ISADORA NOGUEIRA NARRANDO:
Meus dedos ainda tremiam.
Saí da loja com o coração disparado, os olhos ardendo e a raiva borbulhando no peito como metal derretido. O estalo do tapa na cara da Carolina ainda ecoava na minha cabeça, e, mesmo assim, não foi suficiente para dissolver o nó sufocante que me apertava o estômago.
Eu queria gritar. Correr. Desaparecer.
Qualquer coisa que apagasse aquela cena absurda: Carolina dizendo que amava o Fernando, como se isso justificasse a traição.
Quando dobrei a esquina e vi a portaria do meu prédio, meus passos vacilaram.
Eu só queria sumir. Me esconder de tudo.
Da dor, da vergonha, do caos que parecia ter invadido minha vida como uma tempestade sem aviso.
— Dona Isadora — chamou o porteiro assim que me viu.
— O seu noivo… digo, o Fernando… veio aqui várias vezes hoje. Subiu, desceu, tentou te ligar…
Meu sangue ferveu.
— Ele não é mais meu noivo, seu Geraldo — cortei, firme.
— E quero que o senhor anote aí: o Fernando está proibido de entrar no condomínio. Em hipótese alguma ele sobe de novo. Entendeu?
O senhor Geraldo arregalou os olhos, mas assentiu.
— Entendido, claro, dona Isadora.
— Outra coisa: me consegue o número de um chaveiro. Vou trocar a fechadura hoje ainda.
Ele não discutiu. Apenas mexeu em algumas anotações e me entregou um cartão.
Peguei como quem segura um salva-vidas.
Eu queria apagar qualquer traço do Fernando da minha vida.
Nem a tranca da porta sobreviveria.
Subi exausta. As pernas pesavam como se fossem feitas de chumbo.
Assim que entrei, tranquei a porta, disparei uma mensagem para o chaveiro, joguei a bolsa no chão e fui direto para o banheiro.
Fui tirando a roupa pelo caminho. Cada peça que caía parecia levar um pouco da sujeira emocional do dia.
Liguei o chuveiro no máximo e entrei sem pensar.
A água quente batia nas minhas costas como se quisesse me purificar de tudo que ele fez.
Fiquei ali muito tempo. Minutos, talvez uma hora.
O tempo se dissolveu junto com o resto da minha dignidade.
Quando enfim saí, enrolei o corpo na toalha, fui até a cozinha, abri a garrafa de vinho mais encorpado que tinha e me servi sem hesitar.
O primeiro gole queimou a garganta.
O segundo desencadeou as lágrimas.
Pesadas. Silenciosas. Desesperadas.
E eu deixei.
Porque, pela primeira vez naquele dia, eu não precisava fingir nada.
Não ali.
Não comigo mesma.
Sentei no chão da sala, a toalha ainda colada ao corpo, a taça entre os dedos, enquanto o mundo parecia girar devagar ao meu redor.
Era como assistir minha vida desmoronar em câmera lenta, impotente para impedir qualquer coisa.
Fechei os olhos tentando expulsar as imagens que me machucavam.
Fernando sorrindo no dia em que me pediu em casamento.
Fernando escolhendo o anel comigo, dizendo que aquilo não era só amor, era certeza.
Fernando prometendo um futuro, enquanto dividia a cama com a minha melhor amiga.
Soltei um riso curto, ácido.
Como eu fui i****a.
Virei a taça num gole só e levantei trôpega. O corpo estava leve pelo álcool, mas pesado pela dor.
Peguei uma calça de moletom, uma blusa confortável, nada que envolvesse espelho. Prendi o cabelo num coque torto e respirei fundo diante da pia.
Eu não parecia eu.
Olhos inchados, pele pálida, olhar perdido.
Mas eu estava de pé, e isso já era alguma coisa.
O interfone tocou. Dei um pulo.
— Dona Isadora? — era o senhor Geraldo.
— O chaveiro chegou. Posso mandar subir?
— Pode, obrigada.
Minutos depois, o som metálico das ferramentas invadiu o apartamento. O chaveiro, um homem simpático de uns cinquenta e poucos anos, trabalhava rápido.
— Problema de segurança? — perguntou enquanto desmontava a fechadura.
— Algo assim — respondi, seca. Ele entendeu o limite.
Fiquei ali, parada, abraçada ao próprio corpo, ouvindo o som das peças sendo trocadas.
Parecia simbólico.
Como se cada parafuso substituído estivesse arrancando um resto do Fernando da minha vida.
Quando ele terminou, me entregou duas chaves novas.
— Pronto. Agora está segura.
Assenti, paguei, agradeci com um fio de voz.
Fechei a porta e travei todas as trancas. Duas vezes.
Segurei as chaves contra o peito como se fossem escudos.
Por um instante, pensei em gritar.
Mas nada saiu.
Só lágrimas.
Chorei em silêncio até a noite engolir a janela.
E quando percebi, estava sentada na beirada da cama, a garrafa quase vazia ao lado, o corpo trêmulo e a alma em ruínas.
Mas ele não entraria mais.
Nem com chave.
Nem com palavras.