LOBO
Ver ela apanhando sem revidar foi a pior coisa que eu já vi na vida. Pior que qualquer corpo dilacerado em campo de batalha. Pior que a visão do carro da Joana em chamas. Porque na guerra, há um contexto, uma razão doente, mas uma razão.
Aquilo... aquilo era pura violência. A destruição de uma alma pelo simples prazer de exercer poder.
Cada tapa que o Tito dava nela ecoava dentro do meu crânio como um tiro de calibre grosso. Cada chute que ele desferia no corpo curvado dela me fazia contrair os músculos do abdômen, como se eu estivesse absorvendo o impacto. Eu estava parado naquela porta, imóvel, mas por dentro era um vulcão de fúria impotente. Minhas mãos, treinadas para a precisão absoluta, tremiam com um desejo primitivo de estrangular, de esmagar, de reduzir aquele monstro a pó.
E então ela fez aquele gesto. Pequeno, quase imperceptível. A mão tremendo, a palma virada para mim.
Para.
Não.
Nossos olhos se encontraram no caos, e eu li neles um turbilhão. Medo, sim, um medo ancestral. Mas também um aviso.
"Ele vai matar nós. E depois vai matar o Evandro."
E por baixo de tudo, uma determinação feroz de proteger o menino, custe o que custar.
Ela não era má.
Ela tinha um coração.
E ver aquele coração sendo pisoteado na minha frente doía de uma forma que eu não sabia que ainda era capaz de sentir.
Quando Tito finalmente a arrastou para o quarto, a agonia só mudou de forma. Os sons que vinham de cima eram um tipo diferente de violência.
— Geme desgraçada, vagabunda. Você é minha Soraia, só minha. — Tito gritava no quarto.
Os gemidos forçados, as ordens grosseiras, os tapas nítidos na carne, aquilo era pior do que ver ela apanhando, ele estava forçando ela a t*****r com ele.
Eu fechei os olhos, enjoado, encostei a testa na parede fria do corredor e respirei fundo, contando até dez, depois até vinte. A imagem da Joana invadiu minha mente, nítida e dolorosa. Onde ela estava? Será que ela estava passando por isso? Ou algo pior?
A raiva era um ácido correndo nas minhas veias. Eu me segurei. Não pela missão. Não pelo plano. Me segurei pelo Miguel, dormindo no quarto ao lado. Me segurei por ela, pela Soraia, que mesmo naquela humilhação toda ainda tinha força para tentar proteger os outros. Me segurei porque um movimento em falso agora significaria a morte de todos nós.
As horas se arrastaram. O silêncio finalmente desceu sobre a casa, pesado e obsceno. Eu não me mexi do meu posto.
Vigiei.
Esperei.
Até que o ronco do carro de Tito anunciou sua partida. Ele estava saindo para o QG, para seu reino de sujeira e poder.
Esperei mais cinco minutos.
A casa estava em silêncio total.
Então, me movi.
Abri a porta do quarto dela sem bater. Ela estava sentada na beira da cama, envolta em sombras. As roupas rasgadas pendiam de seu corpo, revelando hematomas que começavam a florir em tons de roxo e azul na sua pele clara. O lábio estava cortado e inchado, um filete de sangue seco escorria do supercílio. Ela nem sequer ergueu o rosto quando eu entrei.
— Você precisa de um banho — minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia, carregada de uma emoção que eu não conseguia nomear. — Depois vamos cuidar desses machucados.
Ela balançou a cabeça, um movimento lento e doloroso.
— Deixa. Tá tudo bem.
— Não tá tudo bem — eu disse, firme, cruzando o quarto até ficar na frente dela. — Levanta.
Pela primeira vez, ela olhou para mim. Seus olhos, normalmente tão expressivos, estavam opacos, como se a luz tivesse sido apagada de dentro. Mas havia um brilho teimoso lá no fundo. Um resquício da mulher que havia feito aquele gesto desesperado horas antes.
— Se o Tito voltar... — a voz dela era um sussurro rouco. — Ele mata a gente, mata nós dois.
Eu me abaixei, ficando no nível dos olhos dela. O único risco que eu temo é perder a chance de descobrir o paradeiro da minha esposa, mas não podia dizer isso pra ela, não agora.
— Agora Soraia, levante.
Ela pestanejou, e algo como compreensão cruzou seu olhar machucado. Ela não fez mais objeções.
Ajudar ela a se levantar foi um ato de pura tensão controlada. Seu corpo era quente, e ela tremia levemente. Levei ela até o banheiro, minhas mãos firmes em seus ombros, guiando seus passos vacilantes.
O ar entre nós era espesso, carregado de dor, vulnerabilidade e algo mais... algo perigoso e primordial.
Dentro do banheiro, a luz fria revelou a extensão dos danos. Ela desviou o olhar, envergonhada.
— Preciso... das roupas — ela murmurou, tentando puxar os farrapos destruídos.
— Deixa — eu disse, e minha voz soou estranha para meus próprios ouvidos.
Minhas mãos, as mesmas que eram capazes de desmontar e montar um rifle no escuro, tremeram levemente quando eu puxei o zíper quebrado do vestido. O tecido cedeu, e ela ficou de pé diante de mim, usando apenas a calcinha também rasgada. Eu prendi a respiraça.
Apesar das marcas roxas que pintavam sua pele como um mapa de sofrimento, seu corpo era... perfeito. De uma forma que não era apenas física, era uma afronta à brutalidade que ela havia sofrido.
Seios grandes e firmes, uma cintura fina que dava lugar a um quadril generoso e uma b***a empinada e redonda. Era o corpo de uma mulher no auge, um testemunho silencioso da vida que teimava em persistir mesmo na escuridão.
E então eu vi: uma tatuagem discreta, uma flor pequena e delicada, logo acima da curva direita da sua nádega. Um detalhe íntimo, um resquício de personalidade, de identidade, naquele corpo que tentaram reduzir a um objeto.
A compaixão e o desejo se misturaram dentro de mim em um coquetel explosivo e proibido. Eu senti uma pontada de culpa, um traição à Joana, mas era um sentimento abafado pela necessidade urgente de cuidar, de aliviar, de proteger.
— O chuveiro — ela sussurrou, quebrando o feitiço.
Acenei com a cabeça e a ajudei a entrar no box. Virei o rosto enquanto ela tirava a calcinha, mas não pude evitar os sons da água batendo em seu corpo, da sua respiração ofegante. Minha própria respiração estava acelerada, meu corpo tenso. Eu era um soldado, um pai, um marido. E naquele momento, eu era apenas um homem, diante de uma mulher linda e ferida, lutando para manter a linha.
Quando ela terminou, eu a envolvi em uma toalha grande e limpa, secando seu corpo com movimentos firmes, mas cuidadosos, evitando os machucados mais sensíveis. Cada toque era uma prova. A textura suave de sua pele sob minhas mãos ásperas, o cheiro limpo do sabão substituindo o odor de violência... era íntimo demais.
Perigoso demais.
Levei ela de volta para a cama e busquei o kit de primeiros socorros no banheiro. Ajoelhei na frente dela e comecei a limpar o corte no supercílio. Ela estremeceu quando o algodão com antisséptico tocou a ferida.
— Desculpa — eu murmurei, minha voz um sopro.
— Tá tudo bem — ela sussurrou, seus olhos fixos no meu rosto enquanto eu trabalhava.
Limpei o sangue do seu lábio, minhas pontas dos dedos tocando a curva macia de sua boca.
Ela não desviou o olhar.
O ar no quarto parecia ter ficado sem oxigênio. A atração entre nós era uma entidade viva, pulsante, nascida do horror compartilhado e da solidão absoluta.
Eu queria beijar ela.
Queria sentir algo que não fosse dor e raiva. Queria me perder naquela conexão humana e crua.
Mas eu não o fiz.
Em vez disso, terminei de limpar seus dedos, que estavam arranhados e sujos. Depois, me levantei e preparei um chá na cozinha, colocando dois comprimidos analgésicos ao lado do xícara.
— Toma — eu disse, entregando para ela. — Vai ajudar a dormir.
Ela tomou o remédio e ficou sentada na cama, enrolando e desenrolando a ponta da toalha. Eu me sentei em uma cadeira no canto do quarto, a virando de costas para a cama para lhe dar um pouco de privacidade enquanto ela se vestia com uma camiseta limpa. Depois, me virei de novo, mantendo minha vigília.
— Você não precisa ficar — ela disse, já se deitando e puxando o cobertor até o queixo.
— Preciso, sim — respondi, minha voz final.
E precisei. Não apenas para proteger ela de uma possível volta de Tito. Mas porque, naquele momento, ultrapassar aquele limite – cuidar dela, tocar nela, ver a mulher por trás das cicatrizes – já havia acontecido.
O soldado que só pensava na missão havia dado um passo para trás, e o homem, com toda a sua bagagem de dor, compaixão e desejo, havia assumido o controle.
Fiquei ali, sentado na escuridão, ouvindo sua respiração gradualmente se aprofundar e se regular até ela cair em um sono exausto.
Eu havia cruzado uma linha.
E não havia volta.
A missão ainda era encontrar Joana.
Mas agora, no silêncio daquela madrugada, eu sabia que não conseguiria mais olhar para Soraia como apenas um peão no jogo. Ela havia se tornado uma pessoa. E eu, ao cuidar dela, havia me tornado mais humano do que era desde que tudo havia desmoronado. E nesse inferno, ser humano era a coisa mais perigosa que eu poderia ser.