O novo ano letivo começou, eu já tinha nove
anos, já havíamos mudado para a casa nova, mas a
frustração persistia ao perceber que meu pai não
ganhava o suficiente para comprar uma cama para mim,
e eu continuava dormindo com minha irmã.
Naquele Natal, lembro-me de que meus pais
compraram brinquedos diferentes para mim e minha
irmã. Ela, sendo a mais velha, ganhou a boneca sensação
do momento, “A Hora do Banho”, que vinha com uma
banheirinha, chuveirinho, toalhinha, etc. Para mim,
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escolheram uma boneca com lindos cabelos loiros e
olhos azuis, parecida comigo. Ao abrir, chorei, pois não
era igual à da minha irmã. Fui até o porão de nossa casa,
peguei uma tesoura, cortei todo o cabelo da boneca e a
escondi. Naquele momento, senti que me vingara.
Nessa época, eu já havia sido roubada na escola
por uma colega, e apanhei injustamente, pois minha mãe
pensou que eu havia perdido, mesmo eu dizendo que a
Maurem tinha pegado, mas ela não acreditou. Minha
vida estava difícil, chorava e me perguntava por que
tinha que estudar naquela escola.
Até que conheci a irmã Zelinda, uma pessoa
amorosa que me acolheu com carinho. Ela percebeu
minha solidão durante o intervalo do recreio e me
perguntou sobre o que estava acontecendo. Expliquei
que sentia vergonha das outras meninas, que sempre
tinham roupas bonitas e brinquedos caros, enquanto eu
era pobre e sempre usava uniformes e calçados usados.
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Contei que também era tímida e tinha medo. Na terceira
série, ela se tornou minha professora, e foi o melhor ano
que passei naquela escola. A professora irmã Zelinda me
fazia sentir especial, elogiava-me, eu escrevia lindas
redações, participava das aulas de canto e conquistava
meu espaço, fazendo amigos e passando a gostar de
estudar ali.
O que mais gostava na escola era a época de São
João, quando fazíamos casinhas com bandeirinhas e
cordões para demarcar o local. Era um momento alegre
e prazeroso, especialmente porque junho era também o
mês do meu aniversário.
Numa noite quente e abafada, ao cair a energia
elétrica, fui fechar as janelas, com medo de aranhas. Ao
notar algo no lençol da cama, pensei ser uma folha seca,
mas ao tocar, senti uma picada. Gritei, chorei, meu pai
correu para saber o que acontecera. Expliquei que algum
bicho tinha me picado, a dor era terrível, e, em meio ao
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caos sem energia elétrica, meu pai me levou no colo até
o vizinho mais próximo para me levar ao hospital.
Ao chegar ao hospital, o médico examinou o
local da picada e disse que precisava saber que bicho era
para dar o remédio certo. Minha mãe ficou comigo, e
meu pai foi para casa tentar encontrar o culpado.
Morávamos perto de uma serralheria, e o médico sugeriu
que poderia ser uma aranha ou escorpião. Lá estava ele,
no meio do cobertor, um escorpião amarelo. Meu pai o
matou e levou para o médico, que confirmou ser um
escorpião. Passei a noite no hospital recebendo soro.
Nunca esqueci desse doutor; seu nome era Jesus.
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O início da adolescência, um registro de dor e
angústia diante desse novo capítulo em meu existir.
Era maio de 1987 e eu estava prestes a completar
meus 12 anos. Todas as minhas amigas, inclusive minha
irmã, já eram chamadas de 'mocinhas' quando
menstruaram pela primeira vez, mas comigo ainda não
tinha acontecido. Eu continuava brincando de bonecas,
de pega-pega, de carrinho de rolimã com meu irmão e de
bicicleta com meu vizinho. Faço aqui um parêntese:
meu sonho na infância era ter uma bicicleta. Todos os
meus amigos tinham triciclos, motocas, bicicletas, mas
meu pai não podia comprar uma para mim. No entanto,
aprendi a andar de bicicleta mesmo assim. Tive a sorte
de ter um vizinho que era meu melhor amigo e ele me
emprestava sua bicicleta. Ele me ensinou a andar de
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bicicleta, apesar dos muitos tombos, da falta de
equilíbrio e dos braços e joelhos ralados. Eu contava as
horas para chegar da escola e poder ir andar de bicicleta.
Sou grata até hoje a esse amigo, que foi meu primeiro
amorzinho no início da adolescência.
Foi assim que descobri que Papai Noel e o
Coelho da Páscoa não existiam. m*l sabia eu o que me
esperava. Aguardem, pois havia mais por vir…
Completei treze anos e já era uma mocinha.
Tinha vários sonhos e um deles era me tornar professora.
Levava jeito para ensinar e gostava de brincar de aulinha.
Imaginem, eu era a professora! Como não tinha giz para
escrever na parede, usava carvão. Ao mesmo tempo,
brincava de ajudar meu irmão nas tarefas da escola. Em
um final de semana, durante as férias escolares, fomos
visitar minha avó materna, que morava na cidade de Três
Palmeiras, a cerca de duas horas de viagem. No final do
domingo, na hora de irmos embora, pedi aos meus pais
se eu podia ficar uma semana na casa da minha avó. Eles
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disseram que sim, e fiquei muito feliz, pois gostava de
ficar com minhas tias, que moravam junto com minha
avó. Em uma tarde, o tempo fechou e ventava muito.
Meu tio, que também morava ali e era solteiro, tentou
me violentar. Ele me levou para o quarto da minha tia e
disse que ia fazer algo comigo e que eu não devia contar
a ninguém, senão ele me surraria. Graças ao meu anjo da
guarda, minha avó entrou em casa e me chamou. Eu saí
correndo do quarto, chorando. Ela perguntou por que
eu estava chorando, e eu disse que queria ir para minha
casa, que estava com saudades da minha mãe. Ela disse
que faltavam apenas dois dias para meu pai vir me
buscar, e fomos lá fora colher peras para fazer doce.
Foram os dias mais longos da minha vida. Eu não queria
ficar mais na casa com minha avó, então ia junto com
minha tia trabalhar. Ela era babá, e quando chegávamos
em casa, eu procurava ficar sempre perto das minhas tias
ou da minha avó. Tinha medo que meu tio tentasse algo
novamente. Minha felicidade foi no sábado à tarde,
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quando meu pai veio me buscar. Nunca contei nada a
ninguém sobre isso, sobre a tentativa de a***o.
Simplesmente apaguei da minha mente e guardei em
uma caixinha dentro do meu inconsciente. Mas o que eu
não sabia é que mais tarde isso iria me afetar
emocionalmente.