Jacaré Narrando
O moleque tava diferente. Desde que tirei ele e a família daquele cofre, não tinha trocado uma palavra comigo que não fosse cheia de raiva. Não que eu pudesse culpar ele. Tá certo, ele não pediu pra viver nesse caos, mas a realidade é que o mundo não dá escolha. Ele acha que eu gosto disso, que ser quem sou foi uma decisão fácil. Se soubesse o que carrego nas costas, talvez entendesse.
Vi ele na cozinha, encostado na pia, com aquela cara de nojo de tudo à volta. Decidi entrar. Peguei uma cerveja na geladeira, sem dar muito espaço pra ele respirar. Não sou de deixar conversa pela metade, ainda mais com quem eu faço questão de proteger.
— Moleque, tu fica bravo como se fosse dono da verdade. — Falei, dando um gole. Eu queria que ele visse que não me afetava, mas, no fundo, aquele jeito dele me incomodava. — Tu não entende o mundo em que a gente tá.
Ele não hesitou. O moleque é rápido.
— Não quero entender. Quero sair dele.
Parei e ri, sem humor. Esse moleque não fazia ideia do que tava falando. Sair? Como se fosse tão simples assim. Era bonito de ouvir, mas só isso.
— Sair? Pra onde, Benjamin? Tá achando que é tão fácil assim? — Falei, olhando pra ele enquanto girava a garrafa na mão. — Tu nem imagina como esse mundo é pequeno quando cê tá na minha posição.
— Não é meu problema, Jacaré. É teu. — Ele rebateu, firme. — Foi você que escolheu isso. Minha mãe, meu pai, eu... a gente nunca pediu por nada disso.
Eu queria mandar ele calar a boca, mas as palavras ficaram presas. A verdade é que eu nunca soube lidar com o peso que carrego, e agora o moleque tava jogando na minha cara tudo o que eu tento ignorar. Coloquei a garrafa na pia. Não dava mais pra levar essa conversa na marra.
— Eu não escolhi tudo isso, moleque. — Falei, sério. — As escolhas que eu tinha eram viver ou morrer. Eu fiz o que precisava pra sobreviver. Não por mim, mas pra garantir que gente como você pudesse ter uma chance.
Ele ficou quieto por um tempo, mas eu sabia que a discussão não tava encerrada. Moleque é teimoso, igual eu quando tinha a idade dele. Quando finalmente falou, veio com a pergunta que eu mais temia.
— Então por que você não para? Por que não tenta mudar?
Soltei um riso curto, amargo. Era óbvio que ele não entendia.
— Porque nesse jogo, Benjamin, parar é morrer.
Dei as costas e saí da cozinha antes que ele visse o peso dessas palavras no meu rosto. Ele não entende, e talvez nunca vá. Pra ele, eu sou o problema. Mas ele não vê o que vejo, não sabe o que sei. Nesse mundo, a gente não tem a opção de parar. Se a gente desacelera, alguém passa por cima.
Na sala, me joguei no sofá e dei mais um gole na cerveja, deixando o gás queimar na garganta. Jaguatirica tava na varanda, chamando uns caras pra reforçar o morro que a gente acabou de ganhar. Toda vez que olho pro Jaguatirica, penso no peso que joguei nos ombros dele hoje. O moleque não sabe, mas foi por ele. Cada batalha, cada escolha errada. É tudo por quem ainda pode sair desse inferno.
Mas eu? Eu já tô preso nele. Meu caminho foi decidido quando tirei a primeira vida, quando escolhi sobreviver ao invés de desistir. O moleque ainda não entende, mas eu tô lutando pra que ele nunca precise fazer essa escolha. Só espero que ele perceba isso antes que seja tarde demais.
Enquanto tomava a cerveja, escutei o moleque se movimentando lá dentro. Benjamin não ia deixar barato. Era o jeito dele, igualzinho ao que eu era na idade dele: cabeça quente e achando que dava pra consertar o mundo com algumas palavras. Queria que fosse verdade.
Jaguatirica entrou na sala, largando o rádio na mesa e se jogando na poltrona ao lado.
— Tá osso aí com o moleque, né? — Ele disse, dando uma risadinha.
— Não é moleza. — Respondi, ainda olhando pra frente. — Ele acha que sabe tudo. Quer sair dessa vida, mas não entende que já tá envolvido até o pescoço.
— Ele é novo, Jacaré. Ainda acha que dá pra viver só de sonho. Deixa ele. O tempo ensina.
Bebi o último gole da garrafa e fiquei pensando no que Jaguatirica falou. Ele tinha razão, mas também tinha algo no moleque que eu queria preservar. Aquela revolta que ele sentia contra esse mundo... era algo que eu não podia apagar.
De repente, Benjamin apareceu na sala, carregando uma mochila pequena. Ele parou no meio do corredor e olhou direto pra mim, desafiador.
— Eu vou embora daqui, Jacaré. Cansei disso.
— Vai pra onde, moleque? — Perguntei, me levantando devagar, colocando a garrafa vazia na mesa. — Não tem lugar nesse mundo que tu vá sem ser engolido por ele.
— Qualquer lugar é melhor do que aqui. — Ele rebateu, apertando a alça da mochila.
Fiquei parado, olhando pra ele. Podia ver que ele não tava brincando. Benjamin tava decidido. Isso me irritou e, ao mesmo tempo, me preocupou.
— Escuta, moleque. — Comecei, me aproximando. — Tu acha que essa quebrada é um inferno? Beleza, é mesmo. Mas lá fora é pior. Lá ninguém se importa com você. Aqui, pelo menos, eu tô cuidando de tudo.
Ele deu um passo pra trás, como se minhas palavras fossem socos.
— Cuidando? — Ele disse, com raiva. — Cuidando de quem, Jacaré? Você não tá cuidando de mim. Tá cuidando do teu próprio ego. Você vive nessa guerra porque não sabe fazer outra coisa.
Aquilo me acertou como um tiro. Ele tava errado? Talvez não. Mas não era sobre mim agora. Era sobre ele, sobre o que aconteceria com ele se realmente metesse o pé.
— Beleza, vai embora então. — Falei, apontando pra porta. — Mas te prepara, porque o mundo lá fora vai te quebrar de um jeito que tu nem imagina.
Benjamin hesitou. Ele sabia que eu não tava mentindo. Mesmo assim, ele deu as costas e saiu, batendo a porta atrás de si.
Fiquei parado, encarando a porta. Jaguatirica me olhou do canto da sala, preocupado.
— Vai atrás dele? — Ele perguntou, já se levantando.
— Não. — Respondi, firme. — Ele precisa entender sozinho.
Mas, por dentro, a preocupação me consumia. Porque, nesse mundo, ninguém aprende sem pagar um preço. Eu só espero que Benjamin não pague caro demais pra aprender a lição.