Capítulo 3

1034 Palavras
Capítulo 3 ANALU NARRANDO Minha vida sempre foi tranquila demais. Daquelas que muita gente olha de fora e acha perfeita, sabe? Família de classe média, casa boa, escola particular, depois faculdade. Pai e mãe sempre presentes, cobrando, cuidando, protegendo. Tudo no lugar. Tudo certo. E, talvez por isso mesmo, às vezes eu sinto que falta alguma coisa. Como se eu tivesse nascido dentro de uma bolha onde nada acontece de verdade. Onde o máximo de adrenalina é discutir com meu pai porque cheguei quinze minutos depois do horário. Não me entenda m*l, eu amo meus pais. Meu pai é advogado, um homem sério, desses que vivem de terno mesmo no calor de quarenta graus do Rio. Minha mãe é professora de literatura, vive recitando trechos de livros na mesa do café da manhã. Eles são ótimos, cuidaram de mim e sempre me deram de tudo. Mas, ao mesmo tempo, parece que me blindaram demais do mundo. Eu cresci ouvindo frases como: “Não se mistura com aquele tipo de gente, Analu.” “Você não precisa sair desse bairro pra nada.” “Amigos, escolha a dedo. O mundo é perigoso.” Perigoso. Essa é a palavra favorita do meu pai. Tudo, absolutamente tudo, é perigoso. Se chove muito, é perigoso. Se ando sozinha, é perigoso. Se quero viajar, é perigoso. Parece que ele enxerga perigo até dentro da sala de estar. E, talvez, por tanto ouvir isso, eu acabei criando uma vontade absurda de saber o que tem além. O que existe fora da minha redoma. É aí que entra a Geiza. Ela é minha melhor amiga desde o colégio, mas completamente diferente de mim. Onde eu sou cautelosa, ela é impulsiva. Onde eu penso duas vezes, ela já tá fazendo sem pensar nenhuma vez. Enquanto eu cresci no conforto do asfalto, ela nunca teve tanta estrutura assim. Mora com a mãe, já trabalhou de tudo um pouco, e não tem medo de rodar pela cidade sozinha de madrugada. Geiza é aventura em pessoa. E eu sou sempre a que vai atrás dela, meio sem jeito, mas com aquele frio na barriga que eu secretamente adoro. Nessa tarde, estávamos deitadas na minha cama, ouvindo música no celular, quando ela solta, do nada: — Hoje tem baile no Alemão. Vamos? Eu me virei na hora, arregalando os olhos. — Tá maluca? Baile no Alemão? Ela riu, como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Qual o problema? Você fala como se fosse entrar no inferno. É só um baile, música alta, gente dançando, cerveja barata… diversão. Balanço a cabeça, nervosa. — Diversão é shopping, barzinho, cinema. Baile de comunidade não é o meu lugar, Geiza. — O seu lugar é onde você quiser que seja, Analu. — Ela rebate, com aquele tom de quem sempre vence as discussões. — Você vive presa nesse mundinho controlado pelos seus pais. Tá na hora de viver um pouco. As palavras dela batem em mim como um soco. Porque, no fundo, eu sei que ela tem razão. Eu sou a menina certinha, que nunca ousou atravessar a linha. E talvez fosse exatamente isso que me deixava tão entediada. — Só dessa vez — ela insiste, sentando na cama e me encarando com aquele brilho travesso nos olhos. — Você vai comigo, eu prometo que nada vai acontecer. Eu suspiro. Meus pais iam surtar se soubessem. Minha mãe provavelmente recitaria meia dúzia de versos de Machado de Assis sobre juventude perdida, enquanto meu pai ia ameaçar colocar grade na janela do meu quarto. Mas a ideia já tinha me pegado. O coração batia mais rápido só de imaginar. O som, a multidão, as luzes, aquele mundo completamente diferente do meu. Uma parte de mim dizia: “Não faz isso, Analu. Fica em casa, segura seu livro e sua rotina.” Outra parte gritava: “Vai. Se joga. Sente o gosto da vida de verdade.” E, pela primeira vez, decidi ouvir a segunda voz. — Tá bom — falo, com a voz baixa. — Mas só dessa vez. Geiza dá um grito, me puxando num abraço apertado. — Eu sabia! Sabia que você ia topar. Vai ser a melhor noite da sua vida, amiga. Eu rio, nervosa, tentando acreditar nas palavras dela. Mais tarde, trancada no meu quarto, abro o guarda-roupa e encaro as roupas. Minhas peças são todas… normais. Jeans, blusas básicas, vestidos floridos que minha mãe adora comprar pra mim. Nada combina com a ideia de baile no morro. Pego o celular e mando mensagem pra Geiza: 📲 Eu "Que roupa eu uso?" A resposta vem rápida: 📲Geiza "Short curto, top ou cropped, e esquece salto. Vai de tênis." Olho pro espelho e tento me imaginar assim. Nunca fui de mostrar demais, sempre segui a linha do “comportada”. Mas, de repente, a vontade de me sentir diferente fala mais alto. Talvez, por uma noite, eu possa ser outra versão de mim mesma. Na sala, ouço a voz dos meus pais. Meu pai, como sempre, discutindo sobre política com a TV. Minha mãe corrigindo provas dos alunos. Eles não fazem ideia dos planos que eu estou armando. E é estranho, porque parte de mim se sente culpada, como se estivesse traindo a confiança deles. Mas, ao mesmo tempo, outra parte se sente livre. Uma sensação de liberdade que eu nunca tinha experimentado. Talvez seja isso que eu esteja buscando: algo que me faça sentir viva de verdade. Quando a noite cai e meus pais já foram se deitar, Geiza aparece na porta da minha casa, radiante. O cabelo solto, maquiagem marcada, e um sorriso de quem já sabe que vai aprontar. — Vamos? — ela pergunta, ansiosa. Eu respiro fundo, pego minha bolsa pequena e respondo: — Vamos. Fecho a porta atrás de mim sem fazer barulho, como se o silêncio fosse me proteger da bronca que eu receberia se meus pais descobrissem. Enquanto descemos a rua em direção ao ponto de encontro do carro de aplicativo, sinto meu coração disparar. Não sei se é medo, empolgação ou os dois juntos. Mas eu sei de uma coisa: a minha vida inteira foi previsível até aqui. E hoje à noite… nada vai ser previsível.
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