Eu me recostei na cadeira, cruzando a perna com calma estudada. O couro rangeu sob o meu peso. Queria que ele sentisse o tempo escorrer como ácido. Queria que cada segundo arranhasse o orgulho dele.
A lâmpada pendurada balançava devagar, projetando uma sombra na parede que parecia maior do que nós dois juntos. Adam estava amarrado na cadeira de metal, os pulsos presos tão apertados que a pele começava a mudar de cor. O rosto dele parecia uma paleta de hematomas: roxo, vermelho, amarelo. O canto da boca rasgado. Um fio de sangue escorria pelo queixo. Mas ainda havia arrogância na postura dele. Eu reconhecia aquilo porque já me vi assim: um homem que prefere morrer a admitir que tem medo.
Ele ergueu o rosto. Os olhos buscaram os meus, desafiando.
— O que você quer, Dante Mancuso?
A voz dele soou rouca, ferida. Mas firme. Eu podia respeitar isso, se não odiasse cada célula daquele desgraçado.
Inclinei a cabeça de leve, como quem pondera uma pergunta inocente. Meus dedos tamborilaram no braço da cadeira. Eu sentia o pulso disparado na ponta dos dedos. O meu. O dele.
— Eu quero saber se você dormiu com a Catarina.
O silêncio que se seguiu pareceu se estender por horas. Adam franziu a testa, como se não tivesse certeza se ouvira direito.
— Quando? — Ele tossiu. — Dante… você esqueceu que eu e ela fomos noivos? Se tinha uma coisa que fazíamos muito era dormir juntos... E com dormir juntos, quero dizer...
A paciência me escapou como um fio rompido.
— Vocês não eram noivos. Não chegaram nem perto disso. — Eu cuspi as palavras.
Ele respirou fundo. Vi o maxilar dele endurecer.
— Eu já tinha o anel. — Ele ergueu o queixo, desafiando. — Pretendia dar a ela naquela noite.... mas aí vocês a sequestraram... e tudo mudou.
O gosto amargo do ciúme subiu pela minha garganta, queimando.
— E mesmo assim… — Me inclinei sobre ele, sentindo o hálito dele se chocar com o meu. — Você nunca pediu.
Adam sorriu com uma coragem i****a.
— Quer que eu peça agora?
A frieza me abandonou. Eu me inclinei de uma vez, com calma calculada, e enfiei a mão na parte interna da coxa dele. Meus dedos encontraram o ponto que eu procurava — o nervo, frágil como um segredo — e comecei a torcer. O polegar afundou na carne até sentir a pulsação disparar contra a ponta do dedo.
A reação dele foi imediata. O corpo inteiro se arqueou. Um grunhido rouco escapou da garganta dele, misturado com um soluço involuntário.
— Não banca o engraçadinho comigo — eu disse, com a voz baixa, a respiração saindo quente entre nós. — Não hoje.
Ele arfava, tentando recuperar a fala.
— Você… — ofegou — precisa… ser mais… específico.
— Então vou ser — murmurei. Apertei de novo, sentindo o nervo vibrar sob a pele dele. — Há quanto tempo vocês se encontravam?
Adam fechou os olhos, como se fosse preciso reunir força pra falar.
— Meses — disse ele, enfim, a voz áspera. — Eu e a Catarina não nos vemos há meses. A primeira vez que a vi depois de tudo foi no supermercado. Eu estava com a minha noiva. Você deve saber que eu tenho uma noiva...
— Eu sei. — Me recostei, sem tirar os olhos dele. — Mas o noivado poderia ser só um disfarce.
— Disfarce? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Pra quê, Dante?
— Pra acobertar o plano de vocês. — Eu disse aquilo quase em tom de constatação.
Adam soltou uma risada sem humor.
— Plano? Que plano? Você está completamente maluco!
Meus dedos afundaram ainda mais, até a pele dele ranger sob a pressão. O grito dele encheu o subsolo. Ele tentou se afastar, mas estava preso. Peguei o queixo dele com a outra mão, forçando o rosto pra cima. O medo começou a aparecer nos olhos dele.
Deslizei o polegar pelo osso da mandíbula, apertando até ele ranger os dentes.
— Eu pareço maluco pra você?
O silêncio entre nós era cortado só pela respiração dele, áspera.
— Cada vez mais — sussurrou ele. — Eu e a Catarina não tínhamos plano nenhum.
— Então me diz — falei baixo. — Por que ela passou a noite na sua casa?
Adam fechou os olhos, e por um instante, pareceu derrotado.
— Porque ela achava que estava sendo seguida. — O olhar dele encontrou o meu. — Eu disse que ela podia dormir lá. Como amigo. Mais nada.
Eu não suportava ouvir aquela palavra sair da boca dele.
— Amigos? — Apertei a base do pescoço dele, contra a carótida. Vi a pele mudar de cor. — Amigos costumam dormir juntos?
O olhar dele se turvou, o rosto ficando vermelho.
— Pelo visto até irmãos dormem… — ele arfou.
A raiva me subiu como fogo. Apertei mais. Vi os olhos dele se revirarem. O peito dele subia e descia rápido, tentando desesperadamente puxar ar. Ele começou a lutar contra a corda nos pulsos, um esforço inútil.
— Catarina estava com medo — disse ele, a voz saindo entrecortada. — Precisava de um lugar seguro. Eu... eu não ia deixar ela sozinha. Foi só isso.
Soltei a pressão. O corpo dele caiu contra o encosto da cadeira, arfando como um peixe fora d’água. Me recompus, ajeitei o paletó.
— Generoso da sua parte — murmurei.
Ele ergueu o rosto, o olhar enevoado pela dor.
— Eu só fiz o que qualquer homem decente faria. — A voz dele saiu rouca. — Além disso… ela confiava em mim.
Eu encarei Adam como se pudesse ver através da pele dele, como se toda a verdade estivesse gravada embaixo daquele peito. A pergunta saiu antes que eu pudesse contê-la.
— E você acha que ela confiaria tanto a ponto de fugir com você sem deixar rastro?
Ele hesitou. Um segundo. Um olhar vago.
— Ela me convidou. — disse.
— Convidou?
— Naquela manhã. Antes de vocês me sequestrarem. Ela queria que eu fugisse com ela — disse Adam. — Mas antes que você avance em mim… eu recusei.
O mundo parou. Por um instante, nada se moveu. Eu pensei em tudo o que ela tinha dito, tudo o que não tinha dito.
— Por quê? — perguntei. — Por quê, Adam?
— Por vários motivos — ele respondeu. — Eu tenho minha vida, tenho uma noiva… — Ele respirou fundo. — Mas no fundo… teve algo maior que tudo isso. E você sabe o que é.
Eu o encarei. As mãos fecharam em punhos nos braços da cadeira. As veias latejavam. Eu precisava ouvir da boca dele.
— Você acha que a Catarina não me amava?
Ele abaixou o olhar. O silêncio dele foi um golpe.
— Eu não acho — disse, num sussurro rouco. — Eu tenho certeza. Por isso eu não aceitei fugir com ela. Mas se eu tivesse aceitado… ela teria ido. — Ele ergueu o rosto, pálido. — Se você não acredita… pergunte a ela. Em Roma. Onde ela deve estar agora.
Meu sorriso foi pequeno. Triste, até.
— Você se engana — murmurei. — A Catarina não está em Roma.
Adam franziu a testa.
— O quê?
— Isso mesmo — falei, cada palavra saindo como uma lâmina. — Ela está aqui. Neste prédio. Vários andares acima de nós.
O terror começou a se insinuar nos olhos dele.
— Você… você a trouxe aqui? Você a sequestrou? Ela está bem?
— Ela está segura — respondi.
— Se você encostar um dedo nela… — A voz dele subiu um tom, quase histérica. — Se você machucar um fio de cabelo dela…
Eu sorri com uma lentidão c***l.
— Você se preocupa tanto assim com ela, Adam?
— Claro que me preocupo! — Ele cuspiu as palavras. — Eu… eu…
— Você a ama? — perguntei.
O silêncio que veio foi absoluto. Um silêncio que encheu todos os cantos daquele porão. Os olhos dele caíram no chão. Não precisavam responder.
Aquilo bastava.
Eu me aproximei, com a respiração controlada. Inclinei o rosto até sentir o medo dele no meu hálito.
— A Catarina está grávida — falei. — E você sabe que o filho é meu.
O som que ele fez foi um soluço seco, de puro choque.
— O quê?
— Isso mesmo — sussurrei. — Grávida. De um filho meu. Um filho que vamos criar juntos.
Ele respirou fundo. Tentava manter a postura, mesmo ferido. Típico de quem acreditava estar do lado certo da história.
— Você a sequestrou. — ele cuspiu. — Está mantendo ela contra a vontade. Está… — ele se calou por um momento, exausto — …está machucando ela... Acha mesmo que ela quer criar essa criança com você?
— Você não faz ideia do que somos um para o outro. — minha voz saiu mais baixa agora, mas com veneno destilado. — Ela acredita que estou morto... é só por isso que ela foi até você, que ela confiou em você. E sabe de uma coisa? — Me inclinei ainda mais, até meus lábios roçarem a pele dele. — Quando ela souber que eu voltei… que eu lutei por ela… vai entender que tudo isso foi pra proteger o que é nosso.
— Ou vai odiar você — disse ele. — Ainda mais quando descobrir que você a trancafiou aqui. Que você sequestrou nós dois como algum lunático obcecado. — Ele ergueu o queixo, como se aquilo fosse tudo que ainda tinha pra oferecer. — Vai olhar na sua cara e desejar que você tivesse ficado morto.
Minha mão tremeu. Levemente. Mas o suficiente para que eu a sentisse.
Levantei devagar, dei a volta na cadeira, e parei atrás dele. A tensão no ar ficou densa. Quase sólida.
— Você não faz ideia do que está dizendo. — sussurrei perto de sua orelha. — Não sabe nada sobre ela. Nada do que ela já fez. Do que é capaz.
— E você sabe? — ele virou a cabeça com esforço. — Você a entende? Porque se entendesse… não estaria mantendo ela presa como um bicho. Se você a amasse mesmo… teria ido até ela como homem. Não como um fantasma. Ela merece alguém que a trate com respeito.Com cuidado. Coisa que você claramente não é capaz.
— Respeito — repeti, quase num sussurro. — Cuidado. — Meus lábios se contraíram num sorriso que não tinha humor. — Você acha que eu não cuidei dela? Que não respeitei o que ela era? Você não tem ideia do que a Catarina precisou enfrentar… e de quem ficou ao lado dela quando ninguém mais ficou.
Adam ficou imóvel. A tensão no ar era tão espessa que parecia queimar meus pulmões.
— Você vai acabar destruindo ela — disse ele, a voz mais baixa. — E quando isso acontecer… vai se dar conta que esse amor todo era só medo. Medo de ficar sozinho e que tirou dela aoportunidade de ficar com quem realmente a amava. Você está tirando essa oportunidade dela. A escolha dela.
— Ela me escolheu todas vezes. — Minha voz saiu fria. — Diferente de você.
Soltei os ombros dele e voltei a me sentar na cadeira. Nossos olhares se encontraram outra vez. Por um instante, tive certeza que ele ia falar alguma coisa que pudesse acabar comigo. Mas ele só respirou fundo, os olhos cansados, e abaixou a cabeça.
Eu fiquei ali parado, observando o modo como o peito dele subia e descia. Queria que ele entendesse que não havia volta. Que tudo já estava decidido.
— Quando ela descobrir — disse por fim — vai saber que estou aqui. Vai me olhar nos olhos. E vai lembrar tudo o que vivemos. — Minha voz endureceu. — Vai lembrar quem ela pertence.
Adam ergueu o rosto, a expressão partida entre raiva e compaixão.
— E se ela escolher não ser de ninguém? Ops, ela já escolheu isso.
Eu fiquei em silêncio por um instante.
Ele estava certo.
Eu sabia.
Mas isso não mudava nada.
— Diga-me, Adam… — contornei e me abaixei à sua frente, olhando direto no único olho que ainda funcionava. — Você a ama? Verdadeiramente?
Ele hesitou. E então, com a voz baixa, mas firme, disse:
— Sim.
Fechei os olhos por um instante.
Respirei.
Então sorri.
— Que bom.
Levantei-me. Bati duas vezes na porta.
Ela se abriu.
— Tragam gelo para o olho. Água. E comida decente. — ordenei.
Os homens me olharam, confusos.
— E ninguém encosta mais um dedo nele. Ele vai viver. Até o fim. — olhei por cima do ombro. — Porque eu quero que ele veja tudo. Quero que ele saiba, no dia em que ela souber a verdade, quem ela escolheu.
Dei um passo para fora. A porta se fechou atrás de mim.
Mas não ouvi tranca alguma.
Adam ainda estava ali.
Mas agora… também estava minha dúvida.
Porque se ela escolher ele — pensei, enquanto o elevador me levava de volta à superfície — será que ainda existe um lugar para mim no mundo?
Ou será que,para ela, eu já estou morto há muito tempo a ponto dela não me querer mais?