Capítulo-V. Samara
" "Enquanto não aprendemos o que a alma veio buscar, a roda de samsara gira, e renascemos não para recomeçar, mas para continuar de onde fugimos."
Varuna
Meu primo nos levou até Extremoz e disse ter conseguido o que eu precisava — mas teríamos que buscar. Essa necessidade de me deslocar atrás da maconha foi algo que me incomodou bastante. Em São Paulo, tenho livre acesso. Meus fornecedores são pessoas de confiança. Muito diferente aqui no Rio Grande do Norte. Quem é usuário sabe: tem que ficar sempre à espreita quando se aproxima de uma biqueira.
Esses moleques que gerenciam uma boca de fumo nada mais são do que ratos assustados. Desconfiam de tudo e de todos. Um movimento em falso, e pronto: é motivo suficiente pra enfiar uma bala no teu peito ou no meio da tua testa.
Eu uso por uma razão: muitos deles morrem com extrema facilidade em confronto com a polícia. Não têm treinamento tático, nem preparo. Mas sempre há outros prontos pra ocupar o lugar do que caiu. É algo automático. Enquanto um está empunhando a arma e tomando conta da banca, tem cinco ou seis na fila esperando ele deitar pra poder assumir o ponto de vendas.
Em São Paulo, as coisas funcionam diferente. A tecnologia vem ajudando muito esse e-commerce. Pessoas de alto padrão como eu não saem atrás de traficante pra comprar umas gramas de erva ou de pó. Muito diferente do que experimento agora — essa realidade aqui, marcada por um certo cinismo contido e autoconsciência, típica de quem vive numa corda bamba entre o poder e a ruína.
Se soubessem que tudo começa com a chegada de um simples jardineiro… talvez rissem. São pessoas que não chamam atenção. Nada nelas passa pelo crivo afiado de olhares desconfiados. Foram meticulosamente selecionadas para o transporte. Os chamados aviões — gíria comum no Brasil, especialmente em áreas urbanas, para quem faz a entrega direta da droga ao usuário final.
Mas quem tem dinheiro usa delivery. Um esquema de entrega por aplicativo, motos ou carros, como se fosse um serviço qualquer. Justamente para disfarçar a ilegalidade. O sistema protege, fornece o produto e livra a cara de muita gente. Uma modalidade excelente, tanto pra quem vende quanto pra quem consome.
Em São Paulo, o delivery chega toda terça-feira. Pontualmente. Como um relógio suíço.
Não é como pedir um lanche, claro. Existe um ritual. Primeiro, acesso o aplicativo Lótus Azul. Ele não está na App Store, obviamente. Precisa ser instalado manualmente, com uma chave criptografada que muda toda semana. O ícone? Uma calculadora financeira, com gráficos e percentuais. Uma fachada perfeita.
Dentro do app, tudo é discreto. Seleciono “serviço de paisagismo”, escolho o “Vaso 18”, confirmo minha identidade por reconhecimento facial e envio um código temporário que libera o portão lateral por exatamente noventa segundos. Tudo auditado, mas criptografado em três camadas. A origem é Medellín, mas a logística passa por Campinas antes de chegar a Itu. Eles são profissionais. Não me entregam qualquer pó vagabundo cortado com anfetamina de banheiro. O que recebo é laboratório, precisão, silêncio.
Na minha última semana em São Paulo, o jardineiro chegou às 18h45. Camisa polo verde-folha, boné combinando com o logo da Flor de Lótus, crachá, calças largas. Dirigia uma Fiorino velha com três vasos, dois sacos de seixo e um vaso ratan grande. Pelas câmeras, ele não olha pros lados. Não tenta conversar. Nem toca a campainha.
Quando chega à lateral da casa, eu já estou monitorando tudo do escritório. A tela dividida em quatro ângulos mostra sua movimentação. Ele deixa o “Vaso 18” atrás da fonte, como sempre. Decora o vaso com os seixos numa lentidão proposital — uma simulação perfeita de trabalho real. Sai sem olhar pra trás.
Só recolho o vaso depois que a notificação aparece no celular: “Entrega finalizada. Verificar integridade do recipiente.” Uso luvas de nitrila para não deixar resíduos. Abro o compartimento secreto no fundo com um estilete específico. Dentro, três cápsulas seladas, vácuo absoluto. Sem cheiro. Sem traço.
Eu mesmo criei o aplicativo que valida o QR code microscópico gravado em cada cápsula. É minha obra. Nada é entregue sem que eu possa rastrear até a fonte. A pureza é sempre acima de 93%. Menos que isso, eu cancelo as próximas três entregas. Eles já sabem.
Não existe dinheiro físico. Os pagamentos são feitos via cripto, disfarçados como doações para uma ONG ambiental sediada no Sri Lanka. A cadeia é tão extensa que, mesmo se alguém desconfiasse, não teria prova alguma. Sem nota fiscal, sem áudio, sem rastreio.
Eu sempre uso sozinho. Quando é o pó, faço em silêncio. Sem música, sem luz forte, sem euforia. Só eu e o produto. A maioria pensa que vício é prazer. Mas pra mim... é silêncio. É como desligar o mundo. Por quinze minutos, não sou o gênio, o exemplo, o CEO, o orador. Sou só corpo.
Agora, se for erva, aí gosto do uísque, de uma música ambiente e da solidão.
Mas aqui... aqui tudo é diferente. Me tira do meu conforto.
Olho pela janela. O motor do carro está ligado, o ar-condicionado faz o trabalho de nos manter secos, sem suor. O lugar é ermo. Observo com mais atenção. Estamos próximos de uma linha de trem, estacionados numa rua estreita de terra batida. A linha férrea divide uma área verde inabitada da pequena rua. O local está deserto. Não passa ninguém.
Olho através do para-brisa. O sol está a pino. Poucas nuvens no céu — parecem baixas. O som das cigarras rompe o silêncio com força.
— Quem é o cara, Everaldo? — pergunto, desconfortável.
— Papaléguas. É de confiança, tá acostumado a fazer esses serviços.
Dou um sorriso de escárnio.
— Papaléguas? Isso nem nome é.
Não sou ingênuo. Sei bem que esse pessoal usa codinomes pra proteger a identidade real.
— Não é mesmo. Mas o Papaléguas é o melhorzinho que consegui. Não faz muita pergunta, topa entregar o bagulho longe do ponto... Você devia estar feliz. Se fosse o Sete Coco, sua carinha bonita ia ter que ir na bocada. Aí sim, era motivo pra se incomodar, galego.
Olho de soslaio para Everaldo, que está tranquilo, vendo vídeos no celular.
— Se é como você diz... cadê ele?
— Calma. Aqui não tem delivery. Tem que esperar.
— Não tô gostando dessa merda. Calma demais. — A quietude me incomoda de verdade. — Onde exatamente a gente tá?
Tamborilo os dedos no volante.
— Chamamos de KM 20.
— Não tinha outro lugar, p*rra? — Reclamo, dando um tapa no volante.
Estou irritado. A falta da droga mexe com meus nervos, mas também... já faz quatro dias e a imagem do rosto daquela desconhecida continua me assombrando.
— Queria que eu te levasse pra onde? Pra praia de Pitangui? Mostrar seu rostinho bonito por lá? Pra galera da comunidade dos Caranguejos marcar bem sua fisionomia e depois espalhar no boca a boca? Somos da política aqui, não podemos dar vacilo, c*ralho, Varuna! Você sabe que se começarem boatos sobre você comprando essas merdas, o povo derruba o seu pai, a minha mãe... e de quebra eu vou conhecer mil maneiras de tomar no c*!
Baixo a cabeça. Por pouco não ligo o carro e vou embora. A espera está consumindo minha paciência. Além disso, quero refazer o percurso, tentar encontrar aquela menina.
— Tá chegando, nervosinho — diz Everaldo.
Ergo a cabeça. Ele aponta discretamente pro retrovisor interno. Miro. Vejo uma moto se aproximar, levantando poeira.
A moto se aproxima. Acelera, depois diminui de repente, como se estivesse calculando cada centímetro que nos separa. A poeira sobe e paira no ar. O som do motor ecoa, dominando o descampado.
O sujeito para a uns dez metros da gente.
Não usa capacete, não teme ser reconhecido. É moreno, cabelo descolorido — um loiro quase branco. Pensei que o "nevou" fosse coisa exclusiva do Rio de Janeiro, mas pelo visto, não.
Ele gesticula com a mão, olha apreensivo para todos os lados, como se temesse ser pego de surpresa.
— Eu vou, Varuna. Fica com a sua b*nda quieta. — Everaldo abre a porta.
— Não é arriscado? Esse traficante aí...
— Papaleguas é cria da região. Joguei muita bola com ele.
Putz! Everaldo tinha certa i********e com o aviõezinho. Mas até que ponto, eu não sabia. Ele saiu do veículo e seguiu até o entregador. Fiquei observando tudo pelo retrovisor. Vi os dois trocarem um cumprimento, depois algumas palavras. Everaldo passou o dinheiro e recebeu a encomenda — uma caixa pequena. Papaleguas montou na moto e acelerou. Everaldo retornou.
Não pude deixar de notar a desenvoltura do meu primo. Nem precisava confirmar — Everaldo estava envolvido com o esquema que opera na região.
— Pronto. O seu alívio está garantido. — diz, entrando no carro e fechando a porta.
— Quanto? — indago, estreitando o olhar.
— Quanto o quê?
— Qual o valor que vai receber por essa venda? — sou direto.
Everaldo fica sem graça. Tenta disfarçar, mas é tarde demais.
— Qual é, Varuna! Não fica tirando conclusões precipitadas, p*rra!
— Consegue?
— Sim. Mas eu não tenho nada a ver com tráfico. Só te dei uma moral. Conheço os caras daqui, alguns foram colegas meus, não posso negar. Infelizmente, escolheram outro caminho.
— Everaldo, eu cheguei onde estou agora não foi sendo nenhum i****a. A vida é sua, faça o que quiser. Mas não tente me enganar. Não sou trouxa.
Meu primo fica nervoso. Balança a perna, evita me olhar.
Manobro o carro e deixamos o local para trás.