O espectro e suas artes. - setembro de 2021.

2129 Palavras
Setembro de 2021. A família Esteves estava aos poucos colocando a Fazenda Bella Flor de volta à sua antiga forma. Bella Flor, em seus anos dourados, era bonita, formosa e cobiçada por muitos, mas era o tesouro de Varuna. O rapaz rejeitou muitas ofertas de valores estratosféricos, não porque o dinheiro não lhe agradasse, mas pressupõe-se que existam outros valores além dos que recebem os cifrões; existem valores que estão agregados na alma e no coração, e que nenhum ouro no mundo pode pagar. O espectro agradava-se de como os intrusos estavam cuidando da sua propriedade ruralista, porém não os suportava. Odiava aquele calor familiar, o elo paternal entre progenitor e seus rebentos. Era uma inveja que despontava do fundo de seu corpo astral, uma coisinha que começou como uma cócega e que passou a devorá-lo feito cupim a madeira. Evaristo, sempre muito solícito, pai amoroso e dedicado, nunca repudiava um momento, qualquer que fosse, para desfrutar da companhia de seus pequenos. O homem de boa fé, tinha, como ainda tem, prazer nisso; de poder escutar, de poder orientar os seus descendentes, sua semente perpetuada na terra. Todavia, isso provocava um efeito colateral em Varuna, que nunca tivera semelhante atitude abnegada por parte do seu progenitor, quando o assunto era ele . O senhor Esteves era, e se assim posso dizer, ainda é, um homem altruísta, cheio de ternura pela família que formara com Alda. Certo dia, num momento de fúria do espectro por presenciar pai e filha - no caso, a menina em questão era Camila - num desses momentos cheios de atenção, ambos dançando, bailando; ouviu Evaristo narrar uma ínfima passagem da sua vida pregressa, época pueril, para a menina desmilinguida; onde sua querida e adorada mãe lhe ensinara a valsar. Dona Livramento dizia: "Um bom cavalheiro é aquele que não esmaga os dedos das damas na hora da dança." Ao ouvir as palavras proferidas por seus pai, tais dizeres arrancou gargalhadas da pequena Camila; gargalhadas verdadeiras, sinceras, daquelas que fazem os olhos verterem lágrimas. Foi o primeiro susto que Varuna sofreu. Ele se encontrou deveras atordoado, sua jactância jazia fora de sua consciência, talvez sopitada em alguma parte desse corpo imaterial que ainda tenta adaptar-se. Ela resplandeceu, banhada por algo especial, algo que ele não conseguia identificar. Antes muito feia e desprovida de graça, agora dona de rara beleza, uma que poucos podem observar ou têm a chance. Lembrou-se dos jantares regados a luxo e pratos finos, bebidas caríssimas e os desfiles das damas, querendo exibir seus modelos de vestidos, muitos exclusivos, e as joias incontáveis. Varuna ergueu-se e aproximou-se do ser pequeno, queria ver os olhos da menina, saber se conseguia ler tamanha verdade, assim conseguiu e nesse momento foi cativado. Não existia nada dúbio, era inócuo, cheio de esplendor. Ele aqueceu como nunca em vida, como nunca em morte. Não aguentou, tocou-lhe a face, queria a lágrima que descia pelo frágil rosto, gota de felicidade. Jamais viu alguém chorar de felicidade, jamais viu alguém gargalhar com prazer, com júbilo; só recebera risos forçados e gargalhadas falsas, cheias de falsas alegrias. No momento em que a mão abstrata de Varuna tocou o rosto concreto de Camila, esta tremeu, sentiu como se uma espada feita de gelo lhe perfurasse a carne, era indolor, mas o frio insuportável. _ Deus! Acho que estou ficando doente, papai, senti meu rosto ficar gelado! - confessou alarmada, temerosa. Evaristo tocou na face da sua pequena e constatou que era só uma impressão da menina, a temperatura estava normal, não tinha motivo para ficar arreliada. O sorriso dela cessou e Varuna afastou-se, olhos fixos nela, na garota. Ele não obteve a lágrima, não conseguiu concentração suficiente para obter êxito. Ficou extasiado com tal demonstração que perdeu-se de seu constante estado, não poderia levantar uma mísera folha de papel se quisesse. - Você precisa de descanso, minha filha. Tem se desgastado com muitos serviços. Não precisa dar conta de tudo de uma só vez. Faça aos poucos. Lembre-se de que na segunda-feira começam suas aulas. Não quero que vá para a instituição prostrada - o pai lhe falava com afeto, puro afeto, voz mansa e baixa. O ar estava tétrico, enrodilhado por uma energia diferente. Ela sentiu, teve calafrios e persignou, ritual muito feito pela mãe. O patriarca não entendia, mas Varuna sim. Ela estava o excomungado, mandando ele para longe. O espectro saiu da sala e foi para o seu antigo quarto, na casa dos pais, notou a limpeza no ambiente. Ficou por algum tempo longe da fazenda. Depois da noite de sua observação. Esteve muito ocupado, adulando a sobrinha que acabara de nascer. Manteve-se perto do berço ciciando o quanto era (e é) bela, feito um rolinho primavera. Deu-se conta de que tornou-se tio, honroso título, mas que não mais lhe cabia. O que era, afinal?Um tio fantasma, um tio assombração, um tio encosto, um tio espectro? Não sabia, nem procurava por resposta, doía demais essa nova existência vazia e solitária. Leu o nome da bebê bordado em uma das suas muitas mantas: Verena. Um dia, quando crianças, confessou à irmã a vontade de ser pai; queria ser diferente de Raul. Dizia ele que seria mais amoroso com suas crias. Anick riu e argumentou de modo resoluto que não seria mãe, achava crianças chatas. "Eu serei pai, quero muitos filhos, mesa cheia, não gosto de ver as cadeiras vazias, parece que falta alguém. Espero ter uma menina, bonita como você." - o jovem desmanchou-se no elogio meigo. "Papai tem um troço se você fizer uma menina primeiro, ele diz que nossa descendência carece de varões. Escutei ele falando isso com a mamãe, disse também que ela é péssima parideira. Será que falou isso porque eu nasci primeiro?" - doeu nele ver os olhos rasos d'água da irmã. " Não, Anick, falou isso porque é um cego e não vê os bens preciosos que tem. Mamãe e você são nossas pérolas raras." - argumentou, dando-lhe um abraço. Anick sentiu-se protegida pelo irmão mais novo, sentiu-se querida e amada, sorriu à pequena dona de olhos azuis puros e cristalinos e cabelos mais amarelos que os raios do sol. "Se for menina, qual nome você dará? "- perguntou a irmã, girassol do mundo infantil do menino. "Verena, é o mais próximo que encontrei de Varuna." - respondeu, com os pequenos olhos brilhando. Tinham pouco mais de onze anos, ela uma mocinha de espírito vulnerável e ele de alma sonhadora. Rememorar aquilo não fez bem ao espectro; logo sentiu a agonia brotar, como se a ponta de um mágico punhal estivesse lhe rasgando ao meio. Sentiu o ódio retornar; ele não mais teria sua Verena, não mais encheria a mesa de filhos, tudo lhe fora arrancado com golpes brutos de um modo sórdido. Desolado retornou para Bella Flor, precisamente para o seu quarto que possuia na cede da propriedade rural. Decidiu que iria até o pai em Brasília, se apresentar a ele com a cabeça esmagada, como vinha fazendo ultimamente em sonhos, perturbando Raul, lhe arrancando a sanidade. No entanto, a porta foi aberta e por ela passou Camila, ele parou, mirou a menina que se jogou em cima da cama. Ela mirava o teto e ele mirava ela, ela alheia a ele, e ele, de alguma forma, se sentia preso a ela. Era uma ciranda sem fim, uma ciranda de muitas mãos entrelaçadas, mas as de Camila e Varuna faziam-se muitas vezes presentes, cada vez mais próximas, quase se tocando. _ Se essas paredes pudessem falar, queria saber quantas pessoas passaram por aqui? Quem dormiu nessa cama e andou por esse quarto? - falou alto, Camila gostava disso, das histórias escondidas, das histórias por trás de cada coisa, achava mágico. Erguendo seu corpo miúdo da cama, rumou para a cômoda, retirou das gavetas um vestido florido e uma calcinha de algodão. Varuna viu aquilo, condenou a vestimenta, eram trapos em sua concepção. Não se prendeu a isso, apenas partiu para perto do pai, precisava alimentar-se, precisava de energia e também causar danos na mente calculista do progenitor. Camila foi para o banho, ainda teria de ajudar a mãe na cozinha, essa noite a louça era dela, não reclamava, gostava de ajudar nas tarefas, se sentia útil. Tempos depois, naquela mesma noite, a família jantava um macarrão ao molho vermelho. Era uma comida simples, mas feita com zelo. _ Não gosto de massa, isso engorda.- Tabata chiou. _ Não come, bom que sobra mais para mim.- redargiu, Junior esfregando suas mãos reconchudas. _ Mais é um guloso, mesmo, hein! Vai ficar agarrado na porta qualquer dia desses!- Camila replicou, apertando os olhos castanhos. _ Fica quieta, modelo de funerária, se houvesse um desfile para saber quem é mais magra, o esqueleto perde feio para você. - Júnior alfinetou Camila que o mirou cheia de raiva. _ Escuta bem rolha de poço com pernas, eu vou te fazer engolir os dentes com suas palavras e tudo.- ralhou, ameaçando sair do seu assento. Evaristo largou o garfo, e cruzou os dedos das mãos, tendo os cotovelos apoiados um de cada lado do prato. _ A hora da comida é sagrada, não é momento para discussões ou brigas.- o pai repreendeu, sem alterar o tom de voz. _ Esse cabo de vassoura que começou !- Júnior apontou para Camila, que o olhava cheia de chateação . _ Não fale desse modo grosseiro, ela é sua irmã e merece respeito. Estou criando um mini cavalheiro e não um potrinho. - Alda intrometeu-se. Júnior estava furioso com a irmã, Camila sequer o olhava, não era raro essas rusgas entre os irmãos, pior ficava quando os três resolviam brigar entre si. Depois das severas repreensões, mas não ásperas, todos se concentraram em seus pratos. Um por um foi deixando a mesa, o penúltimo foi o patriarca, deu um beijo de boa noite na filha e seguiu o caminho para seu aposento. Camila retirou a mesa, no mesmo momento que sentiu um vento gelado passar por detrás de si. Olhou para os cantos, espreitando tudo, nada viu, deu de ombros e continuou a sua tarefa. Limpou a mesa e depois forrou uma toalha de puro linho. Depositou no centro do tampo um belo vaso contendo flores, gostava do colorido enfeitando aquele ambiente, trazia um ar mais aconchegante. Pegou o seu celular, colocou uma música baixinho e seguiu para a cozinha, onde lavou a louça e limpou o fogão. Iria começar a enxugar as vasilhas, quando viu um copo mexendo-se sozinho na enorme bancada. O pequeno cilindro de vidro deslizou de um canto para o outro, desenhando um zig-zag perfeito, fez isso uma, duas e três vezes . Camila congelou, o prato que estava em suas mãos foi ao chão e tornou-se cacos. Seus olhos ficaram arregalados, seus pés falharam, não conseguiu gritar, muito menos correr. A respiração da pobre menina falhou, falhou tanto que a oxigenação precária em seu cérebro a fez desmaiar. Camila iria cair por cima dos diversos e minúsculos pedaços de porcelana. Varuna não conteve-se, foi de encontro ao corpo miúdo e o segurou, dessa vez conseguiu senti-la, conseguiu mais do que isso, conseguiu aspirar o doce cheiro que ela emanava: rosas. Camila tinha cheiro de rosas. Aquela descoberta baralhou tudo no espectro, o fractal micaélico não esperava por isso. Não esperava o seu rompante de cuidado para com uma estranha. Levou Camila escada acima, para quem se deparasse com a cena, levaria um susto enorme, vendo a menina flutuava sozinha, desfalecida, cabelos bailando a cada movimento. Varuna sentiu-se esquisito, olhou para o rosto magro da menina e lembrou da gargalhada. Aquela fedelha tinha vida, muita vida vibrando dentro do corpo mirrado. Ele sabia e isso não deixava de ter seu encanto. O fantasma empurrou a porta e depositou o corpo pequeno e delgado na cama, sentou-se na borda e ficou olhando-a. A pequena o intrigava, muito mais do que qualquer outro ser que conhecera em vida. Lançou sobre Camila uma manta e saiu. Varuna pensava em pernoitar no sofá, coisa que não era rara, mas ao olhar para a cozinha, deu-se conta da bagunça. Antes, deixaria tudo como está, uma forma de separar famílias é provocar brigas e desentendimentos entre eles. Com tudo, foi impelido a cumprir as tarefas domésticas da fedelha, deu conta de tudo, inclusive dos cacos. Ficou imaginando o que o pessoal daquela família faria se presenciassem uma vassoura varrendo sozinha o chão da casa. Não pôde esconder de si mesmo esse prazer mórbido que sentia, prazer em ver o medo estampado no rosto de outros. Deixou a cozinha para sentar no sofá, puxou as cortinas que fechavam a parede de vidro e olhou para o céu, hoje não tinha estrelas, apenas as nuvens escuras cobrindo qualquer beleza. E ali ficou até o alvorecer.
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