Coroa
O tiro não fui eu que dei.
Juro por Deus que não.
Se fosse, o corpo do Saul já tava rolando ladeira abaixo com um buraco bem no meio da testa. Eu tava louco o suficiente pra isso, sim, mas não sou maluco a ponto de matar o filho do pastor na porta da creche cheia de criança.
O estampido veio da rua de baixo.
Um só, seco, seguido de grito, correria e o ronco daquele caveirão filho da p**a subindo o morro como se fosse dono.
Eu soube na hora.
Operação policial.
Não importa. O que importa é que o tiroteio começou e a creche tava no meio do caminho.
Eu entrei correndo que nem um touro, porta batendo na parede, cara fechada pra c*****o.
— Todo mundo no chão! Agora! — berrei, mas já abaixando o tom porque vi as carinhas assustadas das crianças. — Calma, calma, meus príncipes, minhas princesas. Os vapô tão lá fora fazendo a segurança, tá? Nada vai acontecer com vocês. Tio Coroa tá aqui.
Alguns moleques começaram a chorar, uma menininha gritou “mamãe!”. Meu peito apertou. Eu odeio isso. Odeio que essas crianças tenham que passar por essa merda desde pequeno. Me abaixei no chão, peguei a mais próxima no colo, fiz carinho na cabeça.
— Ei, ei, olha pra mim. Tio Coroa não deixa nada acontecer com vocês, tá ouvindo? Respira fundo. Isso passa rápido.
Sienna tava parada no meio da sala, branca que nem fantasma, mão na boca. Saul do lado dela, tentando puxar ela pro chão. Eu vi vermelho.
— Afasta dela, p***a! — rosnei pra ele, voz baixa mas que fez o cara recuar dois passos.
Fui até ela num pulo, agarrei pela cintura com os dois braços e joguei atrás de uma coluna grossa de concreto. Corpo colado no dela, peito nas costas dela, braço protegendo a barriga.
Perto demais.
O cheiro do cabelo dela invadiu tudo, o calor do corpo dela queimando através do vestido fino. Eu senti ela tremendo inteira, respiração acelerada no meu pescoço.
— Fica quieta, Barbie. Respira comigo — sussurrei no ouvido dela, tentando manter a calma na voz enquanto os tiros ficavam mais perto.
Um, dois, três.
Resposta dos meus soldados lá embaixo. Caveirão avançando. Grito de “perdeu, playboy!” ecoando.
Ela virou o rosto um pouquinho, olho azul marejado me olhando por cima do ombro. Bochecha vermelha, lábio tremendo. Medo puro. Medo de verdade. E ali, escondido atrás daquela coluna com bala comendo solta lá fora, ela finalmente viu. Viu o peso real da vida no morro. Não é só vista bonita do mirante, cesta básica e creche pintada de cores alegres. É isso aqui. É tiro, é sangue na calçada, é criança deitada no chão chorando.
Eu segurei ela mais forte, mão aberta na barriga dela, polegar roçando sem querer por cima do vestido. Ela não afastou. Pelo contrário, a mãozinha dela veio por cima da minha, apertando. Como se eu fosse a única coisa segura no mundo inteiro.
Saul tava do outro lado da sala, deitado com umas crianças, mas olhando pra gente. Olhando com raiva contida. Eu devolvi o olhar. “Toca nela de novo e tu morre hoje”.
Os tiros foram diminuindo. Grito de “recua, recua!” lá embaixo. Caveirão descendo de ré, levando tiro dos meus cria. Silêncio pesado depois. Só choro de criança e respiração ofegante.
Eu soltei ela devagar. Ela se virou, olho ainda molhado, mas tentando se recompor.
— Eu… eu preciso de um minuto. Pra orar pelos feridos e pela paz — sussurrou, voz falhada.
Ela se afastou devagar.
Um passo, dois.
Foi até o canto da sala, ajoelhou no chão sujo, juntou as mãos e fechou os olhos. As crianças foram se aproximando devagar, sentando em volta dela como se ela fosse um ímã. Ela começou a orar baixinho, em português quebrado misturado com inglês. “Deus… please… proteja os feridos… cura os corações… dá paz…”
Eu fiquei parado, olhando. Olhando ela ali, de joelhos, cabelo caindo no rosto, voz tremendo mas firme na fé. Algo quebrou dentro de mim. Quebrou feio. Um estalo seco no peito que eu não sentia desde que enterrei a mãe dos meus filhos.
Não. Eu não posso estar apaixonado por essa garota. Não posso. Ela é luz. Eu sou treva. Ela é céu. Eu sou inferno. Ela vai embora um dia, vai voltar pra vida dela, pra um cara que mereça ela, que leve ela pra igreja todo domingo e não pra tiroteio. Se eu me apegar de verdade, quando ela for embora vai me destruir. E eu não aguento ser destruído de novo.
Mas c*****o… como eu não vou me apaixonar por isso?
Ela terminou de orar. As crianças abraçaram ela. Uma tia veio agradecer com lágrima no olho. Saul ficou do lado, esperando pra falar com ela, mas eu cheguei primeiro.
— Vamos pra casa — falei, voz rouca.
Ela assentiu. Nem olhou pro Saul direito. Pegou a bolsa, me seguiu.
Subimos o morro em silêncio. Moto deixada lá embaixo — eu mando buscar depois. A pé mesmo, pra sentir o chão. O morro inteiro tava agitado: mulher chorando na porta, cara correndo com rádio na mão, cheiro de sangue no ar. Alguém levou tiro na perna, nada grave. Polícia não pegou ninguém. Dia normal no Rio.
Chegamos em casa. Portão automático abrindo devagar. Eu entrei primeiro, ela atrás. Fechei a porta com força. Virei pra trancar.
E aí aconteceu.
Ela me abraçou.
Espontânea. Assustada. Braços fininhos em volta da minha cintura, rosto enterrado no meu peito. Corpo tremendo ainda do susto.
— Obrigada… obrigada por ter acalmado todo mundo. As crianças… e eu… você foi incrível lá.
Eu congelei.
Mão parada na tranca. O calor do corpo dela invadindo tudo. O cheiro. A maciez. Os peitinhos encostados no meu peito. Eu abaixei os braços devagar, envolvi ela. Abracei de volta. Forte. Como se ela fosse escapar.
Ela levantou o rosto. Olho azul brilhando, ainda molhado de lágrima. Bochecha vermelha. Boca… c*****o, aquela boca. Um pecado chamativo, entreaberta, molhada, tão perto da minha. Eu senti o p*u endurecer na hora, o coração bater no ouvido. Minha mão subiu sozinha pro rosto dela, polegar roçando o lábio inferior.
Eu quase cedi.
Quase joguei ela na parede, enfiei a língua naquela boca até ela gemer, desci a mão por todo o corpo dela, tirei aquela roupa toda, mostrei o que é homem de verdade.
Quase.
Um segundo a mais e eu tinha beijado. Tinha tomado ela ali mesmo, no chão da entrada, sem me importar com nada.
Mas eu parei.
Respirei fundo, soltei devagar.
— Vai tomar banho, Barbie. Ajuda a acalmar.
Ela piscou, confusa, mas assentiu. Subiu a escada devagar, olhando pra trás uma vez.
Eu fiquei ali, encostado na porta, mão no peito onde ela abraçou.
Caralho, Rodrigo.
Tu tá fodido.
Completamente fodido.
Porque agora eu sei.
Eu tô apaixonado pra c*****o por essa gringa.
E não tem volta.
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