Nice. Aeroporto privado. Thierry, o piloto, já me esperava ao lado do Falcon 7X, aquela ave branca de guerra com alma de tempestade. O jato parecia impaciente, como se sentisse minha urgência. Thierry estava de óculos escuros, mesmo no breu, com aquele ar de eficiência que os homens treinados pela Legião Estrangeira carregam como cicatriz invisível.
— Está tudo pronto, Don Mancuso — disse, erguendo a voz acima do assobio do vento. — Plano de voo aprovado: Tangier, depois direto pra Boston. O tempo está limpo, vento a favor. Se Deus quiser, nove horas no máximo.
Eu o encarei por um segundo.
— Deus não vai ajudar hoje, Thierry. Mas o d***o me deve alguns favores.
E então subi os degraus da escada retrátil sem olhar para trás.
O interior do Falcon era silencioso. Um templo em pleno voo. Madeira escura envernizada, bancos de couro creme, iluminação âmbar estrategicamente colocada para esconder o cansaço de quem carrega o mundo nas costas. Tudo era sofisticado, impecável, feito para agradar homens que comandam impérios e não dormem por medo de perder o trono.
Mas todo esse luxo era lixo perto do que eu queria. Não era champanhe francês, nem tapete persa.
Era o coração dela.
A respiração dela.
A certeza de que eu ainda podia chamá-la de minha.
A bordo, liguei o notebook. Rastreadores, mensagens criptografadas, satélites. A equipe em Nova York me atualizava. Nada dela. Mas também nenhum corpo encontrado.
O que, no meu mundo, já é um milagre.
Serviram-me café. Não toquei.
O estômago estava travado. Não era medo.
Era raiva com culpa.
Eu devia ter trazido Catarina pra Roma. Devia ter escolhido ela.
— Don Mancuso — Thierry me chamou pelo interfone da cabine — estamos a vinte minutos do solo marroquino. Reabastecemos em menos de dez. E depois, direto para Boston.
— Me avise no minuto em que estivermos no ar de novo — respondi. — Cada segundo conta.
Sentei de novo. Voltei a assistir o feed dos arredores do supermercado de onde seu carro saiu.
Uma imagem. Um vulto de mulher, barriga grande, entrando num carro. Parecia ela. Mas não era.
Maldição.
O Falcon pousou com precisão em Tangier. Reabastecimento de 7 minutos. Um milagre. Matteo tinha mesmo comprado um anjo.
E então, de volta ao ar.
Céu escuro ainda. Mas do tipo que anunciava aurora. A parte mais traiçoeira do dia. Quando tudo parece calmo, e é exatamente aí que a guerra começa.
Boston estava a cinco horas.
Nova York, a seis.
E ela... cada vez mais próxima.
Quando voltamos à altitude de cruzeiro, liguei novamente para Matteo.
— Novidades?
— Pode usar nossa rede diplomática. Falsos credenciais. Nome limpo. Ninguém saberia que Dante Mancuso pisou ali.
— E Catarina?
— Ela foi vista entrando num carro preto na frente do prédito do Adam Scott. Um particular, isolado. Segurança mínima. Mas há movimentação estranha nos arredores.
— Armadilha?
— Pode ser. Ou só Catarina saindo da toca.
— Alguém mais sabe?
— Ainda não.
— Certifique-se disso — falei. — Preciso também que pegue Adam.
— Já foi feito.
— Então confirme com ele algumas informações.
— Quais?
— Primeiro, o que ela queria com ele, a ponto de ter passado a noite na casa dele. E segundo, garanta que ninguém chegue perto de Catarina. Porque se alguém a machucar antes de eu chegar, eu transformo Nova York num campo de execuções públicas.
Matteo não respondeu. Sabia que eu não estava exagerando, conhecia muito bem seu irmão.
E quando tiram de mim o que é meu, eu não peço de volta. Eu arranco.
***
Horas depois, sobrevoávamos a costa leste dos Estados Unidos. O rádio comunicava que os ventos haviam mudado. Pequenos atrasos. Não pra mim.
— Preparando para a aterrisagem, Don Mancuso. — Informou Thierry.
— Ótimo. Já providenciem o helicóptero. Não quero perder nem dez minutos.
— E quanto aos federais? Se sua entrada for sinalizada... — Começou Thierry, preocupado.
— Use o nome da lista diplomática. Se alguém perguntar, diga que sou o embaixador da pressa.
Ele riu. Eu não.
O Falcon começou sua descida. Boston estava logo abaixo. Um helicóptero nos esperava para o transporte final. De lá, com uma SUV blindada já esperando, cruzaria o trecho final por terra.
Estava prestes a recuperar o que é meu.
****
A chuva caía com uma precisão quase cirúrgica, lâminas líquidas deslizando pelo para-brisa da SUV blindada enquanto cruzávamos a Quinta Avenida como um fantasma moderno. Nova York parecia em luto naquela manhã: as luzes refletidas nas poças d’água, as silhuetas de prédios dissolvidas em névoa. Tudo ao meu redor era frio, molhado e incômodo. Como eu.
O couro do banco estalava sob meus dedos enluvados. A cidade inteira parecia respirar contra mim. O trânsito era escasso, apenas o ronco grave do motor e o zumbido das palhetas quebrando o silêncio tenso dentro do carro.
Foi então que o telefone vibrou no meu paletó.
Na tela: Matteo.
Atendi com um murmúrio seco:
— Então?
Do outro lado, a voz do meu irmão veio firme, controlada. Como sempre. Mas havia um peso estranho nela. Um desconforto que não combinava com o homem que fazia cadáveres desaparecerem como moedas de mágica.
— Confirmamos com Adam.
O nome soou como um soco.
Adam.
Engoli a saliva, amarga como aço oxidado.
— Sim? — pressionei, embora minha mandíbula já estivesse cerrada. — Ela estava lá?
— Passou a noite — Matteo disse.
O sangue correu rápido demais dentro do meu peito. A SUV virou na Madison. O motorista não ousava olhar pelo retrovisor, mas eu sentia a tensão no ar. Como se até o carro soubesse que algo dentro de mim tinha acabado de rachar.
— Ótimo — respondi, seco, com veneno escorrendo nas sílabas. — Ótimo. E por que ela fez isso, hein?
Matteo ficou em silêncio por um segundo. O tipo de pausa que ele só fazia quando precisava me proteger de mim mesmo.
— Pelo que descobrimos... ela achou que estava sendo seguida.
Eu fechei os olhos por um momento. Uma raiva quente percorreu minha espinha.
— Isso eu sei. Éramos nós — rosnei. — Por que, diabos, ela iria pra casa dele?
— Encontraram-se por acaso. Mercado local. Um deles reconheceu o outro.
Um deles reconheceu o outro.
Como se fosse qualquer coisa. Como se fossem estranhos. Como se ele não fosse um passado de Catarina que eu jamais quis ver colado a ela.
— Por que Adam? — perguntei de novo, a voz falhando por um segundo, como se estivesse sendo moída entre dentes.
— Então, Dante — Matteo começou, dessa vez mais lento, mais cauteloso. — Conforme seguimos interrogando ele, Adam aacabou confessando uma coisa.
Silêncio. Total.
As gotas de chuva tamborilavam o teto como dedos batendo numa porta de madeira maciça. Do lado de fora, a cidade dormia. Aqui dentro, eu estava em combustão.
— Qual informação? — perguntei.
O carro entrou na Lexington. As luzes verdes refletidas no vidro pareciam dançar em câmera lenta sobre meu rosto. E então, Matteo, do outro lado da linha, disse:
— Ela está grávida.
O mundo parou. A chuva, as luzes, o carro. Tudo congelou. Como se Nova York, com seus milhões de habitantes, segurasse a respiração junto comigo.
— Repete — sussurrei.
— Catarina. Está. Grávida.