Com o passar do tempo….
A guerra entre os Di’Angelo e os Portinari nunca foi declarada oficialmente. Não havia manchetes nos jornais, nem pronunciamentos públicos. Mas para aqueles envolvidos, cada dia era um lembrete da batalha invisível que se desenrolava nas sombras. Corpos desapareciam, negócios eram sabotados, informantes eram descobertos e mortos antes mesmo de conseguirem falar. A máfia não lutava com exércitos barulhentos; lutava com punhais no escuro, com tiros disparados em ruas silenciosas e com acordos firmados entre sorrisos traiçoeiros.
A segurança da mansão Di’Angelo havia se tornado um verdadeiro forte. Homens armados patrulhavam os corredores internos e externos, muros foram reforçados, e o jardim, antes um refúgio de risadas infantis, agora parecia um território proibido. Carlos Di’Angelo já não corria mais pelos gramados com Eva. Não havia mais brincadeiras inocentes entre os carvalhos ou esconderijos secretos. Durante um ano inteiro, a guerra os manteve separados, como se a infância tivesse sido arrancada deles à força.
Agora, aos onze anos, Carlos não era mais o mesmo menino que outrora sorria despreocupado. Sua postura, antes relaxada, tornara-se mais rígida. Seu olhar carregava um peso que não pertencia a alguém tão jovem. Ele aprendera, à força, que seu nome era um fardo tão grande quanto um privilégio.
Naquela tarde, os dois finalmente estavam juntos de novo, sentados lado a lado no banco de madeira do terraço da mansão. Não havia mais risadas nem desafios sobre quem conseguia se esconder melhor. Apenas silêncio.
Eva balançava os pés distraidamente, encarando o jardim à frente. A grama continuava a mesma, o vento ainda soprava suavemente, mas algo estava diferente. Ou talvez, eram eles que estavam diferentes.
Ela olhou para Carlos pelo canto do olho e percebeu, mais uma vez, como ele havia mudado. O rosto parecia mais sério, os olhos mais sombrios. A guerra o fizera crescer anos em poucos meses. Ele já não falava sobre as coisas bobas de antes, sobre travessuras ou sonhos infantis. Agora, quando falava, era sobre segurança, sobre estratégia, sobre o que vinha a seguir.
Mas naquele momento, ele não dizia nada. Apenas olhava para o horizonte com um olhar perdido, como se estivesse preso entre o presente e o futuro incerto.
“Dizem que você vai embora,” Eva quebrou o silêncio, sua voz carregada de melancolia.
Carlos não respondeu imediatamente. Seus dedos apertaram levemente o tecido da calça, um gesto involuntário de tensão.
Os rumores estavam certos. Ele partiria.
E sabia que Eva sabia.
“Vou embora essa noite,” ele finalmente disse, sem rodeios.
Eva arregalou os olhos e virou-se para ele de imediato.
“Não…” sua voz falhou, e ela apertou a mão dele instintivamente.
“Me leva com você.”
Carlos engoliu seco. Ele já havia pedido isso ao pai. Ele já havia argumentado, insistido, mas Dom Vittorio Di’Angelo sequer lhe deu ouvidos. Para ele, aquilo era uma oportunidade perfeita para afastá-los. Carlos era o herdeiro da família mais poderosa da Itália, e Eva… era apenas a filha da governanta. Um sentimento tão profundo entre os dois nunca deveria ter existido, e quanto mais cedo acabasse, melhor seria.
Então a resposta de Carlos veio baixa, quase como uma confissão:
“Eu não posso.”
Eva sentiu os olhos arderem, mas se recusou a chorar.
“Mas me escute,” Carlos continuou, sua mão apertando ainda mais a dela. “Eu vou voltar. Eu vou te encontrar. E vou me casar com você.”
O coração de Eva disparou.
Aquelas palavras… ele as dizia como uma promessa sagrada, como algo tão certo quanto o nascer do sol.
Ela olhou para ele, a tristeza misturando-se com esperança.
“Promete?” ela sussurrou, sua voz frágil.
Carlos não hesitou.
Inclinou-se levemente, roçando seus lábios nos dela em um selinho inocente, mas cheio de significado. Foi um toque breve, suave, mas que carregava consigo uma promessa maior do que qualquer palavra dita.
“Prometo,” ele murmurou contra os lábios dela. “Então me espere.”
Eva fechou os olhos por um instante, gravando aquele momento em sua memória.
Quando os abriu novamente, assentiu.
“Eu prometo.”
E então, eles ficaram ali, de mãos dadas, olhando para o jardim como se tentar guardar aquela imagem dentro de si. Nenhum deles queria soltar a mão do outro, pois sabiam que, assim que o fizessem, tudo mudaria para sempre.
A noite caiu sobre a mansão Di’Angelo com um peso silencioso. O céu estava limpo, pontilhado por estrelas que pareciam observar tudo do alto, indiferentes ao destino de quem caminhava sob elas. O vento soprava gelado, sussurrando pelos corredores da imponente residência como se anunciasse um presságio.
Dentro da casa, a movimentação era mínima. A maioria dos empregados já havia se recolhido, e os poucos que ainda estavam acordados mantinham-se em silêncio, seguindo as ordens rigorosas de Dom Vittorio Di’Angelo. O patriarca da família não queria testemunhas para o que estava prestes a acontecer.
Nos fundos da mansão, na ala mais isolada, Carlos terminava de colocar uma mochila simples sobre os ombros. Ele já não usava suas roupas comuns. O uniforme bem cortado e discreto que vestia agora fazia parte da nova identidade que lhe fora imposta. A partir daquela noite, ele não era mais Carlos Di’Angelo. Seu nome, sua história e tudo o que conhecia até então seriam apagados.
Agora, ele era Marco Santine.
Os Di’Angelo haviam criado essa identidade com cuidado. Marco era, no papel, o herdeiro de um poderoso conglomerado italiano, um sobrenome de prestígio, mas sem ligações com a máfia. Seu novo passado fora moldado de forma meticulosa, como uma armadura invisível para protegê-lo. O verdadeiro Carlos Di’Angelo teria que desaparecer, ao menos até que a guerra fosse vencida e fosse seguro retornar.
Quando o relógio marcou exatamente duas da manhã, a porta do quarto se abriu sem um som. Dois homens de terno escuro entraram, seus rostos sérios e atentos. Eram guarda-costas de confiança de Dom Vittorio, designados exclusivamente para essa missão.
“Está na hora,” um deles disse, em um tom baixo.
Carlos assentiu sem dizer nada. Sua mente estava um caos, mas seu rosto permaneceu impassível.
Ao sair do quarto, seus olhos percorreram os corredores que ele conhecia desde pequeno. Cada quadro pendurado, cada móvel luxuoso, cada detalhe da mansão fazia parte de sua vida, mas agora era apenas um cenário do qual ele precisava se despedir.
Enquanto desciam pelas escadas internas que levavam ao andar térreo, seu coração apertou ao pensar em Eva. Ele queria vê-la uma última vez, dizer mais alguma coisa, garantir que ela soubesse o quanto aquela promessa era real. Mas não havia tempo. E talvez fosse melhor assim.
Ao chegarem à garagem secreta da mansão, um carro preto já esperava com o motor ligado. As portas foram abertas rapidamente, e Carlos entrou sem hesitar. O veículo deslizou para fora da propriedade sem ruído, cortando a noite como uma sombra silenciosa.
Foram longas horas de viagem até chegarem ao aeroporto privado onde um jato os aguardava. Não houve despedidas, nem palavras desnecessárias. Carlos subiu a bordo sabendo que, quando descesse do outro lado do oceano, sua vida seria completamente diferente.
Quando o avião decolou, deixando para trás a Itália, Carlos fechou os olhos e murmurou para si mesmo:
“Eu vou voltar.”