Certo do Jeito Errado

1687 Palavras
O céu já escurecia quando eu voltei pra laje. A cidade vista de cima parecia outra. As luzes da favela piscavam meio falhadas, enquanto lá embaixo, do outro lado do asfalto, os prédios brilhavam como se tivessem vida própria. Dois mundos grudados, mas tão diferentes que doía. Me joguei na cadeira de praia que ficava encostada no canto. A brisa era morna, carregando aquele cheiro de churrasquinho, óleo queimado e flor de dama-da-noite. Tirei o boné, cocei a cabeça e fechei os olhos. Um minuto de silêncio. Um minuto só pra mim. Rick subiu devagar, sem pressa. Sentou do meu lado, com uma garrafa de refrigerante na mão. — Tudo certo lá embaixo — disse ele. — Aquela movimentação era só uns boyzinhos querendo filmar pra t****k. Foram embora com as calças sujas de medo. Ri baixo, sem abrir os olhos. — Esses aí acham que aqui é cenário, né? Não vivem, só passam. — Pois é. Mas teve um deles que me olhou diferente... como se não tivesse medo. Abri os olhos. Olhei pra ele, sério. — Fica de olho. Se voltar, me avisa. — Pode deixar. Silêncio de novo. Só o som do rádio ao fundo, estalando com chiado e voz de olheiro trocando código. — Sabe o que é f**a, Rick? — comecei, sem olhar pra ele. — Esses moleques que a gente cuida, que a gente protege... a maioria vai acabar como a gente. — Nem todos. — Mas a maioria, sim. Porque o sistema foi feito pra isso. A escola é fraca, a mãe tá cansada, o pai sumiu... e aí, quem tá aqui somos nós. Dando lanche, dando chuteira, pagando o remédio. Só que o preço é alto. A gente compra o futuro deles com o nosso. Ele deu um gole no refrigerante, pensativo. — Cê já pensou em sair? — Todo dia. Ficamos em silêncio. Ele entendia. Não precisava explicar. Desci da laje e entrei no meu quarto. Era o único lugar onde eu deixava as coisas mais íntimas. Uma estante com uns livros empoeirados, uma caixa com fotos antigas. Peguei uma delas. Eu e minha mãe, num domingo qualquer, lá no início dos anos 2000. Eu devia ter uns 6, 7 anos. Ela me abraçava com força, como se o mundo fosse acabar. Ela se foi cedo. Derrubada por um câncer que ninguém descobriu a tempo. O SUS empurrou de um hospital pra outro até não dar mais. O velório foi no barracão comunitário, e eu, ali, jurei que ninguém mais ia morrer por descaso. Nem que eu tivesse que virar o próprio sistema. Guardei a foto. Me levantei, fui até a estante e peguei um livro. Um velho Machado de Assis que minha professora me deu quando eu ainda ia pra escola. Li pela décima vez o mesmo parágrafo de Dom Casmurro, aquele sobre a memória sendo como um rio que corre pro passado. A campainha tocou — coisa rara. Era a Júlia, filha da tia Nara. Tava com a cara inchada de tanto chorar. — Dante… — ela sussurrou, com a voz embargada. — Meu irmão… o Caíque… ele sumiu desde ontem. Caíque. Dezesseis anos. Já tinha tentado se meter com os caras da outra boca. Eu já tinha dado alerta. Uma, duas, três vezes. — Entra. Me conta tudo. Ela sentou no sofá, tremendo. A respiração era curta, desesperada. — Ele disse que ia no centro com uns amigos. Mas aí me mandaram mensagem hoje dizendo que viram ele perto da Zona Oeste… com uns caras armados. Tô com medo, Dante. Medo de ele ter feito m***a. Pensei. Fechei os punhos. Aquilo doía mais do que bala. — Fica calma. Vou descobrir onde ele tá. Você confia em mim? Ela assentiu, com os olhos cheios d’água. — Só confio em você, Dante. Ali, naquele momento, entendi o que eu era praquele povo. Não só um chefe. Mas o último fio de esperança em um mundo onde ninguém mais atende o telefone. Onde ninguém mais escuta. Esperei ela se acalmar, chamei Rick no rádio e pedi que ele levantasse tudo sobre o Caíque. Em meia hora, eu teria uma resposta. Enquanto isso, fui até a cozinha e preparei um chá com e**a-doce e açúcar mascavo, do jeito que a minha mãe fazia quando eu chorava. Entreguei pra Júlia com cuidado. — Bebe. Vai te acalmar. Ela segurou a xícara com as duas mãos, tentando parar de tremer. — Obrigada, Dante. Cê é mais do que as pessoas dizem. Sorri. Um sorriso triste, meio cansado. — Eu sou só alguém tentando fazer o certo... do jeito errado. Ela chorou mais. Mas agora era um choro de alívio. O rádio chiava no canto da sala. Rick já tava no corre. A Júlia tremia menos agora, ainda abraçada à xícara quente, com os olhos perdidos, fixos em algum ponto do tapete. Eu me levantei, peguei meu celular e fui direto pros contatos mais pesados. Liguei primeiro pro Jorgin, olheiro da Zona Oeste, um moleque esperto que sempre soube onde a m***a fedia. — Fala, Dante. Que que houve? — Tô procurando o Caíque, irmão da Júlia. Dizem que viram ele ontem aí pela sua área. Silêncio. Do outro lado, só dava pra ouvir o vento batendo e um cachorro latindo longe. — Vi ele sim… — Jorgin falou, com a voz engasgada. — Mas tava com uns caras da Quebrada 77. Travei a mandíbula. Quebrada 77 era território proibido. Rivalidade antiga. A gente tinha um tratado de paz frágil com os líderes de lá, mas qualquer movimento em falso podia virar guerra. — Ele tava sozinho? — Não. Tava com o Brenin e o Marrento. E, Dante… cês tão ligados que o Marrento não anda com ninguém de fora, né? Meu sangue gelou. — Me manda a localização exata. Agora. Desliguei. Rick apareceu na porta, com cara de quem já sabia de tudo. — Pegou o sinal? — Peguei. O moleque entrou no radar da 77. Parece que ele foi fazer graça, tentar vender o que não podia. — i****a — murmurei, passando a mão no rosto. — Moleque achando que pode voar antes de aprender a andar. Rick encostou na parede, cruzando os braços. — Qual vai ser? Olhei pra Júlia, que tentava fingir que não ouvia. — A gente vai buscar ele. Mas sem chamar atenção. Vou eu, você e mais dois. Rasteiro, rápido e sem barulho. Rick assentiu. — Vou preparar tudo. Duas horas depois, já passava da meia-noite. A cidade dormia, mas nós não. O carro era um Gol preto, sem placa da frente. Entrei no banco de trás, Rick dirigia. No banco do passageiro, o César — um dos poucos que eu confiava de olhos fechados. Atrás, comigo, ia o Neguinho, magrelo, mas ligeiro. Carregava uma pistola 9mm no coldre da perna. A Zona Oeste tinha outro cheiro. Outro peso no ar. As vielas eram mais apertadas, a escuridão parecia mais densa. Paramos três ruas antes do ponto onde Jorgin tinha visto o Caíque. Deixamos o carro numa esquina escura, cada um com um rádio pequeno preso no colarinho. Andamos pelas sombras. Rasteiros. Um passo depois do outro. Silêncio total, só o som da nossa respiração e dos nossos passos na terra batida. Passamos por umas casas abandonadas, onde o mato crescia solto. No fundo de uma delas, luz acesa. E barulho. Vozes rindo, copos tilintando, batida de funk pesado. Neguinho sussurrou: — É ali. Me aproximei devagar, espiando por uma fresta do muro rachado. Lá dentro, uma mesa de plástico cheia de garrafa, três caras rindo, fumando, jogando baralho. E no canto, num colchão sujo, Caíque. Sentado, mãos amarradas pra trás, boca com fita. Rosto roxo de pancada. Mas vivo. Meu coração disparou. Fechei os punhos. A vontade era invadir e quebrar tudo. Mas não era hora de emoção. Falei baixo no rádio: — Rick, posição três. César, cobertura da direita. Neguinho comigo. Sem tiro. Só quando eu disser. César se moveu como sombra. Rick sumiu no beco à esquerda. Eu e Neguinho fomos pela entrada lateral. Na contagem de três, pulei o muro. — PERDEU! Foi rápido. Dois deles tentaram sacar, mas Neguinho já tava em cima. Um chute no queixo, um golpe com o cabo da arma no outro. César surgiu pela direita e derrubou o terceiro com um mata-leão. Em menos de vinte segundos, o barraco tava nosso. Corri até Caíque, arranquei a fita da boca. — Calma, moleque, já era. Tamo aqui. Ele chorava. Tentava falar, mas só saía soluço. — Achei que ia morrer, Dante… eles falaram que iam me cortar, me filmar, botar no grupo do zap pra vocês verem… — Fica quieto. Agora cê vai viver. E vai aprender. Rick já tinha amarrado os três caras com um fio de TV e jogado no canto. Saímos dali do mesmo jeito que entramos. Leves. Invisíveis. Mas com Caíque a salvo. Quando chegamos na base, o dia já clareava. A Júlia correu, abraçou o irmão como se o mundo tivesse parado ali. Os dois choraram juntos. Eu fiquei de pé, olhando. Senti aquele nó na garganta. Não era orgulho. Era raiva. Dele, do sistema, do mundo. Chamei Caíque pra um canto. — Agora cê me escuta. Não tem segunda chance pra moleque burro. Se eu não tivesse te achado, cê tava morto. Morto e esquecido. Enterrado como indigente, num buraco com a etiqueta "sem identificação". Ele baixou a cabeça, os olhos vermelhos. — Desculpa, Dante… — Não me pede desculpa. Muda. Se quiser continuar respirando, muda. Ele assentiu, engolindo o choro. — Prometo. Toquei no ombro dele, forte. — Vai pra casa. Toma banho. E amanhã, quero você aqui na base. Vai começar a trabalhar comigo. Vai organizar estoque, atender os moleques, fazer ronda. Vai pagar a dívida com suor, não com sangue. Naquela noite, sentei na laje de novo. Mas o céu já não parecia tão escuro. Tinha umas estrelas tímidas piscando. E pela primeira vez em dias, eu sorri de verdade. Porque ali, naquele pedaço de terra esquecido por Deus e pelo Estado, a gente ainda podia salvar um ou outro. Mesmo que fosse do jeito errado.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR