SORAIA
Ele tá me enlouquecendo.
Não é nada que ele faça, não é nada que ele diga.
É a presença.
É o silêncio dele.
O Lobo se move pela casa como uma sombra, um fantasma de músculos e olhar penetrante. Tudo bem que ele é pago pra isso, pra ficar por perto, pra vigiar. Mas tem uma linha entre fazer seu trabalho e… isso.
Isso é diferente.
É como se ele estivesse sempre a um passo de mim, mesmo quando está do outro lado da sala. Consigo sentir o peso do olhar dele mesmo quando não estou olhando. É uma sensação na nuca, um formigamento na pele.
Às vezes, estou na cozinha, tentando me concentrar em lavar uma louça, e sei, sei, que ele está parado na porta, imóvel, observando. Não com aquele olhar nojento dos outros homens, que só veem pedaço de carne.
É um olhar que… pesa.
Que analisa.
Que parece ver além da roupa, da maquiagem, da casca de mulher do chefe que eu carrego.
E quando nossos olhares se cruzam, meu Deus. É como se o mundo parasse. O barulho do morro lá fora some, a respiração trava no meu peito, e tudo o que existe são aqueles olhos escuros, intensos, cheios de um mistério que me atrai e me apavora ao mesmo tempo. Ele nunca segura o olhar por muito tempo. É rápido, um raio que me atinge e some, deixando um rastro de calor no meu rosto. Mas é o suficiente para meu coração disparar como um louco, como se eu tivesse corrido uma maratona.
Tento disfarçar.
Finjo que não notei.
Viro o rosto, mexo em algo qualquer, penteio o cabelo com os dedos tremendo. Mas por dentro, é um caos. O que ele quer? Por que me olha assim? Será que é impressão minha? Será que a solidão e o medo tão me fazendo criar coisas na cabeça?
Mas aí eu me lembro da noite em que ele cuidou de mim. Das mãos grandes e calejadas, tão gentis no meio da dor. Do jeito que ele me levou pro banho, sem um pingo de malícia, só… cuidado. E me perco. Porque nesse inferno, cuidado é uma coisa rara. É mais perigoso que um fuzil. E é exatamente isso que me assusta.
Porque, no meio do pavor constante, essa atenção dele me dá uma sensação estranha de… segurança.
É doido, eu sei.
Como pode um homem me fazer sentir segura dentro da casa do próprio homem que me bate?
Mas é isso.
Quando o Lobo está por perto, a sombra do Tito parece um pouco menor. A respiração sai um pouco mais fácil. É como se houvesse um muro entre eu e o mundo, e esse muro tem olhos escuros e não fala nada.
Só que esse muro também é a maior ameaça à minha vida.
O pior de tudo é o Evandro. O menino adora ele. Fico observando às escondidas. O Lobo não fica fazendo graça, não fica forçando amizade. Mas quando o Evandro se aproxima, com aquele jeito tímido, ele para o que está fazendo e dá atenção.
Escuta as historinhas sem fim do menino com uma paciência que eu nem tenho. E o Evandro, que com o Tito é um robôzinho quieto, com o Lobo solta risada, brinca, vive.
E isso me corta o coração.
Por um lado, é a coisa mais linda do mundo ver um lampejo de normalidade na vida do meu anjinho. Por outro, é um perigo.
O Tito é ciumento até da sombra.
Se ele perceber que o "filho" dele tá criando vínculo com um segurança... não vai terminar bem.
Pra ninguém.
Hoje de manhã foi o ápice. Eu tava no quarto, me arrumando. O Tito já tinha saído. O Lobo devia estar lá fora, fazendo a ronda. Resolvi levar um copo de suco pro Evandro, que tava desenhando na sala. Quando atravessei o corredor, ele estava lá. Parado. Não me viu chegar. Estava olhando pela janela da frente, seu rosto em perfil, a expressão séria, distante. Parecia um retrato de um homem carregando o mundo nas costas.
Parei. Fiquei olhando. A luz da manhã batia nele, iluminando os contornos duros do rosto, a linha do queixo forte.
Ele é bonito.
É um pensamento que vem à força, mesmo eu tentando empurrar. Não é a beleza de um galã de novela. É uma beleza áspera, marcada. De quem viveu.
E, de repente, ele se virou. Como se tivesse sentido minha presença. Nossos olhos se encontraram no corredor vazio. Dessa vez, não foi um raio. Foi um choque contínuo, um fio elétrico ligando a gente ali, naquele corredor. Ele não desviou o olhar. E eu... eu não consegui desviar o meu. Fiquei paralisada, o copo de suco suando na minha mão.
Ele não sorriu.
Não falou.
Só olhou.
E naquele olhar tinha tudo e nada.
Tinha uma pergunta. Tinha uma dor que eu reconheci, porque era parecida com a minha. Tinha uma intensidade que fez meu estômago embrulhar e minhas pernas ficarem moles.
Deve ter durado só uns segundos. Mas senti como se tivéssemos trocado uma conversa inteira sem dizer uma palavra.
"Eu te vejo", o olhar dele dizia.
"Eu sei",o meu respondia.
"Tenho medo."
"Eu também."
Foi quando o Evandro gritou da sala:
— Mamãe, o suco! — ver ele me chamar de mãe ainda era estranho, mas o Tito obriga o menino a isso.
O feitiço se quebrou.
Eu piscei, rápido, como se acordasse de um sonho, e virei de costas, meu rosto em chamas. Corri para a sala, com o coração batendo tão forte que eu tinha certeza que o menino ia ouvir.
O resto do dia foi um tormento.
Cada passo que eu dava, eu sentia que ele estava ali. Na cozinha, na sala, no corredor. Às vezes, eu olhava de relance e o via, sempre na mesma postura, sempre vigilante. Mas agora era diferente. Agora, aquele olhar tinha um significado. Tinha um peso. Tinha um segredo compartilhado que podia nos matar.
O medo é uma coisa constante em mim. Medo do Tito. Medo da violência. Medo de morrer. Mas agora tem um novo medo, mais agudo, mais urgente: o medo de que o Tito perceba o que tá rolando. Porque ele pode ser um animal, mas não é burro.
Ele sente as coisas no ar.
E o ciúme dele é doentio.
Possessivo.
Se ele suspeitar, nem o fato de o Lobo ser o segurança dele vai importar. Vai ser um tiro na cabeça do Lobo e uma surra pra mim que vai me deixar à beira da morte.
Ou pior.
À noite, quando o Tito chegou, fiquei ainda mais tensa. Tentei agir normal, servir o jantar, responder às perguntas dele com voz mansa. Mas meus olhos, traiçoeiros, buscavam o Lobo. Ele estava no seu posto, perto da porta, a expressão impenetrável de sempre.
O Tito me puxou pra perto no sofá, cheirando a cerveja e poder. Ele falava dos negócios dele, da briga com uma facção rival, e eu concordava com a cabeça, mas minha atenção estava dividida. Sentia o olhar do Lobo queimando as minhas costas. Era como se estivesse nu na frente dos dois, presa no fogo cruzado de um ciúme doentio e de uma atração proibida.
Quando o Tito finalmente foi pro quarto, me chamando com aquele jeito bruto dele, eu levantei.
Ao cruzar a sala, não pude evitar.
Olhei para o Lobo.
Ele estava me encarando.
Dessa vez, não havia dúvida.
Era um olhar aberto, carregado de uma emoção que eu não conseguia decifrar totalmente. Raiva? Pena? Desejo?
Talvez um pouco de tudo.
E no fundo daqueles olhos, uma pergunta que ecoou na minha alma:
"Por que você vai com ele?"
Desviei o olhar, sentindo uma vergonha imensa. Segui o Tito pelo corredor, sentindo o peso do olhar do Lobo em mim até a porta do quarto fechar.
Agora, deitada aqui, com o Tito roncando ao meu lado, não consigo parar de pensar. O Lobo tá me sufocando, mas é um sufoco que eu não quero que acabe. É a única coisa real nessa vida de mentira.
É um perigo que saboroso.
E eu tô com medo. Medo de mim. Medo do que eu posso fazer por um pouco dessa segurança estranha que um olhar silencioso me proporciona.
Porque no fim, o maior perigo não é o Tito. É o que esse homem quieto tá fazendo comigo. Ele tá me fazendo sentir algo bom de novo. E, nesse lugar, sentir é o primeiro passo para morrer.