capítulo 02

1231 Palavras
Allana narrando Um carro preto parou devagar na barreira. O vidro foi abaixado e, assim que vi quem estava no banco do carona, meu coração parou por um segundo. Era ela. Minha mãe. Os anos não apagaram seu rosto da minha memória. Estava diferente, claro algumas rugas novas, os cabelos agora mais escuros e presos num coque simples, mas era ela. Aqueles olhos, aquela expressão... Era como se o tempo tivesse voltado só pra me entregar de volta o que me tiraram. — Allana? — ela sussurrou, saindo do carro com os olhos marejados. Antes que eu pudesse responder, minhas pernas tomaram vida própria e corri em direção a ela. Nos encontramos no meio da rua, num abraço tão apertado que parecia tentar costurar todos os pedaços do tempo que nos arrancaram. Choramos ali mesmo, sem vergonha, sem medo, só com o alívio de finalmente estarmos juntas. — Minha filha... meu Deus, é você mesmo... — ela dizia entre lágrimas, beijando minha testa, meu rosto, como se precisasse ter certeza de que eu era real. — Mãe... — foi tudo o que eu consegui dizer, enquanto soluçava no ombro dela. — Eu senti tanto a sua falta... Ela fez um gesto para o homem que dirigia o carro. — Pega as malas dela pra mim, por favor? Ele assentiu, saindo do carro com calma para colocar minha bagagem no porta-malas. Subimos juntas, e no caminho, ainda emocionada, ela segurava minha mão com força. — Por que você não me avisou que vinha? — perguntou, olhando de relance pra mim, como se ainda não acreditasse. — Eu queria fazer uma surpresa... — sorri fraco. — Não sabia se você ainda me queria aqui. Ela parou o carro em frente a uma casa muito bonita, parecia até aquelas da Zona Sul do Rio. A rua era estreita, cheia de vida. Crianças brincavam, vizinhos conversavam nas portas. Quando entrei, senti o cheiro de comida caseira e lavanda. Era aconchegante. Assim que fechamos a porta, veio a pergunta que eu temia. — E o seu pai...? — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro. — Pensei que ele nunca deixaria você voltar pro Brasil um dia. Demorei um instante para responder. Respirei fundo. — Ele morreu, mãe. Há alguns dias atrás. Foi um infarto fulminante. Ela se aproximou, me puxando para um novo abraço. — Sinto muito, filha. — sua voz embargada. — Eu sei que, apesar de tudo, ele era seu pai. E perder um pai nunca é fácil... Mas agora você não tá mais sozinha, ouviu? Eu tô aqui. Pra tudo. Sempre. Meus olhos se encheram de novo. Pela primeira vez em anos, eu tava matando aquela saudade que sentia dela todos os dias. Foi quando o homem apareceu na porta da cozinha. — Amor, vou lá na boca resolver um negócio que deu r**m, mas já volto, falou? Ele me lançou um sorriso simpático e sincero. — Satisfação te conhecer, Allana. Sua mãe fala muito de você... então eu meio que já te conheço. Pode ficar suave, que a casa também é sua, já é? — Obrigada... — respondi, ainda surpresa. Assim que ele saiu, olhei pra ela, curiosa. — Mãe... quem é ele? Ela sorriu, um pouco sem jeito. — É meu marido. A gente tá junto há oito anos. Depois do seu pai, achei que nunca mais arrumaria ninguém. Mas ele me tirou tudo, Allana. Minha única solução foi vir pra cá e recomeçar. Fiquei em silêncio por um momento, digerindo a novidade. Eu não esperava por isso. Meu pai nunca se envolveu com ninguém depois da separação... E eu, de algum jeito, sempre imaginei que ela também não tivesse seguido em frente. — Eu não sabia... — murmurei. — Se eu soubesse, não teria vindo assim, de surpresa. Não quero atrapalhar sua vida... Ela segurou meu rosto com as duas mãos, firme. — Para com isso, Allana. Você é minha filha. Eu já perdi tempo demais longe de você. Agora a gente vai recuperar tudo. E você vai ficar aqui, comigo. Porque essa é a sua casa também. E, pela primeira vez em muito tempo... eu acreditei. — Tá bom — falei pra ela, com um sorriso discreto. — Tá com fome? Fiz almoço há pouco. Como eu não estava esperando por você, eu e o Morte já comemos. Olhei pra ela assustada, sem saber do que ela tava falando. — Você é... o Morte? Ela caiu na risada, achando graça da minha expressão. — Morte é o vulgo do Marcos. Nessa vida que eles levam, eles não se tratam pelo nome, só pelo vulgo. Balancei a cabeça, confirmando e começando a entender o mundo novo que eu estava prestes a conhecer. Minha mãe puxou uma cadeira e se sentou comigo à mesa. Colocou um prato diante de mim, esquentou a comida no micro-ondas e, enquanto eu comia, os olhos dela me observavam com uma mistura de alívio e curiosidade. — Me conta tudo, filha... — ela disse, apoiando o queixo nas mãos. — Como foram esses anos longe? O que você fez da vida? Fiquei em silêncio por um instante, organizando os pensamentos. Era tanta coisa... por onde começar? — Foi difícil no começo... — comecei, de olhos baixos. — Depois que a gente se separou, o pai se mudou de cidade. Eu era só uma menina e... senti muito sua falta. Sempre me perguntava por que a senhora não me procurava.- Ela baixou os olhos, visivelmente emocionada, mas não me interrompeu. — Cresci achando que você tinha me deixado. Só muito tempo depois é que fui entendendo que as coisas não eram tão simples assim... O pai nunca deixou a gente manter contato. Ele controlava tudo.- Ela assentiu devagar, como se cada palavra minha fosse uma ferida antiga sendo reaberta. — Eu estudei, fiz vários cursos... morei em três cidades diferentes. Tentei fazer minha vida do jeito que dava. Mas sempre sentia esse vazio aqui dentro levei a mão ao peito, como se um pedaço de mim tivesse ficado parado no tempo, lá atrás.- Ela pegou minha mão por cima da mesa e apertou com carinho. — Eu nunca deixei de pensar em você, Allana. Nunca. Mas eu não tinha como lutar contra tudo sozinha. Seu pai... ele era poderoso demais. Me ameaçou, me perseguiu. Eu tive medo, filha. Muito medo.- Assenti em silêncio. No fundo, eu já sabia. A conversa seguiu por horas. Ela quis saber de tudo, dos lugares onde morei, dos amigos que tive, das escolhas que fiz. Falamos sobre escola, sobre trabalhos, sobre sonhos que deixei pra depois. E, mesmo sem dizer com todas as letras, a gente falava também sobre a saudade daquela que machuca calada, dia após dia. Falei pra ela sobre um namorado que tive anos passado e não deu certo. Enquanto ela falava, eu a observava. Seu jeito, seus gestos, a forma como ria das pequenas coisas. Aquilo era real. Eu estava ali, na casa dela, sentada na mesa dela, comendo a comida que ela mesma tinha feito. Meu coração se encheu de gratidão. Agradeci a Deus em silêncio, mentalmente, por estar ali de novo. Por ter minha mãe de volta, mesmo que tudo agora fosse diferente. Mesmo que ela tivesse um novo marido, uma nova vida, um novo mundo ao qual eu ainda precisava me adaptar. Porque, naquele instante, nada mais importava. Eu estava em casa. Finalmente.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR