Capítulo 32 — Esbarrar no Passado

1183 Palavras
ISABELA Aquele dia o sol já tava rachando às oito da manhã, mas eu não abria mão da minha corridinha. Era o momento que eu colocava a cabeça no lugar, me sentia leve, viva… só eu, meu fone, o barulho das ondas e o vento no rosto. O quartinho que eu alugava ficava ali, pertinho da praia, e eu amava isso. Acordava, tomava um banho gelado pra espantar a preguiça, colocava meu shortinho, top, amarrava o cabelo e partia. Corria uns cinco quilômetros, voltava, banho gelado de novo e aquele café da manhã caprichado que dona Lourdes preparava. Ah… a Lourdes! Que mulher! Mão de fada, coração gigante. Todo dia ela me tratava tão bem, como uma mãe que eu nunca tive… Ela fazia um café forte, pãozinho quentinho na chapa, fruta cortada e ainda me dava aquela quentinha que eu levava pro trabalho. No ônibus, só de abrir o potinho e sentir o cheiro, já dava vontade de chorar de gratidão. Era comida com afeto, sabe? Minha rotina era corrida, mas eu me sentia inteira. Correr, faculdade, trabalho, voltar cansada e dormir com a cabeça tranquila. Sem peso na consciência, sem mentira, sem pisar em ninguém. Eu tava me construindo, devagar, mas firme. Tava orgulhosa de mim. Só que… naquela manhã, enquanto eu corria na areia batida, focada no meu ritmo, de repente… Veio ele. Jace. No sentido contrário. Sem camisa, só de bermuda, boné e óculos escuros, celular preso no braço, tatuagens brilhando no sol. Eu conhecia cada desenho naquele corpo… Como esquecer? Ele tava de cabeça baixa, concentrado, correndo no mesmo ritmo que eu. Meu coração disparou na hora. Pensei em desviar, voltar pro calçadão, sumir… mas não ia fugir. Mantive meu ritmo, segui de frente, na minha. Quando ele levantou a cabeça e me viu… parou na hora. Eu fingi costume, olhei pra frente, segui correndo. Quando passei por ele, ele soltou um "bom dia" baixo, quase tímido. Eu respondi, seca. — Bom dia. Mas não parei. Ele começou a correr do meu lado, no meu ritmo. Ficamos um tempo em silêncio, só ouvindo o som dos nossos passos na areia. Eu sentia o olhar dele de lado, mas não olhava. Até que ele abriu a boca e começou o teatrinho. — Oi, prazer… Jace. — Esticou a mão, correndo do meu lado. Eu virei o rosto, não aguentei segurar o riso e entrei na onda. — Isabela. — Você corre sempre por aqui, Isabela? — ele perguntou, fingindo aquele papo bobo de paquera. — Todo dia. Faz bem pra cabeça — respondi, sem demonstrar muito. — Concordo… também tô nessa fase aí, tentando cuidar mais de mim — ele disse, meio ofegante, mas eu senti a sinceridade. A gente foi correndo junto por uns bons metros, ele respeitando meu silêncio. Às vezes jogava uma frase solta, tipo. — Caraca, tá quente hoje, né? — e eu só respondia com um "uhum" ou um "tá mesmo". Lá no fundo, eu queria parar e perguntar "por que você fez aquilo comigo, Jace?". Mas não. Eu tava ali, focada em mim. Ele era o passado que apareceu do nada na minha corrida matinal. Quando chegamos perto do final do percurso, ele parou, pôs as mãos no joelho, respirou fundo e olhou pra mim. — Sei que você não quer papo… mas só queria dizer que você tá linda. E que… tô orgulhoso de te ver tão bem. Eu engoli seco. Queria dizer tanta coisa… mas só respondi. — Valeu. Cuida de você. Virei as costas e continuei correndo, sentindo o coração disparado, a respiração descompassada… mas não era só do exercício. Era dele. Do fantasma que eu tava tentando esquecer e apareceu ali, suado, real, do meu lado. Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi contar pra Lourdes. Ela ouviu tudo e disse só uma frase. — O mundo é pequeno, minha filha… e quando a gente menos espera, ele coloca a gente frente a frente com o que a gente precisa encarar. Fui pro banho gelado, deixei a água cair no meu rosto e pensei… Será que eu já superei? Ou será que ainda dói mais do que eu quero admitir? Os dias seguintes foram esquisitos. Sempre no mesmo horário, lá estava ele. O Jace. Eu saía de casa, colocava meu fone, começava meu corre… e dali a pouco, na mesma direção, lá vinha ele. No começo eu pensei, coincidência. No segundo dia, desconfiei. No terceiro… tive certeza. Ele aparecia, se juntava a mim, corria no meu ritmo. Jogava uma conversa leve, sem forçar nada. Era estranho… porque eu conhecia o Jace do palco, da zoeira, das festas… e agora eu tava vendo um Jace calmo, focado, tentando puxar assunto de um jeito respeitoso. Eu deixava, até achava engraçado. Desde que ele não atravessasse o limite, tava tudo certo. No terceiro dia, quando ele já tava do meu lado pela metade do percurso, eu virei pra ele e perguntei, meio no impulso. — E aí… e os shows? Tá com a agenda cheia? Ele ficou em silêncio. Um silêncio pesado, que eu quase achei que ele não fosse responder. Aí respirou fundo e soltou. — Tô afastado dos palcos… — falou baixo, olhando pra frente. — Tô focando em outras paradas agora… por isso tô correndo cedo. Não tô mais indo dormir na hora que o povo acorda, tá ligado? Eu não consegui segurar uma risadinha. — Essa foi boa — falei, tentando não demonstrar que aquilo mexeu comigo. "Focando em outras paradas"? O Jace? Longe dos palcos? Isso não combinava com ele… Mas eu também não ia dar corda. Não queria demonstrar interesse demais. Então só segui o corre. Naquele dia, quando cheguei em casa, tomei meu banho gelado como sempre… mas a cabeça não desligava. Peguei o celular e fui no Google. "MC Jace" — digitei. A primeira coisa que apareceu foi o i********: dele… parado. Nenhuma postagem nova há semanas. As redes sociais estavam largadas. Silêncio. Desci a página e vi uma matéria. "MC Jace dá pausa na carreira: funkeiro se afasta dos palcos, busca terapia e revela nova fase de autoconhecimento." Comecei a ler. Dizia que desde o escândalo do vídeo — aquele beijo maldito — ele tinha se recolhido. Não tinha feito mais shows, recusou agendas, saiu das festas. Buscou ajuda, entrou na terapia, parou com as bebidas, largou as drogas… e, segundo a matéria, tinha jurado que não queria mais a vida desregrada. Pretendia voltar aos palcos só quando se sentisse inteiro, pronto. Falava sobre se redescobrir, sobre encontrar um novo caminho. Eu senti uma pontada no peito. Fechei os olhos e respirei fundo. Ele tava mudando. Eu fiquei ali, olhando pro teto, com o celular na mão, pensando. — Será que… ele tá mesmo mudando por ele? Ou por mim? Será que aquele Jace que eu conheci — impulsivo, perdido, cheio de vaidade — ficou pra trás? Ou será só fachada? Eu não sabia. Mas pela primeira vez, desde que virei as costas pra ele, eu senti um fiozinho de dúvida… Será que, no fundo, ele ainda ia me surpreender?
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