Dulce
Aquela dor era insuportável.
Eu via o meu sangue deixar um rastro vermelho na água enquanto eu tentava nadar o mais rápido possível.
Não era a primeira vez que eu era atacada por um humano, mas era a primeira vez que um deles arrancava um pedaço de mim.
— Você precisa voltar para a terra. — a voz da Água ecoou na minha cabeça.
Me ajudando, Ela aumentou a correnteza, me empurrando para ir mais rápido até eu chegar na areia da praia.
— Minhas pernas! — gritei pela dor, me arrastando na terra. E pouco a pouco, a minha cauda foi sumindo, dando lugar às minhas pernas.
O ferimento ainda estava lá e o sangue não havia cessado. Ele havia literalmente arrancado um pedaço da minha pele.
— Eu não consigo te curar rápido enquanto parte de você estiver em mãos humanas.
— Então, eu preciso pegar de volta! Isso está doendo demais!
Levantei e fui até onde deixei minhas roupas. Escondidas atrás de uma pedra alta numa região pouco movimentada. Fiquei apenas de short e sutiã e usei minha blusa para estancar o sangue, a amarrando com força em volta da minha perna.
— Não posso localizar a escama enquanto ela não for tocada por água salgada.
— O que eu faço enquanto isso?
— Descanse, minha querida. Você trabalhou bem hoje.
— Mas eu deixei um deles escapar e ele ainda me feriu!
— Ele estava na água quando você começou a cantar, estava longe da cratera, não podia te ouvir com clareza e não foi atraído. Está tudo bem, não é sua culpa.
— Eu só não quero que ache que eu estou te desafiando. Eu prometi que nunca mais iria contra você. — sentei na areia e deixei que Ela molhasse o meu corpo, como se me abraçasse.
— Você já entende que apesar de parecer crueldade, isso tudo é muito importante. Eu preciso me alimentar para poder dar vida aos seres que dependem de mim. É só uma troca.
— Sim, eu compreendo e todos nós somos gratos. — falei me referindo aos animais marinhos.
— Os humanos me poluem todos os dias, o mínimo que podem fazer é dar suas vidas por mim. Não há nada de errado em tentar sobreviver.
— E é por causa disso que eu estou tentando não ficar com raiva do homem que me esfaqueou. — eu ri de leve.
Eu a a Água tínhamos uma relação agradável, pelo menos nas últimas décadas. No início de tudo, eu a odiava por me obrigar a tirar todas aquelas vidas, mas com o passar dos anos, aprendi a necessidade disso e claro, era a única forma para Ela me manter viva.
Eu só estava aqui agora, sentindo essa brisa enquanto enterrava meus pés na areia porque Ela permitia que eu continuasse respirando. Nós duas sustentávamos uma a outra.
•••
— Dulce, acorde! — abri meus olhos e me levantei, limpado a areia do meu corpo. Já era noite, eu havia dormido o dia inteiro. — A escama tocou em água salgada. Está no oceanário da cidade, é muito perto daqui. Corra!
As ruas estavam vazias, eu corri rapidamente e em menos de cinco minutos eu já estava no oceanário. A entrada estava destrancada e eu entrei devagar.
Não me lembrava qual foi a última vez que estive em um oceanário. Eu sempre sentia dor por aqueles animais que estavam presos para servir de entretenimento para as pessoas. Eu odiaria ter que passar a minha vida presa numa caixa de vidro, sem poder viajar por países quando eu quisesse.
Fui observando todos eles, sentindo suas energias e as dores que carregavam. E eles também me sentiram, aproximando-se e parando para me ver passar. Tínhamos uma ligação de alma.
— Eu sinto muito por tudo isso. — falei tocando uma parede de vidro, e o golfinho que me encarava, encostou seu focinho onde minha mão pousou.
Continuei andando para a frente sem tirar meus olhos do aquário e acabei não vendo a vassoura encostada na parede, que caiu no chão, com um barulho que ecoou por aqueles corredores silenciosos.
De dentro de uma sala, eu ouvi um arrastar de cadeira, que indicava que alguém havia levantado. Corri até um armário de limpeza e me escondi lá dentro. Pela fresta da porta, vi um homem sair e observar a vassoura no chão. Ele olhou em volta e começou a andar, afastando-se dali.
Saí do armário e fui direto para a sala de onde ele havia saído. Era um laboratório completo. Vi que o microscópio estava iluminado, com o pedaço da minha escama posicionado para análise. O peguei e saí dali antes que ele retornasse.
Já na rua, eu segurei a escama nas minhas mãos caminhando em direção à Água. Agora Ela poderia me curar.
Não pude deixar de pensar que aquele homem provavelmente era o homem que havia me atacado no mar. Eu nem ao menos vi seu rosto, nem na água, onde eu só via a parte do corpo submersa e nem no oceanário, que era pouco iluminado para não incomodar os animais.
Aquela era a minha primeira vez naquela cidade e era também a primeira vez em anos que eu visitava os lugares que ficavam além da praia. Sempre fiz apenas o que deveria fazer e ia embora, sem nem prestar atenção em tudo.
Era uma cidade pequena, mas muito bonita. As ruas tinham o chão de ladrilhos, como nas cidades medievais. E tudo ali parecia ter sido conservado nos anos trinta. Isso me dava uma sensação de estar em casa, já que eu passei os primeiros anos da minha vida correndo pelas ruas recém construídas da Alemanha de 1930.
Foi então que uma ideia surgiu em mim.
Já na praia, eu corri até o mar, molhando os meus pés.
— Você encontrou! Agora eu posso curá-la mais rápido. Aproxime a escama da sua ferida exposta e eu a unirei a você novamente. — fiz o que Ela disse e uma luz reluziu na minha perna, deixando-a nova em folha.
— Obrigada. — sorri. — Eu posso te pedir uma coisa?
— O que você quiser, minha querida.
— Posso ficar um pouco nessa cidade? Eu realmente gostei daqui e queria poder conhecer melhor. Ou pelo menos poder fazer parte de algum lugar uma vez na vida.
— Atenderá todos os meus chamados, em qualquer lugar do mundo?
— Sempre.
— Tudo bem, só peço que não se apegue a esta cidade e muito menos as pessoas que vivem nela. Sabe o que aconteceu da última vez que se apaixonou.
— A gente prometeu que iria esquecer isso. — abracei meu próprio corpo, incomodada.
— Não tenho como esquecer. Ele estava te afastando de mim, você quase me abandonou! Não sabe como tenho medo disso.
— Não vai acontecer de novo. Eu não suportaria ver outro amor meu ser afogado por você.
— Sabe que eu precisei. Nossas vidas e a de todos na terra estavam em jogo.
— Vamos esquecer isso, ok?
— Ok. Você vai dormir agora?
— Sim.
Comecei a tirar minhas roupas e caminhei para entrar no mar. Mergulhei por baixo de uma onda e pedi em pensamento para que minha cauda surgisse. E a pele sumiu, dando lugar às minhas escamas rosadas, minhas pernas se fundiram, tornando-se uma bela cauda.
Nadei até o fundo, me encostando na areia, que se agitou quando me aproximei, me envolvendo num quase abraço. Senti que Ela deixou a água ao meu redor mais quente, com o intuito de que eu me sentisse mais aconchegante. E não demorou muito até eu dormir profundamente.
•••
Pela manhã, eu fui até o oceanário carregando os documentos falsos mais recentes que eu consegui fazer. Usei o meu nome real, mudando apenas o meu sobrenome, de Saviñon para Blane. Na documentação, estava registrado que eu possuía vinte e quatro anos de idade.
O oceanário estava aberto para visitação e eu via muitas pessoas entrarem e saírem de lá. A maioria eram pais que levavam seus filhos segurando em suas mãos.
Eu não sabia bem no que iria trabalhar, mas eu queria algo que me aproximasse dos animais.
— Com licença? — me aproximei de uma das guias.
— No que posso te ajudar? — ela sorriu para mim.
— É que eu sou nova na cidade e estou procurando um emprego, vocês não estariam procurando por alguém?
— Sim, em algumas áreas. Eu te levo até a sala do diretor e você conversa com ele, ok?
— Ok!
A segui até chegarmos à porta de uma sala. Ela pediu que eu aguardasse e entrou. Depois de alguns segundos, retornou e me mandou entrar.
O diretor parecia ter pelo menos cinquenta anos, mas até que era muito bonito para a idade, eu confesso. Tinha uma barba grisalha muito bem desenhada que cobria a sua face e um cabelo liso perfeitamente penteado e também grisalho.
— Bom dia. — ele sorriu, apertou minha mão e fez sinal para que eu me sentasse.
— Bom dia.
— Eu sou o Albert Carter, biólogo marinho e capitão naval aposentado, sou diretor de Oceânia há trinta anos. Agora me fale sobre a senhorita. — pediu.
— Eu me chamo Dulce Blane. — coloquei minha carteira de identidade sobre a mesa. — Sou da França, mas nunca morei num país fixo por muito tempo, estou sempre viajando. — mostrei meu passaporte cheio de vistos. — Eu tive muito empregos diferentes, nenhum deles era registrado, porque eu não ficava por muito tempo, mas eram empregos simples. Eu já fui garçonete, já trabalhei em cinemas, como guia de museus e até mesmo como zeladora de um zoológico.
— Bom, nós estamos precisando de um zelador. Mas você tem que gostar dos animais, porque terá que filtrar a água, às vezes até mergulhar com eles e terá que alimentar também.
— Mergulhar? — se minha pele tocasse em água salgada, ela poderia sofrer mutações. Minha cauda só surgia quando eu queria, mas eu não podia impedir o aparecimento de escamas por algumas regiões do meu corpo.
— Não se preocupe, os tubarões são inofensivos e você sempre vai entrar com algum cuidador.
— Não são os animais que me preocupam. — cocei a nuca. — É a água salgada. Pode fazer m*l para a pele. — não para a minha, mas era a única desculpa possível.
— Você usará uma roupa de mergulho especial, nada além do seu cabelo tocará a água.
— Ótimo. — assenti. — Sendo assim, eu vou adorar ser zeladora.
— Muito bem. Seja bem vinda à equipe. — ficamos de pé e nos cumprimentamos. — Pode começar amanhã mesmo, às seis.
— Como quiser. — sorri.
Aquilo foi fácil. Possivelmente, não haviam tantas pessoas dispostas a fazer aquele tipo de serviço numa cidade tão pequena. Muitas pessoas tinham medo de nadar com animais marinhos de grande porte, mas eu não.
Eu amava ir para o meio do oceano pacífico, muito longe de qualquer continente para nadar com as baleias. Eu parecia um gafanhoto perto delas, mas todas respeitavam o meu espaço e bailavam comigo no mesmo ritmo.
•••
Entrei numa pensão que estava com quartos para alugar e escolhi um que ficasse de frente para o mar. Assim, eu poderia pular a janela sempre que quisesse conversar com a Água que era a minha única companheira.
O quarto era todo rosado, com uma cama de casal, um guarda-roupas, um banheiro, uma televisão presa na parede e uma penteadeira com um espelho bem grande. Eu diria que era um ambiente muito confortável para se estar.
Os outros que moravam aqui eram jovens, possivelmente trabalhavam e moravam aqui para se livrar dos olhos controladores de seus pais. Eu os entendia. Quando fiz dezoito, tudo o que eu queria era sair de casa e desbravar esse mundo sozinha. Só nunca pensei que logo eu faria isso de um jeito completamente inimaginável, dando adeus a todos que eu conhecia e amava, me dedicando a estar viva e manter a Água viva.