Capítulo 4

1330 Palavras
Capítulo 4 CAMILA NARRANDO 🐾 Acordei com o coração acelerado. Não sei se era ansiedade… ou medo. Medo de estar me enganando, de estar tentando tapar um buraco com outro, de me forçar a sentir algo só pra esquecer quem não me esquece… ou quem eu finjo que já esqueci. Olhei pra minha mãe, ainda dormindo, respirando com um pouco mais de facilidade do que nos últimos dias, e silenciosamente agradeci por ela ter passado a noite melhor. Não tinha coragem de dizer em voz alta, parece que se a gente fala, estraga, chama o azar. Fiquei aqui uns minutos, olhando pra ela, sentindo aquele amor apertado, aquele medo de perder ela, aquela culpa por, mesmo assim, querer sair, querer viver, querer ser só eu por algumas horas. Levantei devagar, fui pro banheiro e tomei um banho demorado, o mais demorado que minha casa simples permite. A água fria me acordou de vez, arrepiou a pele, mas parecia lavar também um pouco da confusão que me sufoca. Passei aquele hidratante cheiroso, que guardo pra ocasiões especiais. Amanda vive dizendo que esse cheiro me deixa “perigosa”, com cara de quem sabe o que quer, de quem não tem medo de nada. Se ela soubesse… Escolhi uma roupa simples, mas bonita. Jeans escuro, blusinha preta justa, aquela sandália que eu só uso quando tô querendo me lembrar que, além de filha, faxineira e sobrevivente… eu ainda sou mulher. Me olhei no espelho rachado do quarto. A cara cansada não dava pra esconder, as olheiras já fazem parte de mim. Mas o olhar… o olhar tava diferente. Um misto de medo, expectativa e aquele orgulho de quem, mesmo quebrada, não deixou de tentar. Saí de casa devagar, avisando minha mãe: Camila — Mãe… tô indo ali, qualquer coisa me liga, tá? Ela só assentiu, meio sonolenta, meio conformada com o meu jeito de não querer dar muita explicação. Desci o morro com o coração batendo estranho. Cada passo parecia ecoar mais alto do que o normal, como se todo mundo pudesse ouvir. Quando cheguei na pracinha do asfalto, lá estava ele. Roger. Encostado no carro, mão no bolso, jeans escuro, camisa branca dobrada até o antebraço, aquele cabelo arrumado, aquele sorriso leve, despreocupado… bonito demais. E tão diferente de tudo que eu tô acostumada. Quando me viu, abriu aquele sorriso sincero, sem malícia, sem joguinho. Roger — Oi, linda. E o mais estranho: ele abriu a porta do carro pra mim. Parece besteira, né? Mas juro… fazia tanto tempo que ninguém me tratava assim… com esse cuidado, esse respeito, essa gentileza… que eu quase perdi o equilíbrio. Camila — Oi, Roger… Ele me olhou, como quem quer dizer muita coisa, mas só falou: Roger — Tava ansioso pra te ver. Eu só sorri, meio tímida. Nem sei se de verdade ou de nervoso. Ele percebeu, claro, mas não forçou nada. Só me deu aquele tempo, aquele espaço… que eu nem sabia que precisava. Entramos no carro e ele perguntou: Roger — Tá afim de um sorvete? Assenti. Fomos praquela sorveteria do bairro, simples, aconchegante, que tem aquelas mesinhas de plástico na calçada, onde o tempo parece passar mais devagar. Pedi uma casquinha de chocolate, como sempre. Ele pediu flocos. Enquanto a gente esperava, ele ficou me olhando, e eu, boba, perguntei: Camila — Tá me olhando por quê? Roger — Porque você é bonita. Desviei o olhar, sem saber o que fazer com aquele elogio tão direto. Não tô acostumada. A gente conversou sobre tudo e sobre nada. Ele falou da faculdade, dos estágios que anda fazendo, das viagens que sonha em fazer… e eu, pela primeira vez em muito tempo, falei dos meus sonhos também. Camila — Meu sonho mesmo é abrir um salão. Ele arregalou os olhos, interessado: Roger — É mesmo? Camila — É… Sempre gostei dessa coisa de cabelo, maquiagem… queria ter um espaço meu, sabe? Roger — Você fala com uma paixão quando fala disso… dá até gosto de ouvir. Baixei a cabeça, envergonhada. Camila — É meu sonho, né… Só não sei se um dia vai sair do papel. Ele franziu a testa, como quem não aceita dúvida. Roger — Claro que vai! Você é f**a, Camila. Não duvida de você não. Ele falou com tanta certeza, com tanta segurança, que por um segundo eu quase acreditei. Ficamos ali um tempão, rindo, trocando ideia, falando besteira, tomando sorvete que derretia mais rápido do que a gente conseguia comer. Em um momento, ele limpou um pingo de sorvete do canto da minha boca com o polegar, e eu gelei. O gesto mais simples do mundo, mas que me fez perceber o quanto eu tava carente de afeto… de toque… de cuidado. Quando o sol começou a baixar, ele perguntou: Roger — Posso te levar pra casa? Assenti, sem nem pensar duas vezes. No caminho, o silêncio foi confortável. A gente não precisava preencher com palavras. Só a presença dele já bastava. Mas… conforme o carro começou a se aproximar do morro, o peito foi apertando. Roger — É por aqui, né? Camila — É… Ele virou na rua certa, e logo avistamos a barreira. Ali, ninguém sobe se não tiver autorização. Dois vapores estavam parados, encostados na parede, olhando atentos. Assim que viram o carro do Roger, um deles levantou a mão, mandando parar. Roger freou, confuso. Roger — O que foi? Eu já sabia. Vapor — Boa tarde… pode subir assim não, tem documento aí? Roger pegou a carteira, meio sem entender ainda. O vapor olhou pro carro, olhou pra mim, me reconheceu na hora. Vapor — E aí, Camila… suave? Camila — Suave. Tô indo pra casa. Vapor — Beleza… mas… quem é ele? Camila — Um amigo. Tá me levando. O vapor olhou de novo pro Roger, depois soltou: Vapor — Vou falar com a chefia… ver se pode subir. Camila — Como assim? Eu sou cria do Juramento. Nunca ia trazer inimigo aqui. O vapor deu de ombros, como quem entende, mas tá cumprindo ordem: Vapor — Não é assim não, Camila. Cê sabe… protocolo. Fiquei p**a. Camila — Fala logo então. Ele se afastou, puxando o rádio do bolso e começou a falar baixo, andando uns passos pra longe. Roger me olhou, tenso: Roger — É sempre assim? Camila — É… Normal. Quem manda aqui é o Piloto e tem o sub o Jacaré… Roger — Jacaré? Assenti, sem coragem de falar mais. O vapor voltou pouco depois, coçando a cabeça, evitando meu olhar. Vapor — Então… Jacaré não liberou a subida. Fiquei com tanto ódio que minha respiração até falhou. Camila — Tá de s*******m? Eu tô indo pra minha casa! Vapor — Só tô cumprindo ordem… tu sobe... o playba não. Roger, com aquela calma que só ele tem, colocou a mão no meu braço: Roger — Não tem problema. Me fala até onde posso ir, te deixo e você sobe. Eu tava tão p**a que nem sabia se queria gritar ou chorar. Camila — Ridículo isso… Roger — Vem… Ele deu a ré, estacionou um pouco mais abaixo, e eu saí do carro bufando. Roger segurou minha mão, me puxou de leve. Roger — Queria te ver de novo. Olhei pra ele… e, mesmo com toda a raiva, com toda a tensão, sorri. Camila — Eu também. Ele se inclinou, me deu um beijo na bochecha… e ficou ali, parado, me olhando subir. Fui andando pela viela, sentindo o olhar dos vapores nas costas e o sangue fervendo. Entrei em casa, bati a porta, deitei na cama e fiquei aqui, olhando pro teto. E pensei… “Será que eu consigo mesmo começar de novo?” Só que, no fundo… eu sabia. O Jacaré não ia deixar barato. E o pior… parte de mim… também não queria que ele deixasse. Que merda, né? Fechei os olhos, respirei fundo, e me repeti, como quem faz promessa: “Dessa vez… eu escolho a minha paz.” Ou pelo menos tento.
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