Capítulo 5 – Um Beijo no Escuro

1502 Palavras
Beatriz A clínica fechou mais tarde do que o normal. O corredor cheirava a álcool e café frio, e a cidade lá fora parecia prender a respiração. Eu recolhi as bandejas, contei os soros, bati o cadeado do depósito. Nara já tinha descido a ladeira, prometendo mandar mensagem quando chegasse. Fiquei mais um minuto olhando a porta, indecisa entre a prudência e a coragem que eu insistia em chamar de rotina. Foi quando ouvi: três estouros seguidos, secos, em linha — o aviso que Joel me ensinou a reconhecer. Meu corpo reagiu antes da mente. Apaguei as luzes da recepção e me encostei ao balcão, o coração no pescoço. O morro mudou de cor; os rádios ganharam urgência. Mais dois estampidos responderam de longe, como trovões que se reconhecem. — Escada dos gatos — sussurrei para mim mesma, e girei a tranca. Abri a porta num vão estreito. A rua, de repente, apagou. Não sei se foi o transformador queimando ou alguém cortando a energia — só sei que a escuridão desceu inteira, espessa, como se o morro tivesse pestanejar. Dei dois passos e uma mão firme cobriu a minha boca. O susto congelou meus ossos; o perfume amadeirado me devolveu o ar. — Calma — a voz dele veio no meu ouvido, muito perto. — É só eu. Joel. O calor do corpo colado nas minhas costas me ancorou. Ele tirou a mão devagar, sem pressa, como quem pede silêncio com os dedos. — Vem — disse, baixo. — A escada fica melhor por trás da mercearia. Passo curto. Não me perde. Segui, quase sem ver, guiada pelo som da bota dele roçando no cimento. O morro falava em sussurros: portões batendo devagar, rádios chiando códigos, um cachorro choramingando. No fim da viela, dois fachos azuis de sirene riscaram a parede e desapareceram. Joel me puxou para o vão entre duas casas, tão estreito que a roupa do varal encostou no meu rosto. Fiquei entre o tijolo frio e o peito dele, a respiração dele batendo no meu pescoço como metrônomo. — Fica — ele ordenou, a boca a dois centímetros da minha orelha. — Se eles pararem, a gente é sombra. Os passos vieram, três homens passando em fila, o metal roçando na coxa. Um deles disse “limpa” e riu. O riso ficou pendurado na esquina. Só quando os sons se afastaram, Joel afrouxou a mão na minha cintura. Percebi então que ele me segurava, firme, como se tivesse medo de me perder de vista na escuridão. — Você tá tremendo — ele murmurou. — Tô viva — respondi, tentando rir do jeito que me restava. — Serve? O silêncio dele confirmou. O apagão seguiu como noite sem hora. Joel me conduziu por um corredor lateral, subimos dois lances de escada, cortamos um terraço com vasos de manjericão, até entrar num quartinho sob a laje de uma casa, porta de madeira m*l alinhada. — Seguro — disse, encostando o ombro e trancando por dentro com um ferrolho torto. — Só uns minutos. O ambiente tinha cheiro de poeira e hortelã. Uma fresta na janela desenhava um fio de prata no chão. Foi nesse fio que eu vi: o braço dele, sujo de algo escuro. — Você tá… — estendi a mão. — Ferido? — Coisa leve — ele minimizou. Mas não desviou quando toquei. A manga preta colava na pele. Puxei devagar. Era um risco, superfície raspada, como beijo áspero de cimento. A pele ao redor ardia quente. Peggy, a enfermeira prática dentro de mim, tomou o lugar da Beatriz que tremia. — Senta. — Apontei uma caixa de plástico virada de ponta-cabeça. — Eu vou limpar. — Não precisa— tentou. — Precisa, sim — cortei, devolvendo as palavras dele de outro dia. Ele obedeceu. Achei álcool e gaze na minha mochila, mãos finalmente firmes no que eu sabia fazer. O primeiro toque fez o músculo dele contrair. Joel suportou sem som, apenas os olhos escurecendo. — Arde? — Arder é pouco. — Um canto de sorriso. — Mas eu já ardi pior. — Fica quieto — pedi, mais por mim do que por ele. Eu sentia tudo: o calor que ele emanava, o cheiro de pólvora misturado a alguma coisa limpa, talvez sabonete barato; o som do coração dele, que parecia responder ao meu. Na penumbra, a linha do rosto dele tinha quinas e promessas. Ele me observava como se o mundo estivesse do lado de fora da porta e nós fôssemos um segredo improvisado. — Você veio por mim? — perguntei, sem planejar. — Vim pelo que é meu trabalho — respondeu, e baixou os olhos. — E pelo que … me importa. A palavra “importa” ficou entre nós como um fósforo aceso. Eu poderia ter recuado. Poderia ter feito uma piada, quebrado o feitiço. Em vez disso, apoiei a gaze limpa, e a ponta dos meus dedos encostou na pele dele, mais do que o necessário. Joel inspirou curto, como quem segura a própria violência para que ela não vire outra coisa. — Beatriz… — O meu nome saiu dele devagar, como se atravessasse um terreno minado. — Isso aqui é lugar errado. — Eu sei — respondi. — Mas errado não impede verdade. Ele se levantou num gesto que foi metade defesa, metade rendição. Ficou tão perto que eu contei as pestanas. O mundo reduziu ao barulho do nosso ar. — Se eu encostar, eu não paro fácil — ele avisou, sincero e perigoso. — Eu não sou homem de meio-fio. — Quem disse que eu quero fácil? — As palavras saíram de mim antes do juízo. Não houve avanço brusco. Houve um passo pequeno. Houve a respiração dele encostando na minha, a mão que subiu até a minha nuca como quem pega algo que pode cair, o cuidado c***l de um homem acostumado a quebrar, tentando não quebrar. O beijo aconteceu como queda inevitável. Escuro por fora, fogo por dentro. A boca dele tinha gosto de hortelã e pólvora. Foi profundo rápido, como tudo o que não pode ser feito duas vezes. Minhas mãos foram ao pescoço dele, depois aos cabelos, e senti o corpo dele responder — firme, sólido, um refúgio que não existe no mapa. Ele me prensou de leve contra a parede, o suficiente para eu lembrar que tinha pele. A mão dele na minha cintura era comando e pergunta. Eu disse “sim” sem palavras, inclinando o quadril num gesto mínimo. — Beatriz… — o nome saiu em roçar de voz. — Não para — pedi, e me surpreendi com o próprio timbre. O beijo ficou mais quente, mais urgente, e ainda assim sem pressa feia. O mundo podia estar caindo lá fora; aqui dentro, a queda era outra. Eu senti a camisa dele áspera na palma da minha mão, senti a linha dos ombros, a força contida. Quando ele desceu a boca para o meu queixo e depois para a curva do pescoço, perdi um som que não costumo perder. Bati a mão na madeira para lembrar que eu ainda era eu. Ele parou um centímetro, a testa encostada na minha. — Eu te disse: fogo aqui não esquenta. — A respiração dele entrou e saiu de mim. — Queima. — Então queima comigo — respondi, a voz rouca de tanto silêncio guardado. Ele mordeu um sorriso que eu não conhecia, bonito e r**m, e voltou à minha boca — breve, mais uma vez, como gole que se guarda. Depois recuou o suficiente para me ver. — Agora não — disse, a contragosto. — Lá fora ainda tem gente errada procurando mapa. E eu não vou te dar de bandeja pra ninguém. — Eu não sou bandeja — retruquei, sem raiva. — Eu escolho. — Então escolhe viver. — Ele pegou minha mão por um segundo. — Eu te levo até metade do caminho. O resto, você faz sozinha, como sempre fez. Do lado de fora, passos. Uma voz de homem xingou a escuridão. Outra respondeu. Joel encostou o dedo na minha boca: silêncio. Ficamos com o pulso na ponta dos dedos, esperando. Os passos desistiram. A noite pareceu aceitar nosso pacto. Quando abrimos a porta, a rua tinha voltado a ter contornos azuis de emergência distante. Descemos as escadas como se dançássemos um ritmo inventado. Na esquina da mercearia, ele parou. — Daqui eu vejo você seguir — disse. — Escada dos gatos, lembra? — Lembro. — Toquei a manga dele, onde a gaze se escondia. — E lembro do resto também. — Qual resto? — Que eu não tô recuando. Os olhos dele fizeram a noite parecer mais escura. Ele inclinou, roubou um beijo leve — uma assinatura — e me virou na direção certa. Caminhei. Senti o morro me assistir, curioso. A cada passo, o gosto dele ficava na minha boca como uma decisão. Eu sabia: estava envolvida demais. Não havia mais degraus de volta. Só o fio esticado por cima do abismo — e o meu corpo, enfim, escolhendo atravessar.
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