Luísa
- Adorei o look ! Você tá um A - RRA - SO! - A Manu sempre tenta curar as minhas amarguras com elogios!
Em parte ajuda, em parte piora.
Eu nunca me sinto bem, nunca vejo a beleza que ela diz que eu tenho, não quando parte do meu pescoço carrega uma marca horrenda, de um passado que eu não lembro.
- Thanks, amiga ! - Agradeço no automático e estamos prontas para subir o morro em direção ao baile.
Segundo os médicos, eu tenho entre 23 e 24 anos, mas no documento que comprei com 18 anos, tenho 24 anos completos, e esse mesmo documento diz que faço 25 anos em 1 semana. 2 de novembro.
Foi a primeira decisão que tomei por mim mesma, depois de sair do orfanato.
2 de novembro foi o dia em que acordei no hospital, com dor demais, mole demais e cansada demais.
Sem lembrar de nada, além do meu próprio nome.
Luísa.
Veio tão fácil quando me foi perguntado que eu me surpreendi de ser a única coisa que eu lembrava.
Além do eco do nome, todo o resto era um vazio escuro dentro da minha cabeça.
Os médicos me contaram que eu cheguei ali fazia quase dois dias, e estava apagada desde então. Fui reanimada muitas vezes, e eles achavam que eu não sobreviveria.
Fiquei um mês inteiro no hospital, e nenhuma alma veio me procurar. A polícia disse que ninguém fez queixa de desaparecimento de menina nenhuma com as minhas características, e que Luísa era um nome muito comum, e que seria difícil fazer uma busca mesmo se eu lembrasse o meu sobrenome.
A agonia das dores e do silêncio da minha memória durante o mês no hospital, logo se tornou terror, quando eu tive alta. Segundo as análises médicas, eu era menor de idade, algo entre 15 e 16 anos, e sem memória ou alguém que sabia quem eu era, eu caí no sistema de adoção.
O que eu não sabia? O sistema de adoção brasileiro é uma vergonha, principalmente se você não é um bebê!
- Lu, tá tudo bem? - A Manu me tira dos meus pensamentos com um olhar preocupado.
- Sim … Eu tava só pensando. - A expressão dela é quase de choque, como se eu fosse incapaz de fazer algo normal, como pensar.
- Tava pensando na queimadura, né?
Ah sim, a marca horrenda no meu pescoço, que começava embaixo da minha orelha direita e terminava quase no ombro. Os médicos disseram que foi causado por algum ferro quente que rolou pela minha pele. A dor deveria ter sido inesquecível no momento que o ferro tocou a minha pele, e ainda assim, eu esqueci. A dor que conheci, foi depois que acordei, e levou quase um ano inteiro até não doer e se tornar apenas um leve incômodo.
- Ela está muito exposta? - Eu perguntei, encarando o espelho e quase ouvi a Manu suspirar.
- Não! Nada exposta! O seu cabelo cobre completamente! - Ela argumentou, e tinha razão.
O meu vestido era de alça, tubinho e deixava os meus braços à mostra, mas o cabelo preto e liso que ia até a minha cintura, disfarçaram a marca no meu pescoço. Respiro aliviada.
- Vamos, gata? - Ela quase implora e eu sei que ela está com medo de que eu cancele os nossos planos, por causa da minha roupa. Não seria a primeira vez!
A Manu é o mais próximo que tenho de uma irmã, e quando a mãe dela me acolheu, no dia que fui libertada do orfanato, nós duas ficamos amigas imediatamente.
A minha paixão pela dança foi descoberta pouco depois, e agora, fiz disso o meu sustento.
- Vamos. - Decido que a cicatriz logo será esquecida, depois que eu entregar o meu corpo para a música. Os meus planos eram dançar até o dia nascer, como todas as sextas dos últimos anos.
O baile do Alemão era o mais cheio e badalado de todo o Rio de Janeiro, e isso era um presente. De alguma forma, ser mais uma na multidão apagava a dor de não ser nada para ninguém todos os dias.
Deixamos a minha biz algumas ruas mais pra baixo da avenida que concentra o maior número de pessoas e fomos a pé, e enquanto eu caminhava deixei o batidão controlar os meus sentidos.
O baile se abriu à nossa frente e eu já estava me movendo, deixando as batidas controlarem os meus movimentos e esvaziarem a minha mente. Neste momento eu sentia alívio e sorria quase o tempo todo, me sentindo alguém, quase que completamente. Rebolar, mover os quadris e balançar os braços, apenas por diversão e präzer, era uma das poucas coisas que realmente me faziam feliz, então eu me entreguei, e estava realmente determinada a ficar ali até a exaustão. Os meus planos eram simples, mas não demorou para serem interrompidos.
- Vem garota! - Um homem que eu nunca vi ordenou, perto do meu ouvido, e eu dei dois passos para trás, me afastando rápido. Ele era um cria comum da favela e olhou de mim para a Manu, com uma expressão quase cansada. - As duas, venham agora! - Ela segurou o meu braço com força, pressentindo o mesmo que eu. Aquele cara era do tráfico, trabalhava para o Rei do morro, e isso significava que estávamos em perigo. A arma pendurada no corpo do homem era um sinal claro.
- Onde você quer nos levar? - Perguntei, puxando a Manu para trás.
A tia Rosa nunca iria me perdoar se alguma coisa acontecesse com ela.
- Você foi convocada garota. O Rei do morro quer você!