CAPITULO 30

1781 Palavras
DANTE A colher girava na panela com lentidão. Um movimento hipnótico, quase ritualístico. Frango desfiado, caldo dourado, legumes bem cortados, alho e um toque de limão. Receitas antigas, da minha mãe. Da Calábria. Do tempo em que eu ainda não era um homem que mandava matar. Um tempo em que eu era só Dante. Mas esse homem… morreu faz muito tempo. Terminei a sopa, desliguei o fogo e enchi o prato fundo com precisão. O aroma subiu em espirais lentas, quentes, pungentes. Um cheiro que evocava casa, família, amor. Ironia — considerando que eu estava prestes a entrar em um quarto onde mantinha a mulher que amava presa, como um troféu de guerra que se recusava a ser conquistado. Quando saí, dois dos meus homens estavam encostados ao lado da porta. Cochichavam, nervosos, olhando ora para o prato nas minhas mãos, ora para a porta. Covardes. Sabiam o que havia acontecido com o último que tentou alimentá-la. O rosto dele ainda cheirava a caldo de frango e humilhação. — Arranjem uma balaclava — ordenei, sem olhar para eles. — Don Mancuso… o senhor vai entrar? Parei. Virei devagar. Um olhar bastou. — Vocês estão se tremendo de medo de uma mulher. Eu a ensinei bem demais, pelo visto. Eles sumiram pelo corredor, tropeçando um no outro. Minutos depois, retornaram com a máscara. Vesti-a devagar, prendendo bem nas laterais. A máscara era preta, cobrindo tudo exceto meus olhos e boca. Ajeitei-a no rosto, respirei fundo e peguei a bandeja com a sopa. A porta se abriu com um chiado baixo. A luz do quarto era suave, indireta. Catarina estava lá. Catarina. Meses haviam se passado desde que eu a vira assim, tão perto. Mesmo magra, pálida, com olheiras, ela irradiava a mesma força de sempre. Aquela mulher não havia se dobrado a mim, nem ao tempo, nem à fome. E ainda assim… ali estava ela. Presa, cansada, e grávida. Minha garganta se apertou. Dei alguns passos e me ajoelhei diante dela. A sopa tremia levemente na colher, mas não minhas mãos. Eu ainda era o Don. Ainda era Dante Mancuso. E eu estava ali para salvá-la… mesmo que ela nunca entendesse. Ela ergueu uma sobrancelha e sorriu de lado. — Finalmente… alguém que entende com quem está lidando. A voz dela era baixa, rouca, quase debochada. Uma lâmina embebida em veneno. Silêncio. Eu não consegui responder. Vê-la ali, encarar-me com tanto ódio, tão lúcida… e ainda assim tão frágil… algo me desarmava por dentro. Peguei uma colherada da sopa e estendi na direção dela. Delicadamente. Como se ela fosse feita de vidro. — Não estou com fome — disse ela, virando o rosto. Mentira. O estômago dela havia roncado assim que entrei. Eu ouvira. Os monitores haviam captado. Ela estava faminta. Mas era orgulhosa. Sempre foi. Observei cada detalhe do rosto dela, cada pequena tensão. Os olhos castanhos, puxados, atentos. De repente… vi algo. Um lampejo. Um reconhecimento. Ela estava tentando entender quem eu era. — Onde está Adam? — perguntou, firme. Silêncio. — Onde. Está. Adam? Ainda não falei. A colher continuava estendida. Os olhos dela se apertaram. — Quem é você? Vai me dizer… ou vai continuar brincando de cuidador de asilo? Minha mandíbula travou. Queria sorrir. Queria dizer “sou eu, p***a, Dante! Teu inferno e teu paraíso”. Mas me contive. Ela me forçava a jogar no território dela. E ela sabia fazer isso. Respirei fundo. Retirei a colher, fiquei de pé. Ela ergueu o queixo, desafiadora. Minha sombra a cobriu. Segurei sua cabeça com firmeza, mas sem brutalidade. A outra mão trouxe a colher de volta. Ela se esquivou. Eu acompanhei. Ela fechou a boca. Eu pressionei. Ela lutou. Mas eu sabia os limites. Sabia como não machucá-la, mesmo contrariando sua vontade. E então ela cedeu. A colher entrou. Sopa quente. Densa. Por um segundo, pensei que ela cederia. Mas não. Ela cuspiu. Com fúria. O líquido atingiu minha máscara, escorreu pelo peito. Ela gargalhou. Uma gargalhada seca, c***l, deliciosamente odiosa. — Vocês estão longe de me vencer, sabiam? Fiquei imóvel. Por dentro, a raiva queimava como ácido. Não por ela cuspir. Mas porque mesmo presa, desnutrida e grávida… ela ainda conseguia me reduzir a um homem comum. Um homem ferido. Um homem que amava demais. Deixei o prato sobre a mesinha. Saí. A porta fechou com um estalo. Do lado de fora, os capangas me olharam, tensos. Eu os encarei. O silêncio do corredor era denso como chumbo. — Acabem com isso — disse. — Don, como...? Virei devagar, o olhar de quem havia perdido a paciência com a incompetência alheia. — Prestem atenção. — Minha voz era gélida. *** A primeira vez que ela respondeu “não”, eu pensei que era orgulho. A segunda, achei que era teimosia. Na décima, percebi que era resistência. Mas agora... agora era desespero. Aquela palavra — não — era tudo o que restava dela. Desde que o bilhete foi deixado ao lado da poltrona onde a mantínhamos — uma pergunta simples: “Está pronta para negociar, Signorina Piromalli?” — essa tinha sido a única resposta. Não. Sempre não. Era sua arma. Sua trincheira. Sua última fronteira. Dia após dia, ela se negava a comer. Se negava a falar. Se negava a qualquer coisa que representasse rendição. Como se o simples ato de aceitar uma colher de sopa significasse perder. Como se o líquido que poderia manter seu filho vivo fosse veneno, e o orgulho dela, o antídoto. E eu… assistia. A cada manhã, a cada noite, do outro lado das câmeras. Vendo-a murchar como uma flor arrancada do caule, mesmo sabendo que seu corpo guardava vida. Uma ironia c***l. Minha rotina era uma só: monitorá-la. Analisar cada olhar. Cada suspiro. Cada silêncio. Catarina, minha mulher, minha adversária, meu castigo. Os outros achavam que era obsessão. Talvez fosse. A primeira a entrar no quarto todos os dias era Sindy, a enfermeira obstétrica. Loira pálida, olhos fundos, mãos firmes. O tipo de mulher que já vira demais. Ela sempre dizia “bom dia, Catarina”, como se estivesse em uma clínica de repouso, não em um cativeiro de luxo. Chamava-a de “querida”, “filha”, como se essas palavras pudessem suavizar as agulhas que vinha trazer. Catarina a odiava. Era visível. Um ódio calado, gélido, que nascia da consciência de que aquela mulher, embora gentil, era cúmplice. Depois vinha o capanga i****a — o do canudo. O primeiro que ela viu ao acordar. O mais burro. Ela o desprezava com requintes de sarcasmo. E ele sabia. Ficava desconcertado só de estar no mesmo ambiente que ela. O terceiro era o pior. Luca. Frio. Profissional. Foi ele quem respondeu, pela primeira vez, que Adam estava vivo. “Ele ainda respira.” Frase curta. Seca. Um soco em forma de palavras. Às vezes, ele mostrava imagens. Breves. Uma tortura visual. Adam amarrado, ferido, com os lábios rachados. Uma vez, arrastado pelo corredor. Catarina tentava gritar. Mas a garganta seca só produzia um ruído rouco, miserável. Eu a vi morder o lábio com força até sangrar. E o quarto… era eu. Com a maldita balaclava. O capuz n***o ocultava minha identidade, mas não minha intenção. Eu me ajoelhava. Trazia a sopa. Forçava a colher entre seus lábios. Às vezes, conseguia que ela engolisse. Outras vezes… ela cuspia em mim. Certa vez, escorreu sopa pelo tecido da máscara. O cheiro ficou impregnado por dias. Mas eu não reagia. Porque cada recusa dela doía mais do que qualquer cuspida. Catarina estava morrendo. E eu estava começando a entender que talvez a estivesse matando. No quarto dia, a rotina se quebrou. Eu não consegui mais assistir. A maçaneta girou mais cedo. Eu, Sindy e o capanga entramos. Catarina ergueu o rosto de imediato, como um animal que pressente a caça. — O que é isso? — perguntou com a voz rouca, os olhos arregalados. Não respondi. Luca foi o primeiro a agir, soltando os velcros que prendiam seus pulsos ao braço da poltrona. Sindy veio logo atrás, com a bandeja metálica, seringas, frascos, um suporte de soro. — Eu disse que não vou comer — ela cuspiu. — NÃO! — Catarina, você precisa — disse Sindy, a voz tremendo. — EU DISSE QUE NÃO! Mas nós já sabíamos disso. E eu também já sabia: se não fizéssemos nada, ela perderia o bebê. Ou pior… morreria junto com ele. Sindy tentou o braço direito. A agulha entrou. Catarina gritou, arrancou. O jato de sangue sujou a manga branca da enfermeira. — p***a, Catarina! — murmurou Luca. Tentamos o braço esquerdo. Mesmo resultado. Agulha no chão, sangue, desespero. — Ela vai matar essa criança — disse Sindy, com a voz embargada. — Então enfia no pé — respondeu Luca, como se fosse simples. Prendemos os tornozelos. A veia do pé era mais difícil. Três tentativas. A terceira funcionou. O soro começou a escorrer, gota a gota. Um silêncio pesado se instalou no quarto. Luca saiu, irritado. Sindy terminou o procedimento e se virou para Catarina. — Você é teimosa demais. — E você uma vaca submissa demais — Catarina respondeu, seca. — Aposto que nunca escolheu nada na vida. Só seguiu ordens. Sindy engoliu em seco. Saiu. Ficamos só nós dois. Eu puxei uma cadeira. Sentei diante dela. Por alguns segundos, tudo o que fizemos foi nos encarar. Como duas peças de xadrez paradas, aguardando o próximo movimento. — Vai ficar aí me olhando até eu dormir? — ela perguntou. Continuei em silêncio. — Acha que se conseguir manter o bebê vivo vai vencer, é isso? Vai me dobrar? Me fazer ceder? Nada. Ela fechou os olhos por um momento. Respirou fundo. Eu vi quando a lágrima ameaçou cair. Mas ela a engoliu. Como tudo o que a machucava. — Você sabe com quem está lidando, não sabe? Inclinei levemente o corpo. — Você é igual a ele… — ela sussurrou. — Igual ao Dante. O mesmo olhar de aço derretido. O mesmo silêncio de quem carrega pecados demais. Minha mandíbula se contraiu. Ela percebeu. Sorriu de canto. — O que você quer, hein? Que eu implore? Que eu diga que me arrependo? Levantei. Dei a volta por trás da poltrona. Conferi o soro. Estava fluindo bem. Ajustei a agulha. Prendi com um esparadrapo. Ela então disse, num tom baixo, quase como uma criança perdida: — Por quê? Parei. Quis responder. Mas não consegui. Inclinei-me. Nossos olhos se encontraram por entre os fios desalinhados do cabelo dela. E então, apenas… saí. A porta se fechou atrás de mim com um estalo surdo. Ela ficou sozinha. Mas mesmo com o corpo longe, minha alma… ainda estava sentada naquela poltrona com ela.
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