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1360 Palavras
Rodrigo narrando Quando eu acordei pra ir pro plantão, depois da noite em que a Maju mexeu onde não devia, eu já tava com o pescoço duro e a cabeça no lugar de sempre: serviço. Café preto, água gelada na cara, coturno amarrado até o osso. Cheguei no galpão do BOPE no escuro da madrugada e a conversa era só uma, seca, sem desenho: Alemão e Penha, cinco da manhã. Reunião rápida, voz de comando, mapa na parede, dedo marcando acesso, helicóptero no apoio. Eu fiquei quieto, só ouvindo. Favela eu entro todo dia mas o Alemão é outra coisa. O Alemão fala comigo num lugar que ninguém do meu time entende. Eu nasci ali. Cresci correndo entre os mesmos becos que hoje eu varro de farda e fuzil. A ordem veio reta: entrar e neutralizar o máximo possível. Prender o que der, derrubar o que não der. Sem romance, sem discurso. Trabalho. No ônibus preto, indo pro ponto de inserção, eu segurei o colete e deixei a mente descer ladeira: Maju chorando baixinho, celular vibrando, minha cara fechada fingindo calma. Aquilo me atravessou, mas não me quebrou. Eu desligo. Quando eu tô de preto, eu desligo. A rua não perdoa quem vem com a cabeça em casa. A sirene comeu o silêncio de leve. O rádio chamou. O sol nem tinha dado as caras quando a gente já tava com o pé no asfalto quente do entorno. Eu conheço aquele cheiro. Eu cresci com ele. É mistura de pão quente da padaria com óleo de motor, fumaça de escapamento e medo velho. A gente escalou a viela, deu o primeiro contorno, parou no respiro. Uma olhada, outra, o avanço. Quando a gente entrou de vez, o helicóptero rasgou o céu como se fosse abrir tampa. Lá de cima iluminou o corredor, e o caveirão ronronou ladeira como bicho de ferro faminto. A favela acordou gritando sem fazer barulho: porta batendo, cachorro latindo, panela caindo no chão. A primeira esquina mordeu de volta: estalo de tiro, faísca no muro, estuque caindo no meu ombro. Gritei contato! e o mundo parou de ter borda. Eu ando no automático no Alemão. Meu corpo lembra o que a cabeça não precisa mandar. Eu sei onde a viela morre, onde abre, qual laje tem buraco, qual sacada dá visão. Eu e a minha equipe fomos avançando limpo, seco, no passo, sem show. O primeiro caiu com o susto no olho ainda tentou virar, não deu tempo. O segundo veio pela lateral, achando que pegava a gente de bobeira. Dois algemados no chão, tremendo de raiva e poeira, cuspindo palavrão pro chão. Tinha canto que doía quando eu pisava. Ali foi onde eu chutei bola descalço e ralei o joelho. Ali foi onde eu beijei a primeira menina atrás da caixa d’água. Ali foi onde meu pai me deu um esporro daqueles que a gente nunca esquece. Só que hoje era outra coisa. Hoje a rua tava braba e eu tava brabo igual. A operação cresceu num estalo. Veio PRF por fora, Choque nos cortes, Core no miolo. O rádio empilhou palavra feia: resistência, troca, reforço. A cada volta de beco, mais um em fuga, mais uma arma jogada, mais uma boca tentando virar fumaça. Eu prendi gente que eu já vi criança correndo de pipa. Eu catei elemento com o pescoço duro me encarando como se me conhecesse e conhecia, de algum ônibus, de algum mercadinho, de algum Natal velho. Mas no meu ouvido só tinha uma voz: cumpre a missão. E teve hora que passou da conta. Tinha trecho tão sujo que o disparo era seco demais pra prender. Teve cara que veio pra cima com fome de me levar saiu do outro lado sem voz. Teve confronto feio, feio de não caber em relatório. Teve lâmina no corpo-a-corpo quando o corredor fechou e o cano não subia. Teve cena que eu não vou contar pra ninguém. Não porque eu tenho medo. Porque não precisa. Quem tava lá viu. Quem não tava fala sem saber. A cada avanço, o rádio cantava número. Detido. Apreendido. Área tomada. E na minha lembrança, cada número batia num canto da infância. Na pracinha onde eu jogava bola: um caído com a mão aberta. No mercadinho onde eu pedia fiado: dois algemados chorando pra câmera. Na laje onde eu soltei raia: um confronto que durou mais do que devia. Era como se o menino que eu fui tivesse sentado no meu ombro, mudo, vendo o homem que eu virei passar com a caveira bordada. A gente tomou viela, tomou laje, tomou corredor. Prendemos vários. Muita arma. Muita munição. Droga empilhada. Rádio confiscado. Em um ponto, o caveirão mordeu um muro e abriu caminho onde nem rua tinha. A favela tremeu. Tinha mãe pedindo pelo filho, tinha gente que não tinha nada a ver implorando “pelo amor de Deus”. Eu passei do lado com a cara que me deram pra usar nessas horas: pedra. E antes que venham dizer que é mentira: morreu muita gente, sim. Caiu gente armada e caiu quem escolheu ficar no meio da linha. Eu vi amontoado de corpo recolhido, vi fila de preso descendo com cabeça baixa, vi arma longa empilhada parecendo ferragem de ferro-velho. O número que correu depois mais de cem no chão, oitenta e tantos recolhidos bate com o que meu olho contou sem lápis. Não gosto, não desgosto. É o trabalho. Lá pras oito e pouco, a gente já tava fundo no morro. Eu pisei numa sombra conhecida e um flash me pegou por dentro: foi ali que meu pai falou que a gente ia embora. Foi do jeito torto que parece novela r**m briga de família, rolo que queimou nome de metade da rua, bala que sobrou, medo que faltou. Saí carregando minha mãe pela mão e jurando que eu voltava. Voltei, mas foi de preto. No fim da manhã, o sol começou a bater com maldade no colete. A gente já tinha limpo mais do que mapa pedia. Veio ordem de retração de bloco e manutenção de base. Eu sentei no degrau, bebi água quente, respirei poeira e olhei pro alto. O helicóptero fez círculo devagar, vigiando a própria vitória. Tinha repórter falando qualquer coisa pra câmera com a cara lavada de quem nunca sentiu a ladeira no pulmão. Tinha morador filmando escondido pra postar mais tarde e discutir na internet quem é monstro e quem é herói. Eu não sou nenhum dos dois. Eu sou resultado. Voltei pro ponto de partida com a equipe, preto sujo de branco, olho seco, ouvido zunindo. Entreguei o necessário, assinei o que tinha que assinar. A notícia espalhada no rádio da cidade repetia número como se fosse placar de futebol. Sessenta e quatro, oitenta e um, cento e dez cada veículo falava de um jeito. Eu não corrigi ninguém. Eu não discuto conta. Eu entrego o que o comando manda. Mandaram amarrar, esfaquear, matar e prender se der, foi feito ué. No banho frio do galpão, a água levou parte do pó, mas não levou a memória. O Alemão ficou em mim como tatuagem que a camiseta cobre. O menino que eu fui pegou a bola velha e sentou do meu lado na bancada. A Maju piscou na minha cabeça por meia fração de segundo o choro preso na garganta, o celular batendo dentro da sala. Eu fechei a torneira, vesti a camisa e a placa. No espelho, não tinha nada de bonito. Tinha trabalho feito. Tinha o peso de quem entra onde foi criança e sai de lá adulto de novo, toda vez. Tinha um silêncio que eu aprendi a usar pra não pirar: aquele que vem quando o barulho acaba, mas a cabeça ainda tá no tiroteio. Eu nasci no Alemão. Saí por causa de uma história torta que não precisa ser recontada aqui. Voltei do jeito que a vida me permitiu: fardado, armado, treinado. Eu conheço cada canto daquele morro, e ele me conhece. Hoje o recado foi dado. Amanhã, tem mais serviço. E quando perguntarem como foi, eu vou responder do único jeito honesto que eu conheço: Foi do jeito que tinha que ser.
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