Conversa (P1)

1517 Palavras
Capítulo-XV. Conversa " A conversa é um dos maiores prazeres da vida." ( Nietzsche) Liliana Descer do veículo pesa, pesa mais do que imagino. Solto uma respiração sofregada. Olho ao redor: ele não mora aqui, se esconde. A casa é enorme, com uma aparência que pode ser melancólica ou assustadora — depende do estado de espírito de quem lhe destina o olhar. Paro ao ver a mão do homem estendida em minha direção. Ele está usando luvas. Engulo em seco e, vacilante, seguro a mão do escocês. Atravessamos o jardim em direção à porta da frente, pisando num caminho de pedra. A porta se abre antes mesmo de chegarmos à varanda. Surge um homem alto, vestido com roupas escuras. Ele diz algo que não compreendo e Ragnar responde. Meus nervos repuxam. Ao cruzarmos a porta, meus olhos quase saltam das órbitas: cerca de sete pessoas estão presentes na sala, todos vestidos de preto, todos ruivos, todos com olhos de um azul inenarrável. Reconheço apenas Hunter; os demais me encaram com suas gemas frias e vazias. — Senhorita, esses são membros de minha família — Ragnar anuncia em alto e bom som. Totalmente constrangida e com o coração aos solavancos, forço um leve sorriso. Mas nenhuma expressão muda. — Olá — digo, em voz trêmula, apenas um fiapo audível. Todos olham para Ragnar. Hunter nos dá as costas e segue por uma porta que bate com força. Me encolho com o susto. Pelo olhar deles, ninguém aprova minha presença aqui. Se ao menos soubessem que não é de minha vontade estar em terras estrangeiras... — Olá, senhorita, sou Moira, mãe do Ragnar. — A senhora força um sorriso mínimo, tentando disfarçar o desconforto. Seu português tem sotaque carregado. Os demais começam a se espalhar pela casa, desaparecendo em silêncio um a um, até que um jovem rapaz se aproxima. — Olá, donzela, sou Ewan, irmão de Ragnar. — Os olhos dele sorriem sem que os lábios façam o mesmo movimento. A mãe de Ragnar olha por cima do ombro para o filho. Ragnar, por sua vez, olha para mim. Estou quase pedindo para sair dali. Sufoco. Só então percebo que o homem que abriu a porta ainda está ali, afastado, apenas nos observando. Ragnar lhe diz algo; ele apenas gesticula com a cabeça e sai, retornando pouco depois com as malas. — Siga-o, irás tomar posse dos seus aposentos. Sem alternativa, sigo o homem pelas escadas de madeira que rangem sob o peso do meu corpo. Ragnar continua me olhando. — A donzela tem conhecimento das regras da casa? — a voz do homem me surpreende. — Fala o meu idioma? — indago, atônita. — Aqui todos somos versados em idiomas. — A voz dele é seca, distante, como um abismo. — Há regras? — pergunto, nervosa. Meus dedos se apertam entre si. — Ora, pensas que estás onde, senhorita? Conde Campbell sempre prezou pelos bons modos e costumes. Fico estática, sem acreditar no que ouço. — Conde o quê?! — minha voz sai alta, aguda, quase um Dó central. — Sandices desses servos, senhorita Liliana. — Hunter surge, caminhando em nossa direção, olhar afiado. Em um idioma que não entendo, ele fala algo ao homem, que larga minhas malas no chão, faz uma breve mesura e parte. — Ele falou sobre regras... quais são? — indago com os lábios trêmulos. Parece que desperto em um pesadelo. — Seu noivo falará sobre. A menção da palavra noivo faz minhas entranhas se retorcerem. — Adentre ao seu aposento, é este à sua frente. — Hunter inclina a cabeça levemente em direção a porta, mãos cruzadas nas costas. Mantém-se assim enquanto caminha até nós. Esse hábito de cruzar as mãos atrás das costas não é mais comum e muito menos usual; é arcaico. Surgiu durante os séculos XVII (1601-1700), com raízes ocidentais. Era associado a respeito, modéstia, disciplina, autocontrole. Nobres e militares o usavam como símbolo de educação e formalidade. Recordo das aulas de História com uma professora obcecada por detalhes, incapaz de ser concisa, sempre prolixa. Minuciosa ao extremo. As aulas eram massantes, chatas, desagradáveis. Mas nas provas... ah, nas provas estavam as “pegadinhas”. Quem não prestava atenção estava em apuros. — Agradeço, Hunter. Estico a mão e giro a maçaneta antiga de porcelana. Deparo-me com um quarto bonito, muito diferente do que imaginei em minha mente fantasiosa. É um aposento de estilo clássico, com paredes num azul suave e molduras douradas. Detalhes em papel de parede floral acrescentam delicadeza. A luz entra suavemente pela janela, refletida no candelabro de cristal pendurado no teto, criando uma atmosfera mágica. Parece que abro uma porta para um cômodo perdido no tempo. Um espelho grande, fixado na parede, reflete a iluminação e amplia o espaço. Algumas prateleiras vazias decoram outras paredes. Hunter empurra as malas para dentro e as deixa próximas à cama de dossel, coberta por uma colcha branca bordada em dourado. Observo os detalhes. É como se pisasse no século XVIII, contemplando o Iluminismo de perto, a olho nu. Escuto a porta ser encostada. Olho por cima do ombro: Hunter já partiu. Vou até a janela. A vista se abre para um corpo d’água: um rio enorme, largo... ou seria um lago? Não sei. Estou confusa com tudo. Nuvens cinzentas pesam sobre mim, como minha alma refém dessa cadeia invisível. Quero chorar. Estou aflita. Gestar uma criança requer i********e, algo que não posso conceber em minha mente. Já faz tempo que sei que os bebês não vêm de cegonhas e muito menos que não brotam feito as flores do jardim. Descobri aos doze anos — e foi um choque, não n**o. Achei tudo muito escabroso, escandaloso e depravado. Decididamente, eu não sabia nada da vida. Acreditava na história da cegonha e até mesmo na da sementinha, perdi as contas de quantas vezes plantei sementinhas querendo ganhar um bebê, achei que sempre ocorria depois da floração, acreditava que no lugar do fruto iria surgir um lindo bebê, igual as minhas bonecas. Recordo que nessa idade eu tinha duas amigas, que eram primas e estudavam comigo. Minha mãe nunca gostou muito delas. Conservava uma certa antipatia, na época não me era evidente o motivo. Dizia que eram “espoletas”, mas não no sentido de bagunceiras. Quando estávamos juntas, mamãe vivia com os olhos em cima de mim, não me deixava distanciar. Às vezes, permitia que elas viessem em casa assistir a um filme. Muitas vezes pensei que minha mãe não queria que eu tivesse amigas próximas. Até que descobri a razão. As meninas sabiam de coisas interessantes. Foi Nubia quem me contou o segredo do beijo. Disse que, quando acontece, faz a gente flutuar sem tirar os pés do chão. Pura mentira. Meu primeiro beijo foi péssimo: o garoto apertou tanto minha cintura que precisei empurrá-lo. Nada de flutuar aconteceu E foi Manuela quem me revelou que as crianças não vinham no bico da cegonha, em cestos e muito menos brotavam em vaoso de flores. Era invenção de adultos. Quando explicou como tudo acontecia, achei que era melhor continuar acreditando na cegonha. Ela já tinha quinze anos, mas era atrasada nos estudos. Somente nos estudos porque em outros assuntos dava aula. Eu, por muito tempo, tive de manter cara de inocente perto de meus pais, ouvindo-os falar que a cegonha traria o bebê de algum casal amigo. Eu achava ridículo, mas ficava quieta. Descobri nesse período que adultos mentem e muito. Certamente que por uma boa razão não macular a inocência infantil e permitir que a criança continue a enxergar a procriação com o olhar lúdico. Enfim, mas as barrigas imensas, mamãe nunca soube me explicar naquela época, dizia que fulana ou sicrana tinha engolido melancias ou era gulosa demais por isso a barriga protuberante. Agora estou eu aqui, prestes a pagar uma conta que não fiz — e o preço é alto demais. Uma chuva começa. Ao longe, vejo o véu de gotas contínuas cobrindo o espelho d’água. É lindo. Perco-me nas gotas que descem rápidas até escorrerem pelo vidro. Ergo a mão e toco nele: uma janela que chora, uma alma em desespero, uma jovem refém das artimanhas do destino. Quão c***l a vida pode ser? Viro-me. Um susto me toma: Ragnar está parado, me observando em silêncio. — Deus! Você parece um fantasma! — exclamo, levando a mão ao peito. — Não repita jamais esse nome. — Seu tom é seco, duro. Não entendo a razão e resolvo confrontar: — Por qual razão? Eu tenho minhas crenças, tenho uma religião. Ragnar se move pelo quarto. A porta está fechada, suas mãos cruzadas atrás das costas. — Não acredito na existência dele. Essa é a regra número um. — Seu olhar de esguelha me atravessa feito flecha. Não tenho argumentos para retrucar. Afinal, cada um possui livre-arbítrio, inclusive sobre religião. — O que quer? — indago, nervosa, traída por meus olhos que apreciam sua beleza rara e única. — Conversar. Saber de ti. Esse momento não deveria estar acontecendo. Ragnar é a última pessoa no mundo a quem desejo contar algo sobre minha vida. Continua...
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