, pelo menos por alguns minutos, já que ainda nem sabemos se você pode conter ele. – Bradou Caio sem titubear, a fim de atingi-la.
Senti um desconforto..., uma leve sensação de estar aqui e não está, mas pensei que fosse só uma singela culpa por agir irresponsavelmente. Logo Cecília retrucou ainda mais enfurecida, apontando o dedo para Caio:
- Me dispus ajudar vocês por nenhum pagamento, e você sabe disso. Quem precisa de ajuda é seu amigo. Se você tivesse alguma ideia do que há com ele, saberia certamente como agir agora. Devemos voltar pra casa agora!
- Ah..., gente, calma. – Disse enquanto me levantava e realizava alguns gestos apaziguadores: Cecília, realmente só foi uma saidinha. Não pretendemos demorar, nos dê essa chance. Estamos protegidos, de qualquer forma, não é? – novamente senti aquele mesmo desconforto, só que mais intenso e com um calafrio.
- Se me dessem tempo de falar, só mais um tempinho para pensar no que exatamente falar sobre Os Olhos Mortos, não estaríamos aqui. Sua culpa vai me atrapalhar.
Continuei questionando então Cecília, mas sempre desviava suas respostas e dizia para voltar, enquanto Caio tentava nos interromper, mas só discutíamos sobre respostas, sobre o que acreditar e afins. Caio simplesmente se joga na nossa frente desesperadamente e grita:
- PARA, PARA, PARA! PAROU. Vocês..., notaram?
- O QUÊ?! – eu e Cecília retrucamos enraivecidos:
Caio estava completamente pálido, até trêmulo, apontando para o bar e gaguejando, como se estivesse vendo um monstro:
- O..., o bar esvaziou...