Verdades em silêncio

1588 Palavras
LOBO O silêncio dentro de mim era mais alto que qualquer rajada de fuzil. Cada hora naquela casa era uma agonia meticulosamente disfarçada. Eu, que havia passado a vida inteira esperando o momento exato para apertar o gatilho, agora vivia o suplício de ter o meu alvo mais precioso a centímetros de mim e não poder agir. Miguel. Meu filho. Respirando o mesmo ar, pisando no mesmo chão manchado, sob o mesmo teto do homem que havia destruído nossa família. A manhã chegou com uma luz fraca, filtrada pela fumaça que sempre pairava sobre o morro. O café estava pronto, o carro lavado, e a máscara do Lobo, firmemente ajustada sobre a pele do Bernardo. Mas hoje seria diferente. Hoje eu iria arrancar uma fresta nessa prisão de aparências. Soraia estava mais quieta que o normal, seus olhos pareciam ter cavado fundos mais escuros durante a noite. Miguel, vestido com um uniforme escolar que me doía de ver, empurrava o café da manhã no prato com desânimo. — O tempo tá virando — comentei, minha voz soando estranhamente calma enquanto olhava pela janela para o céu acinzentado. — A previsão diz que vai cair um toró mais tarde. Soraia seguiu meu olhar, uma pontada de preocupação cruzando seu rosto. — Sério? Ele não tem nem um casaco mais grosso. — É melhor prevenir. Aquele azul, lembro que ele usou outro dia, deve estar guardado no armário do quarto, não tá? — eu disse, citando um detalhe que havia observado dias antes. Era um tiro no escuro, mas calculado. Ela hesitou por uma fração de segundo, e eu segurei a respiração. Tudo dependia disso. Um movimento em falso, uma pergunta errada, e a frágil confiança que eu estava construindo se desfaria. — É, acho que tá... — ela murmurou, se levantando. — Só um minuto e já vamos. Assim que seus pés pisaram no primeiro degrau da escada, meu corpo entrou em modo de operação. Cada segundo era um tesouro roubado. — Vem comigo, Evandro — disse, mantendo a voz neutra, mas estendendo a mão. — Preciso ver uma coisa no carro antes de sua "mãe" descer. O menino me olhou, e naqueles olhos lindos, tão iguais aos da Joana, eu vi um lampejo de entendimento que partiu minha alma em dois. Ele não fez perguntas. Apenas colocou sua mãozinha na minha, uma confiança pura e aterrorizante que me queimou a palma da mão. Levei ele não para o carro, mas para um pequeno vão entre a casa e o muro de contenção, um ponto cego que havia identificado como seguro, longe das janelas e dos ouvidos curiosos. O ar estava pesado, cheirando a terra molhada e promessa de chuva. Ajoelhei na sua frente, meu corpo formando uma barreira entre ele e o mundo exterior. Pela primeira vez em semanas, permiti que a máscara rachasse. Só um pouco. Só o suficiente para ele ver. — Miguel — sussurrei, e o som do nome verdadeiro dele pareceu ecoar no pequeno espaço. Seus lábios tremeram. Os olhos encheram de lágrimas que não derramaram. Ele era corajoso, meu soldadinho. Mais corajoso que eu. — Papai... — a voz dele foi um fio de esperança, um segredo guardado a sete chaves. — Eu sabia que você vinha. Eu sabia papai. Aquela fé inabalável foi uma faca no meu peito. Envolvi seu rosto com as mãos, grandes e calejadas contra a pele macia do meu filho. — Eu estou aqui, campeão. Estou aqui agora — disse, as palavras saindo entre dentes cerrados. — Você está machucado? Ele te bateu? Ele balançou a cabeça, negativo. — Não. A Soraia não deixa. Ela fica na frente. Mas ele grita muito. E ele... ele... O choro veio, então. Silencioso, contido, o choro de quem aprendeu que fazer barulho é perigoso. Seu pequeno corpo tremia contra o meu. — Fala para o pai, Miguel. O que ele fez? — Ele disse que se eu contar quem eu sou, ele vai me matar. E vai matar a mamãe. — Os olhos dele, cheios de um terror sobrenatural, fitaram os meus. — Ele disse que a mamãe já tá quase dormindo pra sempre. Um frio mortal percorreu minha espinha. — Onde ela está, filho? Onde está a mamãe? Você viu? — Minha voz estava urgente, quase implorando. Ele engoliu seco e abanou a cabeza, as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Faz muitos dias. Ela tava com a gente no carro. Ela chorava. Aí ele levou ela pra longe. O Tito disse... ele disse que ela quase foi pra um lugar que dói menos. "Um lugar que dói menos." Um eufemismo terrível e infantil para o que poderia ser a morte. Mas "quase" não era "definitivamente". "Quase" era um fio de esperança. "Quase" significava que ela poderia estar viva, em algum lugar, sofrendo. A raiva que surgiu dentro de mim era uma coisa primitiva, uma fera que queria uivar e destruir. Queria invadir o QG naquele instante e arrancar a verdade das entranhas de Tito com as minhas mãos. Cada fibra do meu ser, o pai, gritava por vingança. Mas o soldado sussurrava. O sniper calculava. Respirei fundo, uma respiração longa e tremula, puxando o ar sujo do morro para os meus pulmões como se fosse oxigênio puro. Fechei os olhos por um segundo. A voz do meu pai, como sempre, veio no auge do caos. A mira precisa de calma, Bernardo. Agora não era a mira de um rifle. Era a mira em um objetivo muito maior: salvar minha família inteira, não apenas um pedaço dela. Abri os olhos e enxugei as lágrimas do Miguel com os polegares. — Escuta, Miguel. Escuta bem o que o pai vai dizer — minha voz era um rochedo, uma promessa de aço. — Eu vou tirar você daqui. E vou encontrar a mamãe. Mas você precisa ser o menino mais valente do mundo por um pouquinho mais. Você precisa continuar sendo o Evandro. Pode fazer isso por mim? Ele me fitou, e na sua expressão eu vi não o medo, mas a determinação. A mesma teimosia que o fazia insistir em andar de bicicleta sem rodinhas. — Posso — ele sussurrou, a voz firme. — Mas ele fala que a mamãe já foi embora de verdade. — Ele mente — cortei, com uma convicção que não sentia totalmente, mas que precisava plantar nele. — A mamãe é forte. Igual a você. E eu não vou desistir dela. Nunca. Você entende? Nunca. Ele assentiu, sério, como se estivesse aceitando uma missão. O som de passos vindo de dentro da casa nos fez gelar. Era Soraia descendo. Num movimento rápido, sequei o rosto dele com a barra da minha camisa e me levantei, recompondo a postura do Lobo. — Então tá combinado, Evandro — disse em um tom mais alto, forjado. — Vamos ver esse barulho no carro outro dia. Tá quase na hora de ir. Soraia apareceu no vão da porta, segurando o casaco azul. — Achei. Tudo bem aqui? — Tudo sob controle, dona Soraia — respondi, desviando o olhar para o céu. — É melhor ele já ir com o casaco, o tempo tá fechando mesmo. Ela vestiu o casaco em Miguel, seus dedos ágeis ajustando o zíper. Eu observava, cada nervo do meu corpo alerta. Ela era uma peça neste quebra-cabeça. Sua compaixão por Miguel era real, mas seu medo de Tito era uma algema de aço. Será que ela sabia onde Joana estava? Será que seu silêncio era cumplicidade ou sobrevivência? Enquanto nos dirigíamos ao carro, o ponto de virada que havia ocorrido dentro de mim era tão claro e irrevogável quanto um tiro no escuro. Joana estava viva. Eu acreditava nisso. Acreditar era a única opção que não me levaria à loucura. E se ela estava viva, estava nas garras de Tito. E Miguel, sob o mesmo teto, vivia a cada momento sob a ameaça direta de se tornar um órfão, ou pior, uma ferramenta para controlar a mãe. A missão havia se transformado. Já não era mais sobre infiltração e coleta de informações. Era uma operação de resgate de alto risco com dois alvos: um, um menino sob minha guarda imediata; o outro, minha esposa, cujo paradeiro era um mistério envolto em perigo. Ao abrir a porta do carro para Miguel entrar, nossos olhos se encontraram mais uma vez. Ele me fitou, e naquele olhar havia um mundo de segredos compartilhados, de medos contidos e de uma promessa silenciosa. Eu o colocaria no carro, o levaria para a escola, cumpriria meu papel. Mas por dentro, o Lobo não estava mais apenas observando. Estava farejando o rastro. Cada olhar, cada palavra solta, cada movimento de Tito seria uma pista. A chuva começou a cair, primeiro como uma garoa fina, depois em grossas gotas que batiam no para-brisas como pequenos avisos. Enquanto eu dirigia pela rua do morro escorregadia, uma certeza se solidificou em meu núcleo, fria e afiada como a lâmina de um facão. O relógio estava correndo. E eu não esperaria ele terminar. Encontraria Joana. E então, eu levaria ela e meus filhos para longe deste inferno. E na hora da retirada, eu não teria nenhum problema em deixar um rastro de destruição para trás. Porque a disciplina que me ensinaram não era para proteger monstros. Era para proteger inocentes. E eu usaria cada grama dela para cumprir essa promessa. A mira precisava de calma. Mas o coração de um pai, quando ameaçado, só precisava de um alvo. ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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