Jacaré Narrando
O raio de sol entrou pela janela e clareou meu rosto. Abri os olhos, ainda sonolento, e percebi que o dia já tinha amanhecido. Levantei da cama, peguei uma toalha no armário e fui tomar uma ducha. A água gelada me despertou de vez. Escolhi uma roupa confortável, coloquei meus cordões de ouro, passei gel no cabelo e, como de costume, borrifei meu perfume favorito. Com a pistola presa à cintura, desci para a cozinha em busca de um café reforçado.
Enquanto descia as escadas, ouvi uma risada de criança vindo da sala. Não demorou para eu reconhecer: era a Valentina, a neta da Dona Amélia.
— Bom dia, princesas! — Saudei com um sorriso, e Valentina correu para me abraçar.
— Oi, tio! — disse ela, toda animada.
— Tá tudo bem, princesa? — perguntei, pegando ela no colo.
— Venham tomar café, vocês dois — chamou Dona Amélia da cozinha.
Levei Valentina comigo, sentei ela em sua cadeira, e me acomodei ao lado dela. Valentina é especial para mim. Desde que ela nasceu, me apeguei de um jeito diferente a essa menininha esperta. A mãe dela morreu no parto, e o pai nunca apareceu. Desde então, assumi parte da responsabilidade de ajudár. Sempre fui fascinado por crianças, e Valentina conquistou meu coração.
Depois de terminar o café, dei um beijo nela e em Dona Amélia. Peguei meu carro e dois vapores para me acompanhar — desci pro asfalto com destino ao hospital. Meu objetivo era claro: encontrar o moleque e resolver nosso papo pendente. Mas, antes disso, fiz um desvio na boca para trocar ideia com o Jaguatirica e dar um salve na situação.
Quando cheguei ao hospital, estacionei na frente e pedi para os vapores ficarem no carro. Orientei que qualquer movimentação estranha fosse comunicada pelo rádio. Entrei no prédio, e logo uma loira novinha tentou se engraçar comigo no corredor. Cortei logo, sem paciência. Fui andando até encontrar os coroas do moleque no corredor.
— Bom dia, o que faz aqui? — perguntou o coroa, me encarando com desconfiança.
— Vim ver se ele já acordou. Temos que ter uma conversa séria — respondi, direto.
— Ele está acordado, mas primeiro precisamos preparar ele pra te receber — explicou o homem.
concordei, esperando que ele resolvesse logo. Não gosto de perder tempo. Minutos depois, os coroas voltaram e disseram que o moleque aceitou falar comigo. Entrei no quarto junto com eles, mas algo me pegou desprevenido. Assim que meus olhos pousaram no garoto, senti algo estranho no estômago. Uma sensação incômoda, como se fossem formigas me beliscando por dentro. Ignorei isso e foquei na conversa.
O papo foi longo, mas no fim, nos acertamos. Passei o restante da tarde com ele e os pais, trocando ideia. O moleque era curioso, queria aprender as gírias do morro, e eu expliquei o que dava. Tinha algo naquele garoto e nos coroas que me deixava à vontade, como se fossem da quebrada. Não posso negar que ele era bonito e tinha uma energia que me intrigava, mas logo cortei esses pensamentos. "Sou hetero", pensei. "Essas coisas não são pra mim."
Na hora de ir embora, me despedi, prometendo que, quando o moleque tivesse alta, faria questão de levar eles para casa. Mas ao sair do quarto, aquela mesma sensação voltou. Era como se eu estivesse deixando algo importante para trás. Estranho.
Voltei pro meu barraco, onde Dona Amélia estava brincando com Valentina no chão da sala.
— Achei que o tio tinha me abandonado, igual meu pai fez — disse Valentina, me olhando com aqueles olhos de menina esperta.
— Sabe que o tio nunca vai te abandonar, né? — Respondi, sentando ao lado dela.
— Promete? — Ela segurou minha mão com firmeza.
— Prometo. E que tal a gente ir tomar um sorvete agora? — perguntei, vendo o brilho nos olhos dela.
— Eba! Quero de morango, tio! — respondeu, já pulando de animação.
Peguei ela no colo e saímos descendo o morro até a pracinha. Compramos sorvetes — um pra mim e outro pra ela. Enquanto Valentina saboreava o dela, uma mão pousou no meu ombro. Segurei firme, preparado para qualquer coisa, mas era Marina, a mina que vivia no meu pé.
— O que tá fazendo aqui com essa pirralha, amorzinho? — provocou ela, num tom que já me deixou irritado.
— Tu sabe que essa menina é protegida minha, né? Quem mexer com ela, vai pro saco — falei firme, encarando ela.
— Calma, amorzinho, só tava brincando — respondeu ela, rindo nervosa.
— Faz assim: mais tarde me espera daquele jeito que eu gosto, e resolvemos isso. — soltei, encerrando o assunto. Ela saiu animada.
Depois de brincar um pouco com Valentina e levár de volta para casa, subi para o meu quarto, tomei outra ducha e me preparei para encontrar Marina. O que aconteceu depois foi estranho. Nunca tinha tido problemas com mulher nenhuma, mas dessa vez... Algo me incomodava. Aquele garoto do hospital apareceu na minha cabeça e bagunçou tudo. Não entendi o porquê.
Acho que tô ficando maluco.
— Não acredito, amorzinho, que vai me deixar na mão — reclamou Marina, com aquele tom que sempre me deixava bolado.
— Qual foi, c*****o? Vai ficar pegando no meu pé mesmo? Vou te deixar careca de tanto stress — rebati, irritado.
Ela deu um passo para trás, meio sem graça.
— Calma, só fiz uma pergunta... — respondeu, num tom mais baixo.
Sem paciência pra continuar o papo, peguei duas notas de cem no bolso e joguei na cama dela.
— Tá aqui. Se resolve com isso.
Sem mais nenhuma palavra, vesti minha roupa, peguei as chaves da moto e saí daquele barraco. Subi direto pro meu morro. Assim que cheguei no meu barraco, ainda bolado, fui direto para o quarto. Precisava esfriar a cabeça.
Entrei no banheiro, tomei outra ducha para tirar o perfume da Marina que ainda grudava na minha pele. A água gelada ajudou a acalmar os nervos, mas minha mente continuava inquieta. Me joguei na cama, fechei os olhos e, finalmente, apaguei.