capítulo 2

1426 Palavras
Linyin desceu as escadas em silêncio. Cada degrau rangia como se o tempo tivesse parado apenas para observá-la. O coração batia forte, acelerado demais para o ritmo calmo da manhã. O cheiro familiar do café recém-feito se misturava ao perfume adocicado de flores — o mesmo aroma que Kayo Mazaki, sua mãe adotiva, sempre usava para mascarar intenções sombrias. Na cozinha, Kayo estava de costas, mexendo calmamente num copo de suco. Os movimentos eram elegantes, calculados, e o leve sorriso em seu rosto fazia o sangue de Linyin gelar. A lembrança do passado ainda pulsava na mente: o mesmo gesto, o mesmo copo, a mesma armadilha disfarçada de amor. — Bom dia, mãe — disse Linyin, a voz trêmula, mas tentando soar natural. Kayo se virou lentamente, o olhar frio como vidro. — Bom dia, querida. Está acordada cedo hoje. Linyin forçou um sorriso — o mesmo sorriso que aprendeu a usar quando precisava esconder o medo. — É… tive um sonho estranho — respondeu, observando cada movimento da mãe. — Onde está o pai? — Lá fora, no jardim — respondeu Kayo calmamente. — Está pensando em suas plantas, como sempre. O som de líquido sendo despejado preencheu o silêncio. O copo estava cheio. Linyin sabia que era aquele. O veneno invisível, dissolvido em suco de laranja. O mesmo veneno que tiraria a vida de seu pai em poucas horas. Ela respirou fundo e, com o coração disparado, aproximou-se da bancada. — Posso levar para ele? — perguntou, tentando parecer inocente. Kayo a observou por alguns segundos longos demais. O olhar era inquisitivo, quase desconfiado, mas por fim assentiu. — Claro, filha. Seja gentil com ele. — E o sorriso que veio depois parecia cortante, como uma lâmina fina. Linyin segurou o copo, sentindo o peso da decisão em suas mãos. A superfície fria do vidro tremia sob seus dedos. Cada passo até o jardim parecia mais difícil do que o anterior. Quando avistou o pai, ajoelhado junto às roseiras, uma onda de lembranças a atingiu — os conselhos, os abraços, a bondade. Ele fora o único a enxergar algo bom nela. Ela parou diante dele, o copo na mão. — Pai… — murmurou, a voz embargada. Ele sorriu, levantando-se. — Linyin, você parece pálida. Está tudo bem? As palavras ficaram presas na garganta. Dizer a verdade poderia custar-lhe tudo. Mas o silêncio, dessa vez, custaria a vida dele. Ela olhou o copo. Então, com um movimento firme, deixou-o cair. O som do vidro estilhaçando ecoou alto pelo jardim. — O que foi isso?! — gritou Kayo, surgindo na porta. Linyin encarou a mãe de volta, agora sem medo. — Acho que o suco estava... estragado — respondeu, firme. Por um instante, o mundo pareceu parar. Kayo a observava com olhos frios, calculando. Linyin sabia que a guerra acabara de começar. Mas dessa vez, ela estava pronta. O som dos cacos de vidro ainda ecoava no ar quando o silêncio tomou conta do jardim. O vento balançava as folhas, e o perfume das rosas misturava-se à tensão que dominava o ambiente. Linyin manteve o olhar firme na mãe, tentando controlar a respiração. Kayo Mazaki estava parada à porta, imóvel, como uma estátua de porcelana prestes a rachar. — Estragado? — repetiu Kayo, lentamente, com um sorriso que não chegava aos olhos. — Que bobagem é essa, Linyin? O pai, Senhor Mazaki, virou-se confuso, enxugando as mãos na calça de linho. — Aconteceu alguma coisa? Linyin respirou fundo, sem desviar o olhar da mãe. — Eu… senti um cheiro estranho. Preferi não arriscar — respondeu, tentando soar calma. Kayo caminhou até ela, cada passo ecoando como um aviso. Seu rosto mantinha a mesma serenidade impecável de sempre, mas os olhos... os olhos eram frios e cortantes, escondendo uma fúria silenciosa. — Que tolice — disse, pegando cuidadosamente um pano para limpar os cacos. — Você sempre foi tão... sensível. O pai se aproximou, colocando a mão no ombro da filha. — Foi apenas um acidente, não é? — perguntou, buscando paz onde só havia tensão. Kayo sorriu para ele — aquele sorriso ensaiado, doce e falso. — Claro, querido. A nossa menina está apenas nervosa. Talvez sonhou algo r**m de novo. Aquelas palavras atingiram Linyin como uma lâmina fina. Era assim que Kayo sempre fazia: moldava a verdade ao próprio favor, transformava dúvidas em culpa. Durante anos, Linyin acreditara ser a errada, a exagerada, a frágil. Mas agora, sabendo o que sabia, ela via com clareza cada manipulação escondida sob aquele rosto calmo. — Deve ser isso — respondeu, forçando um sorriso. — Só um sonho. Kayo se endireitou, observando a filha como quem estuda um adversário. — Pois então descanse um pouco, querida. Mais tarde teremos visitas importantes. — Sua voz era suave, mas havia uma ameaça invisível ali. — E lembre-se, às vezes é melhor deixar o passado dormindo. Linyin entendeu o recado. Sua mãe já suspeitava. Quando Kayo se afastou, Linyin sentiu o coração pulsar com mais força. O pai voltou ao trabalho nas flores, distraído, enquanto ela olhava para o chão coberto de cacos e suco derramado. Por pouco — por muito pouco — ela havia mudado o destino. Mas salvar o pai era apenas o começo. Ela precisava de provas, precisava expor Kayo de forma que ninguém pudesse duvidar. A mulher era poderosa, influente, capaz de manipular qualquer um. Enquanto o vento soprava, Linyin fechou os punhos. A lembrança do disparo, da morte, do sangue frio voltava em flashes dolorosos. Ela não podia permitir que aquela história se repetisse. Dessa vez, seria diferente. E se Kayo Mazaki queria uma guerra silenciosa… Linyin estava pronta para vencê-la. O cair da tarde tingia a mansão Mazaki de tons dourados e vermelhos. Criados andavam apressados, ajeitando flores e porcelanas. O ar cheirava a incenso e poder — a visita mais importante do mês estava prestes a começar. Linyin descia as escadas devagar, o coração apertado. Aquele dia estava gravado em sua memória, mas agora tudo parecia mais nítido… e mais incômodo. Cada olhar, cada gesto da mãe, soava como um teatro ensaiado. Kayo Mazaki, impecável em um quimono de seda escura, olhou por cima do ombro e disse com voz suave: — Linyin, querida, sorria. Seu noivo chegou, e com ele, as famílias que decidirão o futuro do banquete. Linyin obedeceu. O som dos convidados ecoava no grande salão. Roupas finas, risadas falsas, cumprimentos ensaiados. E lá estava ele — Lin Hayato, alto, bonito, elegante. O mesmo olhar calmo de sempre, o mesmo sorriso que, por tanto tempo, a fez acreditar em amor. Mas agora, havia algo diferente. Linyin sentia uma estranha repulsa, um arrepio gelado que não sabia explicar. Talvez fosse apenas o peso das lembranças distorcidas. Talvez sua alma soubesse o que sua mente ainda não lembrava completamente. — Lin — cumprimentou ela, inclinando-se levemente. Ele sorriu, estendendo a mão de modo cortês. — Linyin, você está deslumbrante, como sempre. A voz dele era mansa, educada… mas vazia. Cada palavra parecia estudada, sem calor, sem verdade. Ele a observava como quem avalia um investimento, não uma noiva. — Obrigada — respondeu, forçando um sorriso doce. — Espero que o banquete de duas semanas esteja à altura do que planejam. Ele riu baixo. — Tenho certeza de que estará. Sua mãe tem bom gosto… e você herdou isso. Kayo, próxima à mesa, disfarçou um sorriso satisfeito. As famílias trocavam cumprimentos, discutindo alianças, heranças e negócios. O ambiente exalava elegância, mas o que Linyin via agora era podridão disfarçada de nobreza. Entre os convidados, Minay apareceu com o mesmo charme de sempre. O vestido lilás destacava seu olhar provocador. Ela se aproximou, abraçando Linyin com afeto falso. — Que sorte a sua, Linyin. Noiva do homem mais cobiçado da noite — disse, sorrindo para Lin de um jeito que Linyin quase não percebeu. Ela riu, fingindo ingenuidade. — Sorte mesmo — respondeu. — Eu m*l acredito que tudo isso está acontecendo. Minay lançou um olhar rápido para Lin, e ele respondeu com um sorriso leve, discreto demais para os outros notarem, mas suficiente para despertar em Linyin uma estranha inquietação. Ela não entendia ainda. Não lembrava totalmente do que viria. Mas algo nela gritava que aquele amor era falso, que algo muito podre se escondia por trás dos olhares trocados entre Lin e Minay. Por isso, manteve o papel. A garota doce, apaixonada, distraída. Mas dentro dela, a mulher que já morrera observava tudo — fria, silenciosa, esperando o momento certo. Dessa vez, ela descobriria a verdade antes que o sangue começasse a correr.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR