Aliança Silenciosa

912 Palavras
Soraia Saio do quarto do Lobo e vou pro meu. A porta fecha e é como se as pernas simplesmente sumissem. Escorrego pro chão, encosto a cabeça na madeira e choro. Choro em silêncio, com a mão tapando a boca pra não fazer um som. O choro é quente, amargo, e vem de um lugar que eu nem sabia que existia em mim. Ajudar o homem que eu amo a reencontrar outra mulher. Que p***a é essa? Que armadilha é essa que a vida inventou pra mim? Eu me sinto igual aquelas mulher trouxa de novela das nove, só que pior, porque aqui não tem final feliz pra mim. O final feliz dele é encontrar a esposa e sumir da minha vida. Fico ali no chão até as lágrimas secarem e o rosto ficar todo inchado. Aí, me levanto. Me olho no espelho. Os olhos tão vermelhos, a boca ainda tá um pouco inchada do beijo dele... do beijo que não era pra mim, era pra uma mulher qualquer que tava no caminho dele. Mas não dá. Não dá pra ficar aqui me afogando em mágoa. O Evandro – não, o Miguel – precisa sair daqui. O Lobo precisa encontrar a mulher dele. E eu... bem, eu preciso sobreviver. E se ajudar eles é o jeito, então que seja. Umas horas depois, bato na porta do Lobo de novo. Quando ele abre, o olhar dele é cauteloso, cheio de culpa. Mas o meu tá decidido. Firme. — Eu vou te ajudar — falo, sem rodeios. — Vamos achar sua mulher. Depois você vai embora com ela e com o seu filho. Com a sua família. As palavras saem como facas da minha boca, cada uma me cortando por dentro. Vejo o impacto nelas, no rosto dele. Ele sabe o que tá me custando falar aquilo. Ele só acena com a cabeça, um gesto sério, e diz um "obrigado" que parece carregado de um peso do tamanho do mundo, e promete me ajudar também. E aí começa a nossa aliança silenciosa. Nos dias que se seguem, viro uma sombra, uma espiã dentro da minha própria casa. Quando o Tito resolve ficar em casa à noite, eu invento uma dor de cabeça, um m*l-estar, qualquer coisa pra ele não me levar pro quarto e ficar de vigia. Deixo a porta do escritório dele levemente encostada quando sei que ele tá com a chave, pra dar uma brecha pro Lobo dar uma olhada. Aviso sobre os horários que o Tito costuma sair, os dias que ele fica mais tempo no QG, os vapô que tão de plantão. A cumplicidade entre a gente cresce. É um negócio estranho. A gente quase não troca palavra, mas os olhos se encontram e é como se a gente tivesse uma conversa inteira. Um olhar dele me pergunta "tá seguro?". Um aceno meu responde "pode ir". É perigoso, é excitante, e é a coisa mais dolorosa que eu já fiz na vida. Porque com cada informação que eu passo, com cada portinha que eu abro, eu tô ajudando ele a chegar mais perto de outra mulher. E eu me destruo por dentro um pouquinho mais. O Lobo, pelo menos, tenta. Ele evita qualquer gesto que possa me confundir. Não me toca mais, não fica perto demais. Mas a tensão... a tensão é inevitável. Às vezes, a gente se encontra no corredor de noite, os dois checando se tá tudo tranquilo. Ficamos parados, nos olhando, e o silêncio grita. Grita tudo que a gente fez, tudo que a gente sente e não pode admitir. Grita o desejo que ainda tá ali, vivo, mas agora enterrado debaixo de uma promessa e de uma dor imensa. Eu ainda sonho com ele. Sonho com aquele dia no quarto, com as mãos dele no meu corpo, com a voz rouca no meu ouvido. Mas aí acordo, e a realidade bate: aquele homem não é meu. Ele ama outra. E eu tô aqui, ajudando ele a voltar pra ela. É uma loucura. Uma masoquismo puro. O pior é que, por fora, algo mudou. Ter um propósito, mesmo que seja esse, me deu uma estranha força. Deixei de ser só a mulher que apanha, a mulher assustada. E o Tito percebe. Hoje, ele me puxou no sofá depois do almoço, com um sorriso que não chega nos olhos. — Você anda mais leve, gata — ele comentou, passando a mão no meu cabelo com uma posse que me deu arrepios. — Tá mais soltinha. Gostei. O olhar dele era perigoso. Não era um elogio de verdade. Era uma avaliação. Um predador sentindo uma mudança na presa. Ele não é burro. Sabe que alguma coisa tá diferente. — É nada, Tito — respondi, forçando um sorriso e desviando o olhar. — Acho que tô dormindo melhor só. Ele não falou mais nada, mas a mão dele apertou meu queixo, firme, me obrigando a olhar pra ele. — É bom continuar assim — ele disse, a voz baixa, cheia de ameaça. — Leve e comportada. Soltou meu queixo quando ele me liberou, e fui pra cozinha com o coração na mão. Disfarcei, lavei uma louça que já tava limpa, mas o medo voltou a respirar dentro de mim, mais forte que nunca. Ajudo o Lobo a encontrar a família dele, mas se o Tito descobrir... não vai sobrar pedaço de ninguém. E eu, que já tô me destruindo por dentro por um amor impossível, vou me destruir por completo.
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