Capítulo 5
LIZ NARRANDO 🌶️
Eu ainda tava parada na porta quando o portão se fechou, e como da última vez que ele se foi, ele também não olhou pra trás.
E mesmo assim, mesmo com aquele adeus, eu continuei aqui olhando pro escuro da rua como se pudesse esticar o tempo. Como se ficasse olhando um pouco mais fizesse voltasse.. mas ele não voltou.
Só o vento veio bagunçando os fios soltos do meu cabelo e trazendo aquele cheiro dele, perfume caro misturado com alguma coisa que eu não sabia o nome, mas que grudava no ar como lembrança... foi estranho, nunca pensei que sentiria algo assim.
Era o João Lucas…
O nome ecoava na minha cabeça como uma batida de tambor. Eu repeti tantas vezes em silêncio que parecia mentira. Parecia que eu tinha sonhado, e que agora o portão vazio era a prova de que nada daquilo tinha acontecido. Mas a camisa que ele usava ainda tava marcada com a lágrima que caiu quando ele me abraçou. Eu vi e senti ele.. Não dava pra negar que era ele.
Ele voltou depois de nove anos.
Eu tinha só nove quando ele foi embora.. era só uma menina, com aparelho nos dentes, cabelo cheio de maria-chiquinha e o coração amarrado no dele como se fosse elástico.. sei lá como definir tudo. Lembro do dia em que ele saiu e não voltou, não teve aviso, não teve tchau. Acordei e ele não tava mais. Achei que fosse coisa de “adulto” já que perto de mim ele sempre pareceu um, achei que ele ia voltar depois. Só que o depois virou semanas, meses, anos e a saudade virou silêncio.
E hoje ele tava aqui na sala, no sofá.. calado, com a cara mais séria do mundo. E eu... eu não sabia onde enfiar minha cabeça. Porque aquele cara que entrou por aquela porta hoje não era o mesmo menino que me chamava de "pirralha" e que brigava comigo porque eu roubava os chinelos dele.
Ele tava diferente no olhar, no jeito de falar, na forma de andar pela casa. Era um homem agora com sombra no olhar, com voz mais baixa, com peso nos ombros. E bonito... meu Deus, como ele tava bonito.. deve ser até errado achar isso.
Fechei a porta devagar e voltei pra sala me jogando no sofá. O silêncio da casa era ensurdecedor depois daquela visita. Minha mãe tava no quarto, provavelmente fazendo as coisas dela. E eu aqui, com o coração na boca e a cabeça girando.
Como é que a gente lida com isso?
Com um irmão que vai embora menino e volta homem?
Com aquele jeito dele de me olhar como se estivesse tentando entender quem eu me tornei?Com o perfume dele grudado na blusa que ele me abraçou?
A verdade é que eu ainda tava aérea como se flutuasse num sonho meio torto. Eu queria estar com raiva por lembrar que ele nos deixou, que sumiu, que nem mandava notícia. Mas ele apareceu e toda a raiva se dissolveu em segundos. Bastou ele me olhar com aquele olhar cheio de passado pra tudo voltar. Como se nada tivesse mudado.
Mas mudou.. nós mudamos!
E o que sobrou entre a gente... eu não sei nomear. Só sei que não era mais coisa de criança. Não era saudade de irmã. Era outra coisa.. um nó no estômago. Um arrepio na pele, uma vontade de perguntar tudo e, ao mesmo tempo, não dizer nada.
Passei as mãos no rosto, tentando me acalmar. O coração tava acelerado. O peito apertado, e eu me sentindo meio errada. Como se não fosse certo sentir isso. Mas era impossível fingir. Impossível não reparar no jeito como ele tava diferente. Até o jeito de andar parecia mais firme.
Levantei do sofá e fui até a janela. Lá fora as luzes do morro piscavam como sempre. A vida seguia mas dentro de mim, tava tudo parado.
Fiquei ali abraçada no próprio corpo, tentando entender o que se passava. Me perguntei se ele também sentiu alguma coisa. Se o abraço dele foi só saudade de irmã. Se a forma como ele me olhou foi só espanto por eu ter crescido ou algo a mais.
Será que ele também sentiu esse choque?Essa tensão que não tinha nome?Ou era só coisa da minha cabeça?
Fui pro meu quarto e tranquei a porta como se aquilo me desse alguma segurança. Tirei a blusa e a joguei no cesto vestindo um baby doll, a cabeça tava a mil.
Pensei em tudo que queria ter dito, em tudo que não consegui. Em como ele chegou, como ficou, como saiu. Era como se o tempo tivesse dado uma volta só pra me colocar diante dele de novo, como se o destino tivesse brincando comigo.
E aí lembrei do Natal.. meu Deus, talvez ele passe o natal com a gente depois de anos e eu me esqueci da lista de presentes.
Drogä…
Levantei com um pulo assustado e fui anotar num papel os nomes… já tinha em mente o que compraria pra cada um, menos pra ele.
"Presentes de Natal:
– Rafael
– Noah
– Maitê
– Mãe
— Pai
– João Lucas (?)"
Sim, coloquei o nome dele com um ponto de interrogação.
Porque eu nem sabia se ele ainda ia estar aqui na semana que vem. Nem sei o que dar pra alguém que sumiu nove anos e volta desse jeito, parecendo personagem de filme, ele é um grande ponto de interrogação pra mim agora.
Fiquei olhando pra lista.
Amanhã cedo eu vou sair.. vou no shopping com a Maitê preciso vê se consigo comprar tudo antes do tumulto de última hora. Todo ano era assim, presente de última hora, sacolas cheias, meu pai não querendo a gente fora do complexo.. Só que esse ano... esse ano tem ele e eu quero que tudo corra bem.
E isso mudava tudo.
Sentei na beirada da cama e respirei fundo pensando em como será encontrar ele de novo amanhã. Se ia abraçar, se ia fingir que nada aconteceu. Se ia falar da vida, perguntar das coisas ou só ficar olhando ele feito boba.
Talvez eu fingisse que tava tudo normal.
Talvez eu dissesse que senti falta dele.
Ou talvez eu não dissesse nada.
Deitei de novo, dessa vez com a cabeça no travesseiro e o coração mais pesado. Era estranho sentir isso, essa confusão entre carinho e desejo, entre passado e presente. Ele era meu irmão de criação. Mas a gente nunca teve o mesmo sangue. A gente cresceu junto, mas não é igual mais.. o tempo virou tudo do avesso.
Fechei os olhos pra tentar dormir mas só vinha ele na minha mente, só pensava no jeito como ele me olhou, como ele falou "tô aqui agora".
E na dúvida que ficou depois.
Por quanto tempo? E o que isso significava?