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2614 Palavras
Gabriella Acordo por volta das oito da manhã, tomo um banho e opto por uma roupa mais casual — calças jeans e uma camisa de mangas bege. Desfiz minhas malas na noite passada mesmo, em uma tentativa de meu cérebro aceitar que vou viver aqui a partir de agora. Meu quarto em si é bem confortável. Tem uma cama de casal no centro do cômodo e uma poltrona no canto, mas o charme do ambiente são as janelas enormes com vista para a cidade. Por um momento me pego refletindo sobre minha vida. Como ela era confortável até poucos meses, afinal nunca tinha pensado que eu podia ser infeliz. Bom, também não me questionava se eu era feliz. Mas agora não suporto a ideia de voltar àquela vida, com toda a sua facilidade artificial. Ao menos hoje começo a trabalhar. Como previsto a Sra. Granger chegou na noite passada. Depois do jantar ela me convidou até o seu escritório e comentou que gostaria que eu fizesse parte da orquestra do Gershwin Theater para assumir o cargo de pianista. Mas apesar da vaga ser minha, hoje eu precisaria fazer um teste para a banca de diretores as nove horas. Ansiedade? Nem sei o que é isso. Saio do quarto e desço as escadas até a cozinha onde encontro Kathleen sentada à mesa enquanto Amélia prepara o café. — Bom dia — digo, puxando uma cadeira para me acomodar. — Bom dia — Kathleen responde, sorrindo. — O café logo será servido — Amélia diz. Ela se vira para mexer no filtro do café. — Dormiu bem? — Kathleen pergunta. Confirmo com a cabeça. — Minha mãe comentou que você vai fazer um teste no teatro. — Sim. Ela acha necessário avaliar minha capacidade antes de entrar em mais detalhes sobre a posição que devo ocupar. Você também faz parte do concerto? — Sou a violinista principal. Imagino a pressão que ela deve sentir, principalmente por carregar o legado de um gênio musical. Me pergunto como ela consegue lidar com toda essa situação. — Isso deve exigir muita responsabilidade — digo, empatica. — Um pouco, mas eu realmente amo o que faço. — Kathleen responde, sorrindo. E realmente é perceptível a paixão em seus olhos quando ela fala isso. — Hannah me disse que você toca piano. Não posso deixar de ficar surpresa com essa informação. Quer dizer, não imaginei que Hannah fosse conversar sobre mim com sua irmã. — Por falar nisso — ela continua, me lançando um olhar curioso. — Como foi seu primeiro contato com minha irmã? — Bom? — Arrisco. Kathleen sorri de lado. — Quer falar a respeito? — Ela pergunta, me encarando. — Nem saberia por onde começar. — Ela causa essa reação nas pessoas. Chegam todas esperando sentir empatia, mas vão embora querendo estrangular minha irmã. — Isso resume bem a coisa — comento, passando o dedo sobre a mesa. — Mas você vai ficar? — Ela pergunta. — Não vou desperdiçar uma oportunidade dessas — digo, sorrindo. Então me lembro da noite passada, na cobertura, quando nós quase nos conectamos antes que Hannah voltasse a se fechar em copas. — E sua irmã meio que se desculpou. Kathleen parece surpresa. — A Hannah te pediu desculpas? Isso sim é uma novidade. — Imagino que seja — digo, me servindo dos pães que Amélia colocou sobre a mesa, juntamente com algumas frutas, café e suco. — Hannah nem sempre foi assim. — Kathleen diz, pensativa. — Tudo mudou depois… bem, você sabe. Imagino como tudo isso deve ter afetado essa família. E em como cada uma delas está lidando com a situação. Eu mesma estou aprendendo a lidar com minhas tragédias pessoais. Mas não importa o que aconteça, não importa quantas vezes você lide com ela, a morte não fica mais fácil. — Sua mãe vai descer para tomar café? — Depende. Na maioria das vezes, sou só eu a Amélia. — Ela responde, num tom baixo. Então, Hannah realmente não come com a família. Percebi isso ontem na hora do jantar, mas pensei que sua ausência fosse devido a minha presença. — Sei o que está pensando — Kathleen diz, me trazendo de volta a realidade. — Minha irmã faz a maior parte das refeições no escritório, e às vezes no seu quarto. Mas você pode comer comigo e com Amélia quando quiser. — Claro, vai ser um prazer. Depois do café, Brian nos leva até o Gershwin Theater, um dos maiores e mais conceituados de Nova York. E meu futuro local de trabalho. Kathleen abre a pesada porta lateral e eu a sigo pelas sombras do teatro adentro. — Bem vinda ao Gershwin Theater. — Ela diz, abrindo os braços, como se aquele ambiente pudesse revigorá-la. — Logo você vai está familiarizada com tudo e com todos. Mesmo com o ruído das pessoas trabalhando nos bastidores e no palco, o lugar está calmo em comparação com a atmosfera animada que eu sei que existe na hora dos espetáculos. — Estou contando com isso. — Faço uma varredura visual pelo ambiente. Apesar de grandioso, o teatro consegue transmitir uma certa tranquilidade. Através da porta irrompe um rapaz com um sorriso animado. — Então essa é a nova musicista de quem você tinha me falado? — Ele diz ao se aproximar. Ele é alto, tem a pele n***a e um rosto atraente. Está vestido de forma casual: calças jeans, camisa e jaqueta. Com um sorriso, Kathleen diz: — Gabriella, esse é Jacob Miller. — Mais conhecido como o amor da vida dela — O garoto acrescenta com um sorrisinho. Eles trocam um olhar de cumplicidade, e eu estreito meus próprios olhos. Está óbvio que eles são mais que bons amigos. O que é bom, porque isso significa que Kathleen tem alguém com quem conversar. — Soube que vai fazer um teste hoje — diz Jacob. — Sim, para a vaga de pianista. — Relaxa, se você está aqui é porque tem capacidade. A Sra. Granger é conchecida por contratar apenas os melhores. Tenho vontade de explicar como consegui essa oportunidade, mas fico em silêncio. Ao longe observo a Sra. Granger cumprimentando duas mulheres perto do palco. Elas conversam sobre algo, então ela acena para que eu me aproxime. Me despeço de Kathleen e Jacob e me aproximo delas. Elizabeth as apresenta como Alice e Taylor Mitchell, as produtoras do espetáculo atual. Então me convida a subir ao palco. Subo ao palco e me aproximo do piano, acomodando-me no banco e erguendo a tampa. Apesar da minha expressão tranquila, dentro do peito, meu coração está acelerado. Não é todo dia que você toca para Elizabeth Granger, a renomada compositora musical. Dirigindo-me a Sra. Granger, eu pergunto: — O que você gostaria de ouvir? Ela parece pensar um pouco. Não sei o que ela vai dizer agora, mas apesar de não a conheçer muito bem, eu posso apostar minha vida que ela já tem uma música em mente. — A Sonata n° 14; Ludwig van Beethoven. Uma escolha inteligente. É uma música marcante, composta por três movimentos distintos. E também uma ótima forma de avaliar o nível da minha destreza, porque requer precisão, velocidade e algumas mudanças no ritmo. Com um ligeiro aceno, aproximo minhas mãos do piano, sentindo a frieza das teclas me acalmar. Desde a adolescência, a música é minha principal forma de lidar com as emoções — as boas, as ruins e as intermediárias. Com os acordes potentes das cordas, entoados por pura memória muscular, me entrego à melodia, deixando com que tudo o que sinto flua para as pontas dos dedos. Quando a música termina, eu mantenho as mãos nas teclas, ouvindo o eco das notas se esvaindo no ar. Só desperto do meu transe quando Alice bate palmas e diz: — Acho que já ouvimos o bastante. Ninguém responde, nem mesmo a Sra. Granger. Fecho a tampa do piano, aperto as mãos de novo e me aproximo das garotas. — Olha, você tem talento. — diz Jacob. — É quase como se conseguisse sentir as notas musicais. — Você nem parecia nervosa. — Comenta Kathleen. — Acredite, eu estava. O que acontece agora? — Pergunto, observando a Sra. Granger e as diretoras subirem pela escadaria lateral. — Elas vão para o escritório principal — responde Kathleen. — Devem discutir sobre sua performance e a melhor forma de empregar o seu talento no musical. […] Quando chego em casa vou direto para o quarto. Kathleen e Jacob foram para a faculdade e a Sra. Granger permaneceu no teatro, resolvendo algumas questões sobre o concerto ao qual, oficialmente, agora faço parte. Como não tenho a menor ideia do que deveria estar fazendo, vou dar outra volta pelo apartamento. O lugar é realmente tão grande e impressionante quanto pareceu no dia anterior. Embora tudo seja muito moderno, incluindo o piano, que Kathleen insistiu em me mostrar, não posso deixar de lembrar que uma pessoa vive isolada em meio a tudo isso. Acabei descobrindo nesse meu tour que um dos cômodos foi adaptado para uma espécie de academia. E apesar de saber para quem ela foi criada, eu acredito que não tenha sido frequentada uma única vez. Admito que meus conhecimentos de psicologia são limitados a uma optativa de verão no primeiro ano da faculdade, mas poderia apostar que os problemas de Hannah Granger são muito mais emocionais do que físicos. E suspeito que, lá no fundo, ela também sabe disso. E apesar de tentar se redimir pela hostilidade que demonstrou ontem, ela certamente ainda quer manter distância. Estou um tanto decepcionada, mas não surpresa. Afinal de contas, ela deixou bem claro para que eu respeitasse o seu espaço. Passo as horas seguintes no meu quarto. Ligo para minha mãe e descrevo meu primeiro dia da melhor forma possível. Então ligo para Raquel. Embora mencione que Hannah é mais nova do que eu esperava e ridiculamente linda (é o privilégio da melhor amiga: não posso não contar isso a ela), não comento sobre como ela é uma pessoa amargurada. Assim, mato o tempo visitando as redes sociais. E quando estas se esgotam, fecho o notebook e procuro o livro que trouxe comigo. Uma das minhas metas pessoais nessa grande aventura em Nova York é ler mais. Quer dizer, sempre li uma boa faixa de obras literárias e dava a atenção necessária aos livros da escola para garantir boas notas. Mas, nos últimos tempos, tenho sido meio relapsa com a leitura. Tirei uma das obras de Agatha Christie da estante da biblioteca de casa quando estava fazendo as malas. Abro a porta do quarto, tentando ouvir algum sinal de Hannah. Nada. Espero que isso seja um sinal de que ela está no escritório. Hannah ainda não sabe, mas está prestes a ter companhia enquanto faz suas coisas naquele cômodo. Bato à porta do escritório, mas me dou conta de que assim ela vai ter a chance de se trancar no cômodo. Então entro, e o que vejo à minha frente é uma cena… bem, muito agradável. A lareira está acesa no canto, e tem uma jovem linda sentada na poltrona, segurando um livro e com uma xícara cheia de um líquido âmbar. Então, por um momento, me arrependo de verdade de estar me intrometendo. Ela não parece uma vítima que precisa de cuidados, só uma jovem mulher tentando ler em paz diante da lareira em uma tarde qualquer. Enquanto penso em ir embora e deixá-la tranquila, ela teve que abrir a boca. — Posso saber até quando você pretende ficar parada aí na porta? — Estava esperando você ter o bom senso de me convidar — digo, fechando a porta —, mas já que isso não vai acontecer… — Por favor — ela diz, ainda sem levantar os olhos do livro. — Não venha me impor as regras de etiqueta que você deve ter aprendido desde a infância. — E por que acha que eu tive aulas de etiqueta? — Digo, me aproximando. — Google. Sua família é importante. Eu a ignoro. Vamos ficar melhor se não falarmos de mim. — Mas e aí, o que é? — Pergunto, arriscando sentar na poltrona em frente à sua, embora não tenha sido convidada e não seja bem-vinda. Eu a observo. Seus cabelos estão soltos e ela esta vestindo uma calça de moletom com uma camisa de algodão. Espero que olhe para mim, me preparando mentalmente para isso. Como se lesse meus pensamentos, seus olhos castanhos encontram os meus, e de repente parece tolice ter pensado que faria alguma diferença me preparar para enfrentar esse olhar. — O quê? — Hannah pergunta. Demora um pouco para eu me lembrar de que fiz uma pergunta. — A bebida que está tomando. O que é? Seus olhos se acendem de irritação, e eu acho que vai me mandar embora, mas ela parece se conter. Muito devagar, Hannah levanta a xícara de cristal da mesa e passa pra mim. Sinto o aroma. — Chá. Ela assente. — Twinings of London. É o melhor que temos. — Muito distinto. Ela revira os olhos, e eu tomo um golinho. Então devolvo a xícara a Hannah com um dar de ombros. — Quer alguma outra coisa? — Ela pergunta. — Não precisa. O que está lendo? — Pergunto. Ela respira fundo, passando a mão nos cabelos. — De novo isso? Sei que vamos conviver neste apartamento pelos próximos meses, mas precisamos mesmo nos conhecer? Não podemos ficar em silêncio? — Tudo bem — digo, me acomodando na poltrona. — Vinte minutos de silêncio em troca de um jantar em família. — De jeito nenhum — Hannah recusa, calma, com sua atenção voltada ao livro enquanto vira a página. — Vai — insisto. — Pense na sua irmã. Ela me disse que geralmente come sozinha. Ela me ignora. — Hannah. Seus olhos brilham de novo, e por um breve momento a expressão em seu rosto é quase surpresa. Percebo que é a primeira vez que a chamo pelo nome. Tenho certeza de que não sou só mais uma hóspede. Só não sei o que sou. — Posso ficar falando sozinha por bastante tempo — continuo, tentando aliviar a tensão do momento. — Vamos ver, nasci em maio, o que quer dizer que minha pedra é a pérola, que tem esse nome refinado e é associada ao amor e beleza, mas tem uma cor intensa. Falando em cor, está vendo meu cabelo? Você não imagina os cuidados que eu… — Está bem! — Ela me interrompe. — Desisto. Me dá uma hora de silêncio agora e janto com vocês mais tarde. — Viu? Não foi tão difícil. Ela dá um golinho no chá e me avalia. — Você é irritante. Nunca me chamaram de irritante antes. Sempre fui chamada de educada, doce, tímida. Digo as coisas certas, respeito os limites dos outros, evito assuntos controversos. Mas há algo nela que desperta esse outro lado meu. E eu meio que gosto. Dou de ombros, sem me desculpar. — Você sabe quem é Agatha Christie? — Pergunto, sentando sobre as pernas e me encolhendo no couro macio da poltrona. — Sim, eu sei quem foi Agatha Christie. A eterna Rainha do crime. — Certo — digo. — E já ouviu falar desse… — Gabriella — ela me interrompe com toda a delicadeza, virando a página do livro — aquela hora de silêncio já está valendo. Suspiro. — Está bem — falo, abrindo o volume no prefácio. — Mas é bom que saiba que planejo conversar durante o jantar. Ignoro seu resmungo e me acomodo para ler. E talvez as vezes desvie minha atenção para a mulher mais interessante que já conheci.
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