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1143 Palavras
Penélope/Esther narrando Meu nome de RG é Esther. Quem me chama de Penélope é o morro. Tô de frente pro espelho do banheiro desse hotel frio da Barra, neon amarelo na moldura, maquiagem perfeita pra nada e coração todo errado. Vesti o primeiro vestido que vi na mala, verde, decote que me lembra quem eu sou quando o mundo tenta me apagar. Cabelo liso até a cintura, mega escovado, perfume caro grudado no pescoço como se fosse santo. Na cintura, escondida por baixo da barra, minha arma. Eu posso tá fora do morro, mas eu nunca tô desarmada. Quem me botou aqui foi ele. “Desce agora, amor. Some. Hotel. Nome frio. Silêncio.” Quando o X9 cantou a bronca, o Thiago me olhou daquele jeito que atravessa, sem precisar aumentar a voz, e eu obedeci rosnando por dentro. Botei duas blusas, um biquíni, dinheiro, documento e sumiu. Primeira dama também segue ordem quando a ordem é dele. A TV é grande e burra. Mostra tudo e não sente nada. “Operação no Complexo do Alemão e da Penha” corre embaixo enquanto o helicóptero mói o céu. Repórter fala “desarticulação” como quem troca receita. Eu aumentei o volume até doer. Não consigo desligar. É como se desligar fosse trair quem ficou. Meu iPhone vibra na mesa.. G: “Fica tranquila, eu não vou morrer! Fica quieta. Nada de postar, nada de falar onde tá. Ninguém precisa saber de você.” Me dá vontade de xingar ele por escrito, mandar áudio berrando, subir pro Alemão de salto se for preciso. O sangue coça embaixo da pele. Mas eu escrevo baixinho, arranhando as letras: E: “Thiago do céu, o que é isso, amor?” A resposta vem rápido, seca, sem frufru: G: “Entraram pra matar todo mundo. Fecha a boca e me obedece.” Eu mordo o lábio. Primeira dama que se preze bate de frente, mas sabe a hora de baixar a cabeça. O homem tá na guerra. Eu sou a mulher dele e a minha guerra é não fazer merda agora. Começo a andar pelo quarto. Cinco passos até a cortina, cinco de volta até a cama, a sandália clicando no piso como relógio. A janela mostra um pedaço de mar que eu não tô vendo. Eu tô vendo a rua na minha cabeça: a laje onde eu dancei sábado, a escada onde eu sentei com as meninas rindo alto, o bar do seu Zé onde eu boto o garçom pra correr quando fala torto. Minha coroa (sogra) lá no miolo, oração na boca, mão tremendo. Meu homem no miolo do caos. A TV corta pra vídeo de presos enfileirados, mão pra trás, poeira até na alma. Outro corte: armas em cima de mesa, “material apreendido”. Outro: morador filmando do beco, grito de “fecha a janela!”, criança chorando fora de foco. — Filho da p**a… — sussurro pro helicóptero, pro caveirão, pro repórter. — Filho da p**a. Abro o segundo celular, o frio, aquele do trampo, sem nome, só número. Grupo das meninas tá pegando fogo: “tão por cima do IP”, “a Grota tá fechada”, “a mãe da Júlia perdeu sinal”. Eu fico com o polegar sobre o teclado, pronta pra mandar localização pra quem tá em aberto e lembro da mensagem dele: NADA DE POSTAR. Batem na porta e o meu corpo vira pedra e eu coloco logo a mão na arma, respiração presa. — Room service — voz de menina, tímida. — Pedido de água. — Não pedi nada. — respondo colada na porta. — Pode ir. Ouço os passos sumirem. Fico mais um minuto imóvel, escutando o silêncio até ele cansar. A TV me puxa de volta pro mundo. “Número de mortos passa de cem”, “detidos chegam a oitenta”. A mesma conta dita com prazer. Eu tremo, não é número, é nome, c****e. É gente que me deu oi ontem no beco. Eu penso em subir. Penso real. Largar tudo, chamar o motorista, meter o pé. A imagem que me corta essa vontade é a do Thiago fechando a mão no meu queixo horas atrás, olho no olho, sem raiva, só lei: — Se tu me ama, tu me obedece. Se tu aparecer hoje, tu me atrapalha. E se tu me atrapalhar, eu te tiro daqui pela orelha. Abro o closet dois cabides, um cofre, nada que me distraia. No espelho, a Penélope me olha: loura, tatuada, peito alto, sorriso de anúncio quando eu quero, olho armado quando eu não quero. Eu lembro das meninas do baile, do meu ciúme doente, do tanto de cabelo que eu já raspei por falta de respeito. Lembro do Thiago me segurando o punho: — Não precisa provar que tu é homem. Homem aqui sou eu. Eu cuspo um riso sem humor. — Homem… — repito pro quarto vazio. O celular vibra de novo. Eu vôo. G: “Tô respirando. Playboy comigo. Não abre chamada. Só texto. Se o sinal cair, espera.” E: “Tu tá ferido?” G: “Não.” E: “E tua mãe?” G: “Trancada.” E: “Se tu sumir, eu desço essa p***a de Rio nadando.” Dessa vez ele demora. Quando vem, é metade ferro, metade carinho: G: “Tu não vai perder eu, é uma promessa. Fica quieta e me espera.” Eu sento e choro sem barulho. Não o choro de novela, mas aquele que molha a garganta por dentro e deixa o olho seco. Limpo a cara, refaço o batom, alinho o colar. Primeira dama não desmonta. Abro a janela um palmo pra ouvir um barulho que não é o meu. Lá embaixo, um casal briga por nada, um garçom passa rindo, um carro toca funk baixo. O mundo segue como se o meu não tivesse parado. Eu fecho de novo. Volto pra TV. Agora é a vista aérea: o morro parece maquete, um jogo que alguém controla com controle remoto. Não controla. Quem controla o morro é quem sabe o nome da senhora que vende empada, o horário que o pequenininho sai do reforço, o buraco da laje que ninguém vê. Quem controla o morro é ele. E ele ainda tá vivo. Minha mão vai sozinha pro terço tatuado no pulso, presente da minha sogra. Eu sou bandida, mas reza é coisa que não tem CEP. Fecho os olhos e falo baixinho: — Guarda o meu homem. Abro de novo quando a TV muda pra um repórter na base, microfone empolgado. Ele fala “resultado expressivo” e eu quero quebrar a tela com a taça vazia. Resultado é quando eu peso ouro no pescoço. Quando a manicure acerta a curvatura do gel. Quando a roupa cai perfeita no corpo. Isso aí é ferida.
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