Capítulo 4 — Medo Crescente

1796 Palavras
SARA Eu nunca achei que um jantar em família pudesse me fazer sentir como se o chão tivesse sumido debaixo dos meus pés. Mas foi exatamente isso que rolou naquela noite. Eu tava sentada na mesa da cozinha, mexendo no purê de batata com o garfo, sem fome nenhuma, enquanto o rádio, que milagrosamente tava ligado de novo, tocava uma música sertaneja qualquer. A Pri tava de pé, servindo o frango assado, com aquele sorriso dela que parecia colado na cara, e o meu pai tava ali, com a cara meio cansada, mas com um brilho diferente nos olhos. O Fábio, claro, tava esparramado na cadeira, com uma cerveja na mão, me olhando de canto como se eu fosse um bicho no zoológico. Eu tentava ignorar, focar no prato, mas o peso do olhar dele era como uma mão apertando meu pescoço. Aí o pai pigarreou, tipo aqueles momentos que você sabe que vem uma notícia grande. Ele segurou a mão da Pri, coisa que ele não fazia desde sei lá quando, e falou: — Pessoal, tenho uma novidade. Na oficina, me escolheram pra uma premiação. Um reconhecimento pelo meu trabalho nos últimos anos. E o prêmio... é uma viagem. Internacional. Uma semana em Cancún, tudo pago. Só pra casais. O mundo girou. Não é exagero, juro. Senti como se a cadeira tivesse virado de ponta-cabeça e eu tivesse caído num buraco. Meu garfo parou no ar, com um pedaço de purê pingando, e meu coração disparou tão forte que parecia que ia explodir. Cancún. Uma semana. Só pra casais. Isso significava uma coisa, uma coisa só: eu ia ficar sozinha em casa. Sozinha. Com o Fábio. A Pri deu um gritinho de animação, jogando os braços pro alto como se tivesse ganhado na loteria. — Meu Deus, amor, que incrível! Cancún! Sol, praia, drinks! — Ela riu, puxando o pai pra um abraço. Ele sorriu, meio sem jeito, mas dava pra ver que tava orgulhoso. Eu queria dizer alguma coisa. Qualquer coisa. “Não vai, pai. Não me deixa aqui. Não com ele.” Mas as palavras travaram na garganta, como se alguém tivesse colado minha boca. Olhei pro prato, pro purê que tava ficando frio, e forcei um sorriso amarelo, daqueles que doem o rosto de tão falsos. Minha mão tremia tanto que o garfo bateu no prato, fazendo um barulhinho que ninguém pareceu notar. Ninguém, menos o Fábio. Ele tava me encarando, com aquele sorriso torto que me dava vontade de sair correndo. Os olhos dele pareciam dizer: “Eu sei o que tu tá pensando, guria. E eu também tô pensando.” O pai continuou falando, todo empolgado, algo sobre o hotel cinco estrelas, passeios de barco, essas coisas. A Pri interrompia com “nossa, que luxo” e “tô sonhando”. Eu não ouvia direito. Minha cabeça tava gritando, um zumbido alto que abafava tudo. Sozinha com o Fábio. Uma semana. Sete dias. Sete noites. Meu estômago embrulhou, e o pouco que eu tinha comido ameaçou voltar. — Pai... — Minha voz saiu tão baixa que m*l dava pra ouvir. Ele olhou pra mim, ainda com o sorriso no rosto. — E eu? Como... como que fica? Ele hesitou, coçou a nuca, aquele jeito dele quando não sabe o que dizer. — Ah, Sara, tu sabe como é. É só pra casais. Se pudesse, eu te levava junto, guria. Mas tu fica bem aqui, né? A casa é grande, tem comida, e o Fábio tá aqui pra ajudar com qualquer coisa. Ajuda. Ajudar. A palavra me acertou como um soco. Olhei pro Fábio sem querer, e ele tava lá, encostado na cadeira, tomando um gole de cerveja, os olhos grudados em mim. Ele não disse nada, mas o jeito que ele lambeu os lábios, bem devagar, fez meu sangue gelar. Eu queria gritar, contar tudo: os olhares, os comentários, a forma como ele me fazia sentir como uma presa. Mas como? Como eu explicava algo que ninguém via? Que a Pri dizia que era “exagero”? Que o pai ignorava como se eu fosse invisível? — Tô tão feliz, Sara! — A Pri cortou o silêncio, segurando minha mão por cima da mesa. O toque dela era quente, mas não confortava. — Vai ser bom pro teu pai, ele merece isso. E tu vai ficar de boa, né? O Fábio é de confiança. De confiança. Eu quase ri, mas o som que saiu foi mais um engasgo. Tirei a mão da dela, fingindo arrumar o cabelo, e murmurei um “claro” que nem parecia minha voz. O jantar seguiu, com a Pri planejando biquínis e o pai falando do passaporte. Eu só empurrava a comida no prato, o estômago fechado, a cabeça girando. Naquela noite, não dormi. Fiquei deitada, olhando pro teto do quarto, com a cadeira encostada na maçaneta da porta. O caderno tava na minha mão, mas eu não conseguia escrever. As palavras não vinham. Só o medo. Um medo que parecia vivo, que crescia no peito, apertava a garganta, fazia minhas mãos suarem. Sete dias sozinha com ele. Sete noites com ele andando pelos corredores, com aquele sorriso, aqueles olhos que pareciam atravessar minha pele. Nos dias seguintes, tentei pensar numa saída. Qualquer coisa. Falei com a Bia no colégio, tentando jogar no ar, sem contar tudo. — Bia, e se... tipo, tu já ficou sozinha em casa com alguém que te deixa desconfortável? Ela tava comendo um salgadinho, sentada no banco do pátio, e franziu a testa. — Tipo quem? Teu pai? Ou a Pri? — Não, não... outra pessoa. Um... parente. Ela deu de ombros, limpando as migalhas da mão. — Sei lá, guria. Se for estranho, fala com alguém. Ou vem pra minha casa. Minha mãe não liga. Eu quis contar. Quis dizer que não era só “estranho”, que era perigoso, que eu sentia ele me vigiando, que ouvia os passos dele no corredor à noite. Mas a Bia tava rindo de uma piada que a Micaela contou, e o momento passou. No fundo, eu sabia que ela não ia entender. Ninguém entendia. Era como se eu tivesse gritando num quarto à prova de som. Tentei falar com o pai também. Um dia, ele tava na garagem, mexendo no carro, com aquela cara de quem tá perdido nos próprios pensamentos. Me aproximei, segurando o caderno contra o peito como se fosse um escudo. — Pai, posso te perguntar uma coisa? Ele grunhiu um “claro”, sem tirar os olhos do motor. — Essa viagem... tu acha que eu podia ir junto? Ou... sei lá, ficar na casa da Bia enquanto vocês tão fora? Ele parou, limpou as mãos no pano sujo e me olhou, confuso. — Na casa da Bia? Por quê, Sara? Tu não tá bem aqui? O Fábio vai tá por perto, ele cuida da casa. Cuida da casa. Cuida de mim. As palavras me acertaram como facas. Eu queria contar tudo, mas o jeito que ele me olhou, meio impaciente, fez meu estômago afundar. Ele não ia acreditar. Ou pior, ia achar que eu tava inventando, como a Pri disse. Então só balancei a cabeça, murmurei um “tá bom” e saí dali antes que as lágrimas caíssem. Os dias foram passando, e cada um parecia mais curto, como se o tempo tivesse pressa de me jogar naquele pesadelo. Eu parei de comer direito. O café da manhã era só uma mordida no pão, o almoço eu empurrava pro lado, e no jantar eu inventava desculpas pra comer no quarto. Minha barriga roncava, mas o medo era maior que a fome. À noite, eu deitava com os olhos abertos, escutando cada rangido da casa. O som do vento na janela parecia passos. O barulho da geladeira parecia a respiração dele. Eu tava ficando louca, ou pelo menos era assim que eu me sentia. O Fábio, claro, não ajudava. Ele tava mais presente do que nunca. Passava por mim no corredor, roçando o ombro de propósito, com aquele sorriso que parecia dizer “eu sei que tu tá com medo”. Uma vez, eu tava lavando louça, e ele se encostou no balcão, bem perto, mexendo no celular. Não disse nada, mas o cheiro de cigarro e cerveja dele invadiu meu espaço, e eu quase deixei o prato cair. Ele riu, baixo, como se soubesse exatamente o que tava fazendo. Eu não deixava de anotar mais coisas no caderno. “Dia 10: Ele passou por mim no corredor, roçou o braço. Sorriu.” “Dia 12: Ficou me olhando enquanto eu lavava louça. Não falou nada, mas tava tão perto que eu senti o cheiro dele.” Escrever me dava uma sensação de controle, mesmo que pequena. Como se, anotando, eu pudesse provar que não era coisa da minha cabeça. Que o perigo era real. Ontem, a Pri me chamou pra ajudar a arrumar a mala dela. Ela tava no quarto, dobrando roupas coloridas, toda animada com a viagem. Eu sentei na cama, segurando uma blusa que ela me passou, e tentei de novo. — Pri, tu acha mesmo que o Fábio precisa ficar aqui? Tipo, ele não tem outro lugar pra ir? Ela parou, com uma saia na mão, e me olhou com aquela expressão de quem tá cansada de explicar. — Sara, já falamos disso. Ele tá tentando se ajeitar. É meu irmão, eu não vou deixar ele na rua. Que implicância chata, guria. Para de inventar coisa. Inventar. Aquela palavra me cortou. Eu quis gritar que não era invenção, que eu via o jeito que ele me olhava, que ele falava coisas que me davam pesadelos. Mas ela já tinha voltado pras roupas, falando de chapéus de praia e protetor solar. Eu saí do quarto sem dizer mais nada, com o coração apertado. Agora, tô aqui, trancada no meu quarto, com o caderno na mão. A viagem é em três dias. Três dias, e eu vou ficar sozinha com ele. O medo tá tão grande que parece que vai me engolir. Não durmo direito, não como, não consigo nem rir com a Bia e a Micaela no colégio. Tudo que eu sinto é esse frio na barriga, essa certeza de que algo terrível tá vindo. Como se o Fábio fosse uma bomba-relógio, e o tempo dele tá acabando. Escrevo no caderno, com a caneta tremendo: “Dia 14: Eles vão embora em três dias. Ele vai ficar. Eu não sei o que fazer.” Fecho o caderno e abraço ele contra o peito, como se fosse me proteger. Mas não protege. Nada protege. E eu sei, no fundo, que se ninguém me escutar, vou ter que encontrar um jeito de lutar sozinha. Só não sei como. Ainda não.
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