Sienna
Meio-dia em ponto e eu tô um nervo ambulante.
Desço a escada da casa segurando firme no corrimão porque minhas pernas parecem de gelatina. O Coroa tá na frente, de regata preta, bermuda tactel, tênis branco impecável e aquele óculos escuros que faz ele parecer ainda mais perigoso. A pistola tá na cintura, bem visível, como se fosse um aviso pra metade do Rio.
Eu tô de vestidinho azul claro, cabelo solto porque o calor não tá tanto pra prender, e sandália rasteira que já tá me matando o pé nas pedras da ladeira.
Enquanto a gente desce, eu fico ensaiando mentalmente:
— “Oi, pastor Carlos, sou a Sienna, a missionária da Austrália… obrigada por finalmente me receber… eu trouxe a lista das atividades…”
Dou um passo em falso, quase rolo morro abaixo. Coroa vira rápido, segura meu braço.
— Cuidado, Barbie. Quer chegar inteira ou em pedaços? — Ele diz rindo mas o olhar dele é de pura preocupação.
— Inteira, por favor — respondo, rindo nervosa.
Ele solta, mas o olhar dele tá estranho, além de preocupado. Parece… irritado? Não sei. Só sei que desde que eu falei do pastor no café da manhã, ele tá mais quieto que o normal.
Chegamos na igreja. É um galpão simples, pintado de branco, com uma cruz de madeira na porta e placa “Igreja do Morro”. Meu coração dá um pulo de alegria. Finalmente! Um lugar sagrado, seguro, onde eu posso respirar de novo.
Bato palminha de leve, muito empolgada.
— Chegamos!
Coroa só resmunga um “uhum” e fica parado atrás de mim, braços cruzados. Parece segurança de celebridade.
A porta abre.
Eu espero o pastor Carlos, aquele senhorzinho de barba branca que eu vi nas fotos do grupo da missão.
Mas quem abre é… outro cara.
Alto. Pele morena clara, cabelo preto cacheado curto, barba rala bem feita, camisa social azul clara aberta no primeiro botão, calça jeans e um sorriso que… meu Deus do céu. Esses brasileiros tem o "molho".
— Você deve ser a Sienna — ele fala, voz macia, estendendo a mão. — Eu sou o Saul, filho do pastor Carlos. Ele tá lá dentro terminando uma reunião, pediu pra eu te receber.
Eu fico travada por dois segundos.
Aperto a mão dele.
A mão dele é quente, firme, mas ele age com total educação.
- Ah… oi! Prazer! Eu sou a Sienna, sim. Cheguei faz… uns dias… e… bem, aconteceu umas coisas…
Saul ri, um riso bonito, aberto.
— Eu sei, o morro inteiro tá falando da missionária australiana que cantou na creche e fez geral se emocionar. — ele pisca.
Eu fico vermelha até a raiz do cabelo.
- Não foi bem assim!
Atrás de mim, ouço um grunhido baixo.
Tipo cachorro bravo querendo atacar.
Saul olha por cima do meu ombro e o sorriso dele muda um tiquinho. Fica mais… respeitoso.
— Boa tarde, seu Coroa. Tudo bem?
Coroa não responde com palavras. Só dá um aceno seco de cabeça.
Aí acontece uma coisa que eu nunca imaginei: ele coloca a mão na minha cintura.
Assim, do nada.
Dedos abertos, possessivos, bem na curva do meu corpo. Me puxa um centímetro pra trás, colando minhas costas no peito dele.
Eu travo inteira.
Sinto o calor dele queimando através do tecido fino do vestido.
Meu rosto pega fogo.
Saul percebe. Claro que percebe. Todo mundo percebe.
— Bom… entra, Sienna. Meu pai já vem.
Eu entro, Coroa vem atrás como sombra. A igreja é simples: bancos de madeira, altar com Bíblia aberta, ventilador de teto girando lento. Tem umas cinco irmãs sentadas lá na frente, rezando.
O pastor Carlos finalmente aparece. Parece mais frágil do que nas fotos, barba branca, óculos fundo de garrafa, sorriso enorme.
— Minha filha! Que benção você aqui!
Ele me abraça forte, cheiro de água de colônia antiga. Eu quase choro de alívio.
— Pastor… eu pensei que nunca ia conseguir chegar…
— Calma, calma. Deus é fiel. Me perdoe por ter deixado que acontecesse essas coisas com você. Agora me conta tudo.
Eu começo a falar, falar, falar.
Conto do abandono do Uber na entrada do morro, do tiroteio, de como o Coroa me salvou, da creche, das crianças. O pastor escuta sério, balançando a cabeça.
Saul fica do lado, ouvindo também. E sorri toda hora que eu olho pra ele. Um sorriso doce, mas… tem algo ali. Algo que não é só santidade. Eu conheço esse olhar. Já vi em festa de igreja na Austrália, quando algum irmão tentava me chamar pra “estudo bíblico particular”.
O Coroa não fala nada.
Só fica atrás de mim, mão ainda na minha cintura. De vez em quando os dedos apertam mais forte, como se estivesse marcando território.
O pastor Carlos fala que a missão ainda tá de pé, que tem quarto pra mim na igreja, que amanhã mesmo eu posso começar as atividades. Eu fico feliz… mas ao mesmo tempo sinto um peso esquisito no peito.
Saul se oferece pra me mostrar o quartinho dos fundos onde eu ia ficar.
— Vem, eu te mostro.
Eu tento dar um passo.
Mas o Coroa não solta a minha cintura. Me prende ao lado dele.
— Ela não vai precisar — ele fala, voz tão baixa que parece trovão.
Silêncio total na igreja. Até o ventilador parece ter parado.
Pastor Carlos pigarreia.
— Bom… seu Coroa, a gente agradece muito o cuidado que teve com a nossa missionária…
Coroa ignora o pastor.
Olha direto pro Saul.
— Ela tá bem onde tá. Não tem lugar mais seguro pra Sienna a não ser ao meu lado.
Saul levanta as mãos num gesto de paz.
— Sem problema, chefe. — o Saul diz num tom que eu não entendo bem. — Só tava oferecendo o que foi prometido.
— Ela tá muito bem instalada na minha casa. Vocês não se preocupem. — O Coroa diz firme.
— Eu entendo perfeitamente senhor, mas a igreja e os pais dela esperam que a moça esteja conosco, com seus semelhantes. O senhor é viúvo, não vive... como nós. — O pastor diz e eu sinto a mão do Coroa me apertar ainda mais, certeza que agora ele me marcou.
Eu tô morrendo de vergonha. Tento soltar a mão do Coroa, mas ele aperta mais e mais. Dói um pouquinho, mas eu tô gostando.
— Pode deixar que ela não será exposta a nada imoral. Eu garanto e agradeço a sua insistência. Mas ela fica na minha casa e ponto.
— Não se preocupe, eu quero ficar com ele. Não vejo problema. — As palavras saem, nem sei o que estou fazendo.
O pastor olhou pra mim com dó e o filho dele parecia nervoso, porém impotente.
Saímos da igreja. O sol tá castigando. Coroa solta minha cintura só quando já tá na rua. Eu respiro fundo, aliviada e… estranhamente triste.
A gente sobe o morro em silêncio. Eu vou na frente, ele atrás. Quando chegamos num beco mais estreito, ele segura meu braço, me vira de frente pra ele.
— Aquele filhote de pastor te olhou demais — rosna.
Eu engulo seco.
— Ele só foi educado…
— Educado uma ova. Eu conheço esse tipo de olhar.
— E qual é o tipo? — pergunto, desafiando sem querer.
Ele chega mais perto. Tão perto que eu sinto o cheiro de cigarro e perfume caro.
— O tipo que quer comer o que é meu.
Eu abro a boca. Fecho. Abro de novo.
— Eu… eu não sou sua, Coroa. E ele não é esse tipo de homem.
Ele sorri. Um sorriso perigoso, lento.
— Todos são Barbie, todos. Você ainda não é minha.
Eu fico sem ar. Ele solta meu braço e continua subindo.
Chegamos na casa. Eu vou pro quarto, bato a porta, me jogo na cama. Coração disparado. Rosto quente. Corpo inteiro quente.
No fim da tarde, tô na varanda tomando água de coco, tentando me acalmar. Saul me mandou uma mensagem. Não sei como ele conseguiu meu número (provavelmente o pastor). Só uma frase:
📲 Saul: Se você precisar de ajuda pra sair desse morro… é só me ligar. Qualquer hora.
Eu fico olhando pro celular. Apago a mensagem rapidinho. Mas antes de guardar, ouço passos pesados atrás de mim.
Coroa tá parado na porta da varanda, olhando pro meu celular. Olhando pra mim. A mão direita desce devagar até a pistola na cintura. Os dedos se fecham no cabo.
Eu prendo o ar.
Ele não fala nada. Só me encara.
E naquele segundo eu entendo tudo.
Esse homem não tá só me protegendo do morro.
Ele tá me protegendo dele mesmo.
E tá perdendo a batalha.
Deus do céu… o que que eu faço agora?
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