— É só uma questão com o meu pai... depois de anos, ele decidiu aparecer e fazer papel de bom samaritano — Murilo confessou, olhando para o chão com um sorriso que m@l disfarçava a amargura. Sua voz baixa refletia a turbulência interna que aquela situação despertava.
— Quer entrar e conversar um pouco? Guardar isso só pra você não é bom. Às vezes, desabafar ajuda — sugeri, minha voz transbordando uma empatia genuína. Eu me inclinei levemente em sua direção, tentando encorajá-lo a se abrir.
— Não sei se é uma boa ideia... o Túlio pode não gostar e eu quero evitar confusões — ele disse, forçando um meio sorriso que não alcançou seus olhos, que permaneciam sombrios e inquietos.
— Vamos, Murilo, ele não manda em mim. Somos amigos, não é? — Insisti, tocando levemente seu braço em um gesto reconfortante enquanto abria o portão com a outra mão. — Vamos conversar um pouco, ele não vai se importar.
Murilo hesitou, seu olhar alternando entre o portão aberto e meu rosto. Respirou fundo, o peito subindo numa inalação profunda que parecia carregar o peso do mundo, antes de finalmente decidir entrar. Ao passar por mim, um aroma irresistível emanou de seu perfume, uma mistura sutil de madeira e cítricos que provocou uma sensação inesperada e desconcertante em mim. Rapidamente, afastei os pensamentos proibidos que tentavam se infiltrar em minha mente.
Com um movimento quase mecânico, fechei o portão atrás de nós e o guiei para dentro de casa. Cada passo que dávamos ressoava no silêncio da entrada, ecoando mais alto do que eu gostaria. Enquanto caminhávamos pelo corredor em direção à sala, o jogo de luzes filtrado pelas cortinas criava um ambiente acolhedor, mas eu me esforçava para manter o foco na conversa que teríamos, tentando ignorar a tensão sutil, porém crescente, que parecia envolver-nos de maneira quase palpável. A cada passo, um lembrete da complexidade dos meus sentimentos, um terreno emocional que, embora perigoso, parecia cada vez mais difícil de evitar.
(...)
Assim que entramos, o ambiente acolhedor da minha sala parecia abraçar a tensão do momento, suavizando-a com sua familiaridade. Indiquei a Murilo um lugar confortável no sofá grande e acolchoado, cujas almofadas já estavam moldadas pelo uso frequente, prometendo um repouso agradável. Ele se moveu em direção ao sofá, deixando-se cair com um suspiro de alívio, enquanto observava o espaço com um olhar de quem tentava encontrar alguma paz.
— Obrigado, July, mas não precisava se incomodar por minha causa — ele disse, com um sorriso gentil que alcançava os olhos, trazendo um brilho suave que contrastava com a preocupação anterior.
— Não é incômodo nenhum, Murilo. Fique à vontade — respondi, caminhando em direção à cozinha. Os pisos de madeira ecoavam suavemente sob meus passos, enquanto eu me movia com a familiaridade de quem conhece cada canto da própria casa. Na cozinha, peguei duas taças de vidro, escolhendo deliberadamente não optar por copos casuais, em um gesto que pretendia mostrar cuidado e consideração.
Servi a mim mesma um copo de suco fresco de laranja, espremido naquela manhã, e enchi o outro para Murilo, sentindo o aroma cítrico perfumar o ar, promovendo uma sensação de frescor e leveza. Retornei à sala, entregando-lhe a taça com um gesto fluido, antes de me sentar ao seu lado no sofá.
Havia uma proximidade confortável entre nós, as pernas quase se tocando, mas me esforcei para manter minha postura relaxada, cruzando as pernas e apoiando a taça cuidadosamente no descanso de braço ao meu lado. Meu coração batia um pouco mais rápido com a proximidade e eu precisava concentrar-me nas razões pelas quais estávamos ali, não nas que meu coração impulsivamente desejava explorar.
Conversávamos sobre temas leves inicialmente, mas estava claro que o assunto sobre seu pai precisava ser abordado. Eu me esforçava para manter a conversa fluindo, para que ele se sentisse confortável o suficiente para abrir-se, sempre atenta para não cruzar a linha delicada e me intrometer demais.
— Então seu pai voltou? — Perguntei, com a voz suave, lembrando-me da história que ele me contara há um tempo. Seu pai tinha deixado a família para viver com outra mulher, uma traição que havia deixado marcas profundas em Murilo e sua família.
— Sim, ele voltou — Murilo confirmou, sua voz baixa, a amargura tingindo cada palavra. Ele desviou o olhar, fixando-o em algum ponto distante da sala, como se pudesse visualizar a cena que descrevia. — Depois de anos, ele aparece como se nada tivesse acontecido. E agora quer que eu e a Mônica conheçamos nosso meio-irmão. Ele pensa que seria uma boa ideia a gente conviver.
— E isso não é bom? — Indaguei delicadamente, inclinando-me ligeiramente em sua direção, tentando oferecer não apenas meu ouvido, mas também meu apoio. Era importante para mim entender sua perspectiva sem impor julgamentos.
— Para mim, não é, July — ele explicou, seus olhos ainda distantes, agora ligeiramente nublados pela emoção. — Ele abandonou minha mãe quando ela mais precisava dele. Não acho justo ele agora voltar e ainda querer que aceitemos essa nova família.
Eu pausei, absorvendo a dor em suas palavras. A sala, normalmente acolhedora, parecia contrair-se ao redor de nós, refletindo a tensão de seu relato.
— Eu sinto muito por tudo isso, Murilo — disse sinceramente, sentindo um aperto no coração ao vê-lo assim. Era nítido que ele ainda carregava a dor daquela situação. Estendi minha mão, tocando levemente a sua em um gesto de conforto.
— Isso deve ser muito difícil para você — continuei, minha voz um sussurro compreensivo. — Se precisar falar mais, ou apenas desabafar, estou aqui.
Murilo olhou para mim, seus olhos encontrando os meus. Havia uma gratidão muda, mas também uma vulnerabilidade que ele raramente mostrava. Com um leve aceno de cabeça, ele expressou seu agradecimento, apertando suavemente minha mão.
— Obrigado, July. Às vezes, só de falar já ajuda um pouco — ele admitiu, um sorriso triste tentando romper a seriedade de sua expressão.
Nós continuamos a conversar, cada palavra e pausa carregadas de significado. Através da janela, a luz do fim da tarde começava a se despedir, a sala se enchia de sombras suaves que pareciam dançar ao ritmo de nossa conversa séria, criando um espaço seguro para que Murilo pudesse despejar suas preocupações sem medo de julgamento. Era um daqueles momentos em que o tempo parecia suspender-se, dando lugar a um silêncio compartilhado que, por si só, era uma forma de cura.