Capítulo 04

1054 Palavras
THAIS NARRANDO Depois que consegui arrumar ele ali no canto do porão, saí apressada, fechei a porta com força e senti meu coração disparar. Ele perdeu muito sangue… muito. Mas algo em mim dizia que talvez ainda houvesse tempo. Talvez, se eu me apressasse, ainda desse pra salvá-lo. Pulei o portão com cuidado, tentando repetir os mesmos movimentos da ida. Mas meu vestido prendeu num dos ferros pontiagudos e se rasgou com um estalo seco. Bufei, ofegante. Por um segundo achei que ia me machucar, mas graças a Deus não foi nada. Corri até o meu quarto e peguei a mala que ficava em cima do guarda-roupa. Era uma mala antiga, com algumas coisas que eu usava quando ia pra faculdade. Sempre deixei ali, por precaução. Nunca pensei que fosse precisar... e muito menos assim. Já fazia quase um ano que não mexia nela. Arrastei a mala até o portão e comecei a passar por entre os vãos da grade tudo que eu sabia que ia precisar: Soro, equipo, agulhas descartáveis, luvas, álcool. Voltei pro quarto, peguei duas toalhas limpas no armário e, com o coração apertado, pulei de novo o portão. Meus músculos já estavam tremendo de exaustão, mas eu não podia parar agora. Voltei pro porão com tudo nas mãos. Acendi a luz fraca e ali estava ele... quase sem respirar. O tempo parecia correr contra mim. Peguei o soro e a primeira coisa que fiz foi olhar a data de validade. — Droga... vencido. Fiquei paralisada por uns segundos. Usar soro vencido pode causar infecção. Mas... não fazer nada? Ele podia morrer também. Me ajoelhei ao lado dele, respirei fundo e coloquei as luvas. Tentei pegar uma veia no braço, mas a primeira estourou. Minhas mãos tremiam. Não era medo... era pressão. Era a urgência de salvar uma vida, com poucos recursos e quase nenhum tempo. — Você precisa aguentar… — murmurei, mais para mim mesma do que pra ele. Consegui pegar uma veia na mão. O soro começou a gotejar. Era um pequeno alívio no meio do caos. Comecei a examinar os ferimentos. O corte parecia profundo. Feridas de faca, com certeza. Mas… se tivesse atingido algum órgão vital, ele já teria partido. Então talvez… talvez ainda houvesse chance. Pensei rápido. Meu sangue é O negativo. Posso doar pra qualquer um. Não sei se vai ser o suficiente, não sei se vai dar certo, mas... Vou tentar. Porque se eu não fizer nada… A culpa de ter deixado esse homem morrer vai pesar pra sempre nas minhas costas. Improvisar uma transfusão de sangue nunca foi algo que pensei que faria na minha vida. Mas ali estava eu, com uma agulha enfiada no meu braço e outra no dele, fazendo o sangue escorrer direto por gravidade, sem bomba, sem controle, só fé. Enquanto o soro gotejava de um lado, do outro eu dava pontos nos cortes mais fundos com a mão firme ou, pelo menos, tentando manter firmeza. O pano manchado de sangue, o cheiro de álcool, o som abafado da respiração fraca dele... tudo se misturava. O tempo parecia não existir ali. A hora passou voando. Quando olhei lá pra fora pela janelinha coberta de poeira do porão, o céu já tava laranja-avermelhado. O sol se escondendo e o medo tomando espaço dentro de mim. Tô me sentindo fraca. Acho que acabei doando sangue demais. Minhas mãos tão geladas. Meus joelhos, moles. Mas pelo menos... ele ainda está vivo. O peito sobe e desce com mais constância. Os batimentos, ainda baixos, mas ritmados. Por mais que meu corpo estivesse dizendo "descansa", e meu coração quisesse ficar ali até ele abrir os olhos, eu sabia que tinha que sair dali. Emerson deve estar chegando. E se ele me pega mexendo com isso com sangue, seringa, homem escondido eu sei exatamente como minha noite termina. E não é bem. Aproximei minha mão da dele. Grande, calejada. Não parecia um homem velho. Talvez trinta e poucos. Quem é ele? Por que foi jogado naquele estado? E por que justo eu? Segurei sua mão por um instante, como quem pede desculpa por ter que ir. — Aguenta só mais um pouco, tá bom? Você vai ficar bem… — sussurrei. No mesmo instante, senti meu corpo se arrepiar inteiro, como se tivesse levado um choque. Soltei a mão dele rápido e balancei a cabeça, me obrigando a focar. Tranquei o porão com cuidado, escondi a chave no lugar de sempre, pulei o portão com os últimos fios de energia que me restavam e fui pegar a mala que ainda estava do lado de fora. Quando entrei em casa, a primeira coisa que fiz foi olhar o relógio da parede. Meu coração disparou. Faltava pouco pra ele chegar. E eu não tinha feito nada. Nem a casa, nem a comida. Nem um banho eu tinha tomado. Corri até o quarto, joguei a mala de volta em cima do guarda-roupa. Peguei a vassoura com as mãos tremendo e comecei a varrer o chão com a maior pressa do mundo. Depois um pano úmido com desinfetante, pingando pelo chão só pra deixar o cheiro e parecer que eu tinha limpado. A casa nem tava suja como sempre porque ele faz questão de dizer que, como eu fico "à toa o dia inteiro", o mínimo que eu tenho que fazer é deixar tudo impecável. E hoje… eu falhei. Terminei de passar o pano, corri pra cozinha e fui direto pra pia lavar os poucos copos que estavam ali. O som do carro dele parando do lado de fora fez meu estômago virar. Minhas mãos gelaram. Corri até a geladeira, peguei tempero, alho e cebola. Abri o armário e puxei o feijão com força, quase deixei cair. Rasguei o pacote, joguei na panela ainda seca, só pra fazer parecer que estava preparando. Ele sempre diz que “mulher do lar tem que estar cheirosa e com a janta no fogo quando o marido chega”. Hoje eu nem consegui tomar banho e acabei de perceber que tem sangue no meu vestido. Enquanto mexia a colher dentro da panela, fingindo que tava refogando alguma coisa, tentei controlar a respiração. Porque, se ele perceber… Se ele notar qualquer detalhe fora do lugar… Eu não sei o que ele vai fazer, E pior… Nem sei se vou ter forças pra me defender.
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