01 - Prólogo

1011 Palavras
Alice Narrando O hospital tinha cheiro de fim. Não sei explicar melhor do que isso. Era como se tudo ali estivesse pronto pra dar adeus. Os corredores silenciosos, as paredes brancas, a luz fria. Cada vez que eu passava por aquela porta, sentia meu coração apertar. E naquela última visita, eu sabia. Era a última. Minha mãe se arrasta há anos com essa doença. Eu cresci vendo ela passar mäl e viver fazendo tratamentos que não resultaram em nada. Entrei devagar no quarto. Minha mãe estava pálida, magra, mas o olhar ainda era dela. Firme. Cheio de amor e mistério. — Oi, mãe — murmurei, tentando sorrir. Ela virou o rosto devagar, com esforço. Sorriu de volta. — Minha menina, sabia que vinha. Segurei sua mão, me sentei ao lado da cama. O silêncio entre nós era cheio de lembranças. De tudo que passamos sozinhas. Ela sempre dizia que não precisava de ninguém. Que éramos só nós duas contra o mundo. E eu acreditava. — Tô aqui. — falei baixinho. Ela respirou fundo e, com a voz fraca, disse: — Eu não devia, mas não posso morrer com isso entalado. — Do que você tá falando, mãe? Ela me encarou por um segundo longo. — Eu menti pra você a vida toda, Alice. Minha espinha gelou. A palavra “mentira” dita daquela forma foi como uma pedra caindo no meio do meu peito. — Mentiu como? — Sobre o seu pai. Eu dizia que não sabia quem era, que foi só um caso de uma noite. Mas não foi. Eu sei. Sempre soube. Eu parei de respirar por um instante. Aquilo me quebrou por dentro. Era como se tudo que eu sabia da minha história tivesse desabado ali, naquele quarto sufocante de hospital. — Você sabia quem era meu pai esse tempo todo? Ela assentiu, com lágrimas nos olhos. — E por que não me contou? — Porque ele não era uma boa pessoa. Porque eu tinha medo. Medo do que ele podia fazer com você se soubesse da sua existência, medo de você querer ir atrás dele um dia. — Quem é ele, então? Ela desviou o olhar. Olhou pro teto, depois pra janela. — Na Bíblia que fica debaixo do meu travesseiro, tem um buraco entre as páginas. Dentro tem um papel. O endereço. Se um dia você decidir ir atrás, vai saber onde encontrar. — Mas quem é? Como ele se chama? — Não quero dizer, Alice. Não agora. Só, se você for atrás, vá com cuidado. Promete isso pra mim. — Mãe… — Promete. — Tá bom, eu prometo. Ela fechou os olhos com força. E então sussurrou: — Se em algum momento você sentir que tá em perigo, foge. Não hesita. Vai embora. Promete que se proteger vem antes de qualquer resposta. — Prometo. Foi a última coisa que ela me pediu. Naquela noite, ela morreu. O enterro foi um borrão. Muita gente chorando, abraços, palavras que eu não consegui ouvir direito. Só lembro de ficar olhando pro chão, com a cabeça latejando. E uma raiva misturada com dor. Como ela pôde esconder isso de mim por tanto tempo? Quando voltei pra casa, fui direto pro quarto dela. Peguei a Bíblia. Era pesada, antiga, com capa dura. Abri e fui folheando até encontrar o recorte no miolo. E lá estava o papel. “Rua Nova Esperança, nº 68 – Rio de Janeiro – Morro do Dendê, Hell” Nenhuma pista além disso. Fiquei dias olhando praquele papel, como se ele fosse responder alguma coisa só com o olhar. E quanto mais eu olhava, mais a curiosidade virava uma angústia. Quem era meu pai? Por que ela teve tanto medo dele? Por que esconder por 19 anos? Duas semanas depois, com a casa vazia e o silêncio me sufocando, comprei uma mochila, coloquei algumas roupas e peguei um ônibus pro Rio de Janeiro. A viagem foi longa. No caminho, pensei em desistir mil vezes. Mas algo me puxava pra frente. Era como se eu precisasse daquela verdade pra conseguir respirar de novo. Cheguei no Rio numa manhã abafada. Peguei um ônibus até a Zona Norte, depois outro até a entrada do Morro do Dendê. O motorista me olhou estranho quando desci ali sozinha, com mochila nas costas. — Você vai subir mesmo? — Vou. — Lá não é lugar de turista, moça. — Eu não sou turista. Ele deu de ombros e partiu. Comecei a subir o morro a pé. O coração disparado, os olhos atentos. O lugar era diferente de tudo que eu conhecia. Gente de todo tipo, música alta vindo das casas, olhares desconfiados. Não parecia um lugar acolhedor. Mas ao mesmo tempo, tinha algo que me chamava. Cheguei até o fim da Rua Nova Esperança. Parei na frente do número 68. Era uma casa grande, de portão fechado, muro alto. Tinha câmera. Tinha segurança. Mas alguma coisa me dizia que não era hora de bater ali. Não ainda. Virei as costas e desci um pouco, até uma vendinha. Perguntei se alguém alugava algum barraco por ali. O homem por trás do balcão me olhou de cima a baixo. — Cê quer morar aqui? — Quero. Temporário. Um lugar simples. Só até eu resolver umas coisas. — Você é o quê? Repórter? — Não. Eu sou Nail design. Ele chamou um garoto, deu umas instruções. Depois me disse: — Segue ele. Vai te mostrar um lugar. Subi por vielas estreitas até uma casa simples de dois cômodos e um banheiro. O aluguel era barato, Naquela noite, dormi em um colchão no chão. Ouvindo os barulhos do morro, tentando entender no que eu tinha me metido. Eu não conheço ninguém aqui. Não sei quem é meu pai. Mas eu tenho um objetivo. Descobrir a verdade. E nem imaginava que o homem que eu procurava, era muito mais do que um erro do passado. Ele era Hell. O dono do morro. Um nome temido. E eu, a filha bastarda dele. Mas isso, só fui descobrir bem depois. E aí, minha vida virou um caminho sem volta.
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