Joel
A madrugada do morro tem um som próprio. Não é silêncio — nunca é. É a respiração pesada das casas apertadas, o chiado distante de rádios, o eco de passos que ninguém assume. Do alto da laje principal, eu via o labirinto inteiro como um tabuleiro de guerra. Minhas peças estavam espalhadas: dois vigias no beco da birosca do Aderbal, três na curva da Rua 6, um olheiro novo testando o faro na escadaria dos gatos. Eu, no centro, segurando a linha que, se arrebentasse, virava sangue.
Subchefe aprende cedo que lealdade aqui é nó de marinheiro: forte por fora, mas se você puxa do lado certo, desfaz. Meu trabalho era saber onde puxar antes que puxassem de mim. E, naquela manhã, eu já tinha três preocupações debaixo da camisa: a polícia marcando presença na base do morro com duas viaturas frias demais, um fornecedor atrasado com a remessa, e o boato de um traíra vendendo informação por migalha.
— Chefe, o “Pastor” tá atrasado meia hora — disse Rato, o cotovelo marcado por cicatrizes que carregavam nomes e dívidas. — Quer que eu avance a cobrança?
— A cobrança avança sozinha quando a fome chega — respondi, olhos no horizonte. — Por enquanto, segura. Quero saber se ele vem com desculpa ou com medo. Medo fala a verdade.
Rato assentiu e sumiu escada abaixo. Fiquei um momento com o vento cortando o pescoço, sentindo o morro me cheirar como bicho grande. Foi quando a vi.
Ela desceu do ônibus agarrando a mochila como quem abraça a última certeza. Cabelo preso, rosto aberto, olhar que mirava o caminho e, sem querer, mexia com tudo que estava em volta. Aquilo não era de aqui. Ou talvez fosse, mas naquele tipo de beleza que a gente só lembra quando para de correr atrás da sobrevivência. Por segundos, os rádios ficaram mudos na minha cabeça. E isso, pra mim, é perigo. Distração mata subchefe.
— Quem é? — perguntei a mim mesmo, mas os rapazes ouviram como ordem. Um deles, Bacana, inclinou o queixo.
— Deve ser da clínica, Joel. — Ele coçou a lateral do boné. — Cheiro de jaleco.
— Vai lá. Chama.
Bacana atravessou a viela, o chinelo batendo molhado no cimento. Eu fiquei no mesmo lugar, atento. Quando ela virou e me olhou, foi como se a ladeira inteira tivesse parado de inclinar. Senti o morro sair do foco e entrar só aquele par de olhos. O meu erro foi deixar que ela percebesse. A gente do crime aprende a não ser visto; aprende a olhar sem mostrar que olha. Mas naquele momento eu não aprendi nada.
— Qual o seu nome? — perguntei quando ficou perto o suficiente para o perfume dela cortar a ferrugem do ar.
— Beatriz.
O nome ficou em mim como promessa malfeita. Beatriz. Não deveria soar bonito ali, com sirenes guardadas nas frestas e cheiro de pólvora impregnado nas paredes. Mesmo assim, soou. E isso me irritou. Bonito não combina com o que faço.
— Esse lugar não é seguro — falei, medindo a distância entre ela e os meus. Distance salva. Aproximação custa. — Gente de fora costuma se perder por aqui.
— Eu não sou de fora.
O modo como ela pronunciou "eu não sou de fora" me arrancou um sorriso contido. Havia coragem em sua voz, mas também aquela boa ingenuidade, a burrice do coração que a favela consome sem piedade. Senti vontade de alertá-la, de providenciar alguém para acompanhá-la à clínica, quis… mas não quis nada. Um subchefe não deseja, decide. E a decisão era clara: ela entraria, eu observaria, e o dia seguiria seu curso.
Só que o rádio estalou:
— Laje Norte chamando Central. Viatura subindo pela Rua 6 devagar, vidro fechado. Tem placa fria repetida.
Placa fria repetida é carimbo de operação. Engoli o resto da conversa com Beatriz e voltei pro tabuleiro. O morro, ciumento, pediu minha atenção de volta.
— Rato! — gritei, já descendo a escada de dois em dois. — Congela a boca da Rua 6 e manda os meninos abrirem caminho pelos fundos da birosca do Aderbal. Em três minutos, quero todo mundo invisível.
— Invisível? — Ele deu um passo para acompanhar o ritmo. — O Pastor chega onde?
— Troca o ponto de entrega. Andorinha. Se ele reclamar, você lembra pra ele que reclamar é exercício caro.
Quando pisei no beco, a luz mudou. O sol tentava entrar, mas as varais de roupa e as sombras das casas mergulhavam a viela numa penumbra íntima. Crianças pararam de correr. Um cachorro deitou, fingindo dormir. Quem conhece esse lugar sabe: o morro pressente a chuva antes da primeira nuvem. E naquela hora, a nuvem tinha placa repetida.
Encontrei Beatriz. Por um segundo, fomos só nós dois. Quis avisá-la para evitar a Rua 6.Mas a rádio chiou de novo:
— Central, atenção: duas sombras no carona. Mirando alto. Pode ser que subam só pra marcar território.
— Território é o que eu tenho em mãos — rosnei de volta, sem apertar o transmissor. — Eles só alugam por turno.
Beatriz passou. Eu deixei. O morro puxou o meu braço como corrente.
A viatura subiu devagar, parando na esquina torta com a santa na parede. Dois policiais desceram; um olhava o alto, o outro fingia distração, enquanto eu contava nossas respirações.No terceiro suspiro, o carona levantou o que não devia. Não atirou — ainda — mas apontar aqui é avanço.
— Ninguém dispara — falei baixo no rádio. — Ninguém. A gente só some.
Sumir também é arma. Quando o adversário mira e só encontra vácuo, o dedo coça sem coragem. Fiz um gesto, e os meninos derreteram nas casas. Fiquei sozinho no meio da rua como sombra que não aprende a obedecer.
O policial e eu nos reconhecemos, uma velha dança de caçador e caça. Ele sinalizou para eu me aproximar, recusei. Uma conversa silenciosa de veteranos. Eles tentaram, desistiram. Não era o dia para acordos.
Quando a poeira da viatura assentou, eu percebi que estava com a mão fechada num punho que doía. Abri e fechava, abrindo e fechando, como se o corpo quisesse me lembrar de que eu ainda sangrava humano.
Foi aí que Rato voltou correndo, ofegante, com a língua seca de recado.
— Chefe, o Pastor blefou. Disse que atrasou porque… — ele girou os olhos procurando criatividade — porque tinha missa.
— Quem mente com santo mente com qualquer coisa. — Respirei. — Cobra adiantado. E muda a palavra-passe hoje. Ninguém entra com “amém” em lugar nenhum.
— E a menina? — Rato perguntou, tentando parecer distraído.
Fiz cara de que não sabia de quem ele falava. Ele insistiu.
— A da mochila. Você encarou como se ela fosse polícia.
— Se fosse polícia, eu não encarava — cortei. — Eu já estava tirando ela do caminho.
Meia-verdade. Vou encarar, não por desconfiança, mas por aquele sentimento inominável que o morro tenta sufocar, a vida que insiste mesmo quando a morte é escolhida.
***
Mais tarde, a remessa chegou pela rota dos fundos. Enfileirei e conferi as caixas na laje. O trabalho de subchefe é chato: contar, pesar, ouvir, ameaçar, abraçar. No final, anoto o que ninguém pode saber e finjo dormir.
— Faltando quatro unidades — o moleque do depósito avisou. — O Pastor disse que completa semana que vem.
— Sem semana que vem. — As palavras saíram do meu peito como ferro. — Ou ele completa até amanhã, ou a missa dele fica sem dízimo. E você, guarda isso direito. Se vazar, não é o Pastor que eu cobro primeiro.
À noite, o morro acendeu, revelando a clínica a duas curvas. Beatriz saiu exausta, mochila no ombro. Questionei-me sobre o dia dela ali, sobre gritos, toques de pacientes ou se havia chorado, como muitos fazem ao conhecer o lugar. É absurdo o que uma imagem distante provoca na mente.
— Joel — Bacana me chamou baixo, respeitando o tom de quem pensa. — Quer que alguém acompanhe a moça até o ponto?
Eu demorei para responder, como se o tempo fosse uma corda que eu segurava pelos dedos. Por fim, neguei com a cabeça.
— Se a gente acompanha, ela vira alvo. Se a gente não acompanha, ela aprende o caminho. O morro ensina rápido.
— E se o morro for c***l?
— O morro é sempre c***l. — E eu também, quando preciso.
Bacana calou. Eu fiquei ali, encostado no parapeito, vendo Beatriz desaparecer pela curva, e me perguntando em que momento a minha vida, tão organizada na frieza, resolveu abrir espaço pra uma brecha. Brecha vira f***a. f***a vira queda.
— Chefe — Rato subiu outra vez, trazendo um envelope pardo, sem remetente. — Deixaram na escada dos gatos.
Abri. Foto tremida de uma esquina do morro. Escrito atrás: “Quem puxou o gatilho não era meu.” Assinatura nenhuma. Cheiro de traição que não escolhe autor.
Guardei a foto no bolso. Ali, no mesmo lugar onde ainda vibrava o eco de um nome: Beatriz. Talvez por isso o aviso do inimigo tenha batido diferente. Quando você encontra algo que pode perder, o perigo muda de sabor — fica mais amargo e mais nítido.
— Rato, dobra a vigilância no cais. — Minha voz voltou à posição de comando. — E manda avisar o Pastor: amanhã, às seis, ele vem me ver. Não mandar recado, não mandar assessor. Ele. Ou eu vou à casa dele dar a bênção.
— Copiado.
Mais uma vez sozinho na laje, com o rádio em silêncio. Subchefe e com um nó na garganta, encostei a testa no concreto. Percebi que, apesar de tudo que aprendi para sobreviver, nunca me ensinaram o que fazer quando uma mulher leva um pedaço de mim.
Eu sou Joel, o subchefe do Complexo. Neste lugar, as armas, o medo e a estratégia dominam. No entanto, naquela noite, entre vielas e promessas que jamais fiz, percebi que havia iniciado uma batalha que transcendia meus limites: uma guerra interna. E, ao contrário das outras, eu ainda não sabia como vencê-la.