Jacaré Narrando
Já tinha passado uma semana desde a nossa conversa, e eu ainda sentia aquele peso dentro de mim. Foi bom falar com o Benjamin, mesmo que a gente tenha deixado tudo ali, sem muitos comentários. Ele não disse muita coisa, mas naquele jeito dele, eu percebia que tinha algo rolando. Eu ainda ficava pensando, a cada dia, se tinha feito a escolha certa. Eu sabia que ele tinha ficado com medo, tudo que aconteceu fez ele ficar assim, sem saber o que esperar de mim, de todo esse mundo em que eu vivo.
Acordei cedo, como sempre, meu corpo já acostumado com a rotina. A primeira coisa foi garantir que minha pistola estivesse por perto – nunca dava pra baixar a guarda por completo, ainda mais com as coisas como estavam. Depois, a ducha quente e uma olhada no espelho, o reflexo da minha face, que às vezes parecia até mais jovem do que eu realmente sou, algo que o tempo ainda não havia tocado muito. Então desci para tomar café, e, ao abrir a porta da cozinha, o cheiro de bolo de fubá tomou conta do ar. Dona Amélia tinha acabado de tirar do forno. O bolo ainda estava quente, mas eu nem hesitei. Comecei a cortar logo uma fatia, sentindo o gosto de casa, de algo familiar. Era bom saber que, apesar de toda a p***a da vida, havia pequenos momentos de paz, coisas simples, mas com a força suficiente para te fazer voltar à realidade.
— Bom dia, meu chefe — disse Dona Amélia, com aquele sorriso acolhedor, como sempre fazia. Ela se preocupava comigo mais do que qualquer outra pessoa no mundo. Eu sabia que ela me via como filho, e eu fazia questão de sempre estar por perto para retribuir esse carinho.
Depois do café, respirei fundo e saí com a minha moto. O som do motor começou a acordar a quebrada. Já tinha algumas pessoas que saíam para o corre cedo, e eu passei batido por elas, em direção à boca. O barulho da moto ecoava por toda a favela enquanto eu ia administrando os negócios do dia.
Quando cheguei na boca de fumo, encontrei Jaguatirica ali, como de costume, conversando com uns manos, fazendo o trabalho de sempre. Ele me viu chegando, levantou a cabeça, e percebi o brilho nos olhos dele. Eu não tinha precisado nem chamar ele, o moleque já sabia o que ia vir.
— Ei, Jacaré, que foi? — Jaguatirica me cumprimentou.
— Vamos movimentar mais a quebrada esse final de semana — falei. Ele me olhou, não tão surpreso, mas com aquele olhar de aprovação. Ele sabia que, para manter tudo em pé, a gente precisava estar sempre criando novas possibilidades. Para mexer com as bocas e com as vendas, tinha que mexer no fluxo da coisa.
— Tu tá falando de festa, né? — ele perguntou, já dando aquele sorriso maroto.
— Exato, p***a. Vai ser um baile. Quero movimentar as vendas, colocar a quebrada pra balançar. Vai atrair um público bom e dar aquele fôlego nas mercadorias. Tem que ter cara de festa, mas sem esquecer o propósito. Correr risco tem que fazer parte do jogo, mas não vai ser de graça, eu também quero uma grana boa com isso. Quem mais vai colar nessa fita?
Ele fez aquele sorriso de quem já sabia tudo que ia acontecer. Jagua era meu braço direito. Sabia exatamente como fazer as coisas acontecerem, como organizar a galera e gerar dinheiro.
— Tá pronto pra isso — ele respondeu, confiante.
Marquei o baile, ajudei a definir a movimentação das coisas e, ao sair de lá, a sensação de estar controlando tudo voltou a me dar aquele impulso. Como sempre, nada de fácil na minha vida, mas eu estava pronto. Cada movimento, cada passo, precisava ser planejado para garantir que tudo tivesse sucesso. As pessoas ali dependiam disso, e eu também.
O dia foi se arrastando, e quando a tarde começou a chegar, eu ainda estava envolvido em um monte de coisa, resolvendo a boca e deixando tudo nos trinques para o baile de final de semana. Mas, como sempre, tinha aquelas coisas que apareciam do nada, querendo tirar a nossa paz.
Uma das marmitas do morro, aquelas que vivem com a língua afiada e s*******o, chegou de mansinho e foi direto ao ponto. Ela me olhou com aquele olhar, piscando, dando umas risadinhas safadas. Queria coisa, sabia? A velha história de sempre. Todo dia tinha alguém querendo uma f**a, tentando te envolver naquelas jogadas. Eu só olhei pra ela, sem nem esboçar sorriso. Não estava com cabeça pra nada disso hoje, nem de longe. Já tinha demais na cabeça.
— Que é isso, Jacaré? Ficar aí quieto assim? — Ela disse com aquele sorriso irreconhecível, querendo ganhar alguma coisa com esse papo.
Mas a verdade é que eu não tava afim, e dei um papo reto.
— Tu tá maluca, né? Já falei que tô tranquilo. Sai de perto, não tenho paciência hoje.
Ela ficou me encarando, tentando jogar charme, mas eu só dei as costas. Não era hora nem de tentar, nem de me complicar com nada disso. Já era muita correria, muita encrenca, não precisava somar mais uma. E, depois de me dar o mínimo de atenção que ela precisava pra entender que não queria nada, a desgramada deu meia-volta e vazou. O resto ficou em silêncio, como se todo mundo já soubesse a minha. Fui fundo, me recusei a engolir essa conversa.
A tarde passou mais lenta do que eu imaginava. Era tudo demais, parecia que todo mundo estava pedindo algo, até eu não sabia mais o que. Mas eu sabia que precisava dar um tempo pra minha cabeça descansar, então desci pro boteco do seu Toninho, aquele lugar que sempre tem comida boa e cerveja gelada, perfeito pra acalmar a mente. O lugar não mudava muito, e ninguém questionava nada de errado.
Chegando lá, encontrei Jaguatirica já jogado no banco da praça, com mais uns vapores colados. Sentou ao meu lado e deu aquele sorriso característico, o moleque sabia como aliviar a tensão. Era hora de dar uma relaxada, de não pensar nas complicações.
A cerveja estava gelada e a comida tava melhor ainda. O cheiro do feijão tropeiro com carne de sol fez meu estômago até roncar. Enquanto comíamos, um silêncio confortável tomou conta da mesa. Só uns papos sobre a rotina, algumas risadas e as piadas bobas que a galera de vez em quando joga pra cima, mas nada demais. O clima ali estava sossegado.
Jaguatirica olhou pra mim depois de um gole de cerveja, os olhos sempre atentos, meio pensativo.
— Então, Jacaré… o baile tá feito. Os manos tão na pegada pra lotar lá. Vai ser show, vai ter movimentação boa, tu sabe como é, né?
Aproveitei o momento pra respirar fundo e relaxar. Já estava começando a ficar mais calmo. Esses poucos momentos eram essenciais pra mim.
— A galera sabe o que fazer, Jagua. Vai rolar tudo certo, já peguei a visão. E depois disso, vou ver como ficamos. Por enquanto, vamos deixar acontecer, não tem por que se preocupar — respondi enquanto levava a cerveja até a boca.
A noite caiu ali no boteco, e enquanto os vapores continuavam a chegar e tomar o lugar, o clima ali de tranquilo e sossegado foi me deixando mais à vontade. Eu precisava desses momentos. Eles pareciam pequenos, mas eram cruciais.
Depois de mais alguns goles de cerveja e umas conversas aleatórias, decidi que era hora de subir pro meu barraco. O dia já tinha se estendido o suficiente, e apesar de toda a movimentação, meu corpo estava pedindo descanso. A cerveja ainda corria nas veias, mas eu sabia que precisava pegar no sono para começar o próximo dia com a cabeça mais leve. Fui subindo o morro com a moto, sentindo o vento contra meu rosto, que parecia querer me tirar qualquer resquício de tensão.
Cheguei no barraco, e assim que entrei, a quietude me acolheu. Aquela calmaria quase desoladora do lugar só reforçou a necessidade de dar um tempo pra tudo o que estava acontecendo. Subi pro quarto, me joguei na cama, puxando as cobertas e simplesmente fechando os olhos.
Mas, apesar de querer apenas descansar, meu cérebro não cooperava. Imediatamente, minha mente me trouxe Benjamin à tona. Eu não queria pensar nele naquele momento, mas ele estava ali, como sempre, de um jeito que eu não esperava. Eu lembrei da conversa que tivemos, das coisas que ele disse, e daquele jeito todo fechado, mas que também tinha algo mais. Não consegui afastar o pensamento dele, como se, de alguma forma, ele ainda estivesse presente no ar ali no meu quarto.
Sem saber o que fazer, peguei o celular, digitando as primeiras palavras que vieram à minha mente. "Ei, Benjamin, tranquilo?" Mas antes mesmo de terminar a frase, um nervoso tomou conta de mim. Não era nada que eu esperasse sentir, e o frio na barriga se intensificou. Eu nunca fui de ficar assim, enrolando com essas sensações. Joguei o celular de lado, peguei a coberta e me ajeitei na cama, tentando afastar o calor que tomou conta do meu corpo.
Tentei esquecer da mensagem, tentar dormir, tentar me afastar do pensamento que tinha surgido em minha cabeça. Minhas pernas estavam pesadas, e a vontade de simplesmente desligar do mundo tomou conta. Fechei os olhos de novo e, dessa vez, consegui pegar no sono.
Mas, por dentro, uma parte de mim ainda estava ali, preso naquele frio na barriga, preso em tudo o que eu sentia e em como isso era mais complicado do que eu queria que fosse.