6. Capitulo – Chorar as vezes faz bem

1887 Palavras
A sobremesa veio em forma de pequenos bolinhos de amêndoas com frutas vermelhas, servidos com chá de flores secas. A luz suave da lareira fazia dançar reflexos dourados nas paredes de madeira clara. Kiara respondia aos sorrisos com gestos graciosos, mas por dentro ainda tentava organizar os pensamentos. A forma como Ingrid se debruçava no colo de Nicolas, o carinho leve com que ele ajeitava o cachecol da menina, o modo como Elisabeth falava com ele como se fosse da família... tudo aquilo era real. Íntimo. Revelador. E ela, ali. Convidada para assistir. Ou fazer parte? Não, Kiara. Não se iluda. Mordeu o lábio inferior, discretamente. Ainda havia a lembrança da surpresa inicial, uma ponta de mágoa pelo não aviso — mas havia também um ponto cego perigoso: a admiração. O homem que ela pensava conhecer — duro, prático, estrategista — ali era alguém que ria com a sobrinha, que agradecia em norueguês, que sabia conduzir um jantar informal com uma ternura contida que a desestabilizava. Mas ela precisava sair. Precisava se lembrar do motivo pelo qual estava ali. — Com licença. Disse baixinho, quando a conversa entrou numa pausa natural. — Eu... preciso ir. Nicolas ergueu os olhos. Havia curiosidade neles. E algo mais — talvez cálculo. Talvez cuidado. — Tão cedo? Perguntou Elisabeth, franzindo a testa com doçura. — Mas você vai dormir aqui. Preparamos um quarto para você no andar de cima. Kiara parou. A xícara suspensa no ar, congelada por um instante. — Um... quarto? — Claro! Disse Elisabeth, sorrindo como quem oferece um favor óbvio. — Nicolas mencionou que seria uma noite longa, então pensei que o melhor seria já deixar tudo pronto. Está tudo arrumado. Vista para o lago. Você vai amar. Ela olhou para Nicolas. Ele apenas a observava, os olhos cravados nos dela. Sem se justificar. Sem sorrir. Apenas esperando o que ela faria com aquela informação. Kiara forçou um sorriso educado, mas por dentro o peito estava apertado. — Foi gentil da sua parte... Disse, voltando-se para Elisabeth. — Mas eu tenho um compromisso ainda, antes de encerrar a noite. — Alguma coisa importante? Nicolas perguntou, com a voz baixa, controlada. Mas ela ouviu o subtexto. Onde você vai, Kiara? Por quê agora? Ela hesitou apenas um segundo. Tempo suficiente para que a verdade surgisse, mas não o suficiente para que escapasse em palavras. — Um compromisso pessoal. Disse, com suavidade. — Preciso entregar algo. Ele assentiu devagar. E isso a desconcertou ainda mais. Não insistiu. Não interrogou. Apenas... aceitou. Como se soubesse que qualquer passo em falso a afastaria. Kiara agradeceu discretamente, despediu-se de Ingrid com um beijo na testa e aceitou o casaco que Nicolas lhe estendeu. Os dedos dele tocaram os seus de leve, um contato breve e fugaz, mas que acendeu uma centelha elétrica que ela não esperava. Por um instante, Kiara sentiu-se exposta — e, ao mesmo tempo, mais viva do que em muito tempo. Nicolas a olhava, não com ironia ou controle, mas com uma curiosidade quase doce. Como se, naquele olhar, estivesse um convite silencioso para algo que ela não sabia se queria aceitar — ou se tinha coragem. Ao sair pela porta e sentir o ar frio da noite contra o rosto, Kiara respirou fundo. Enquanto caminhava em direção à saída, Kiara percebeu o quão diferente aquela noite havia se tornado. Não só pelas revelações, pelas camadas inesperadas de Nicolas, mas pelo jeito como ele a olhava — como quem esperaria. ** Ela desceu do táxi com cuidado, sentindo a brisa salgada da praia acariciar a sua pele. A música que vinha da casa misturava-se ao som suave das ondas ao fundo. Era uma melodia leve, animada, uma daquelas canções de festa de fim de tarde, onde as taças tilintam e as risadas fluem com o vento. Havia balões brancos e dourados amarrados aos portões, pequenos arranjos florais pendurados nas laterais e, na entrada, uma placa discreta com letras cursivas douradas: "Parabéns, Henrique." Kiara parou por um instante, o coração se apertando no peito. Era o aniversário do pai. E ela não havia sido convidada. Sentiu um calor incômodo subir pelo pescoço, não de vergonha, mas de uma tristeza silenciosa que se acomodava sob a pele como um lembrete antigo. Seu pai sabia. Sabia que ela estava morando em São Paulo há quase quatro meses. Eles haviam trocado algumas mensagens esporádicas. Mas ele não mencionara a festa. Nenhuma linha, nenhum convite velado. Nada. E mesmo assim, ali estava ela. Seguiu pela lateral da casa, ignorando a entrada principal. Passou pelos fundos, onde o enorme jardim se abria generosamente até encontrar a areia clara da praia. O cenário era deslumbrante — mesas decoradas com velas, lanternas penduradas em fios de luz sobre os galhos das amendoeiras, almofadas espalhadas em círculos para pequenos grupos conversando ao pôr do sol. Tudo parecia... perfeito. Simples, mas cuidadosamente planejado. E então ela o viu. Seu pai, Henrique, sorria. Vestia uma camisa de linho clara, um copo de vinho na mão, o outro braço em torno da cintura de Suzana. Ela retribuía com um olhar apaixonado, e aquele tipo de carinho quase automático de quem dividia a vida. Suzana estava radiante, usando um vestido rosa pastel, as filhas dele com Suzana ao redor. Kiara não soube o que sentir. O coração acelerou, as mãos se fecharam devagar ao lado do corpo. Ali, naquela cena perfeita, ela era apenas uma lembrança antiga. Uma parte que havia sido arquivada, encaixotada com cuidado em um canto da memória de alguém que decidira seguir em frente — e deixar para trás tudo o que não se encaixava no novo retrato da vida. E, mesmo assim, ela ficou. Ali, parada, entre as sombras e o vento do mar, tentando decidir se o silêncio dizia mais do que qualquer palavra. Ela segurava o presente com as duas mãos, como se fosse frágil. Era uma caixa pequena, de madeira escura, envolta por uma fita azul-marinho. Escolhera com carinho — ela comprou um livro raro que sabia que ele adoraria — uma edição antiga de Neruda que ele citava nos velhos tempos. Mandou embrulhar com um laço discreto, azul-marinho. Colocou um cartão. Nada sentimental. "Para o homem que me ensinou a olhar para o mundo com curiosidade. Feliz aniversário, pai. Com carinho, Kiara." Agora, enquanto o vento leve bagunçava os fios soltos de seu cabelo e a música se confundia com a memória, seus olhos começaram a arder. Não chorava com facilidade. Não na frente dos outros. Mas ali, escondida entre as sombras do jardim que dava para o mar, com os risos ao longe e seu pai abraçando outra família, uma lágrima caiu — silenciosa, rápida, sincera. Era estranho como a ausência podia doer mais do que a distância. Ela não sabia se o que doía mais era não ter sido convidada ou perceber que, talvez, ele simplesmente não tivesse pensado nela. Não por maldade. Mas por hábito. Como quem se acostuma a viver sem uma parte — e nem percebe mais que ela falta. Por um segundo, pensou em ir embora. Iria voltar para a casa de praia onde havia um quarto oferecido pelos Nielsen, como Nicolas dissera, eles sairiam cedo pela manhã. Ela podia fingir que nem estivera ali. Mas seus pés não se mexiam. Ficou, imóvel, com o presente apertado no peito, tentando reunir coragem para decidir se daria aquele passo adiante… ou se recuaria mais uma vez. Foi quando sentiu uma mão em seu ombro. Ela se virou, surpresa — e ali estava ele. Nicolas. Aquela presença inconfundível, a silhueta desenhada pela luz tênue do jardim. O terno claro agora amassado pelo tempo, a gravata solta no colarinho, os olhos fixos nela, com uma expressão que não era pena, nem raiva, nem pressa. Apenas silêncio. Um silêncio que compreendia. Kiara abriu a boca para dizer qualquer coisa — uma desculpa, talvez, ou uma mentira elegante para justificar o nó em sua garganta — mas não conseguiu. Ele não esperou. Simplesmente a puxou com cuidado e a levantou nos braços, como se aquilo fosse natural. Como se sempre a tivesse carregado. Ela ficou imóvel por um segundo, mas logo acomodou a cabeça contra seu ombro. O calor do corpo dele era um contraste com a brisa fria da noite. O perfume familiar, discreto, invadiu seus sentidos — e ela sentiu os músculos relaxarem, como se, pela primeira vez em horas, estivesse em algum lugar seguro. Não disseram nada. Ele caminhou devagar, como quem conhece o peso do silêncio. Cruzou o jardim pelos fundos, contornou a lateral da casa. A festa ainda acontecia do outro lado. Mas para Kiara, o mundo agora era apenas o som do mar ao fundo, o batimento do coração dele tão perto, e o jeito como Nicolas a carregava — como se soubesse que, naquele instante, ela não precisava de palavras. Apenas de alguém que não a deixasse sozinha. E ele ficou. Nicolas a acomodou com delicadeza no banco de trás do carro. Fez tudo em silêncio, como se cada gesto já estivesse desenhado em sua memória. Com cuidado, ajeitou o próprio blazer sobre os ombros dela, protegendo-a do frio que começava a se instalar na noite. Ela permaneceu quieta, o presente ainda apertado entre os braços, os olhos fixos em um ponto qualquer à frente, sem encarar ninguém — mas sentia o perfume dele no tecido, a presença firme que não a deixava naufragar. Nicolas fechou a porta devagar e deu a volta no carro. O motorista, atento, virou-se para ele assim que o viu se aproximar. — Senhor? Nicolas não hesitou. — Para casa. Disse, num tom baixo, firme, como se “casa” tivesse acabado de mudar de endereço. O motorista assentiu e deu partida no carro. Lá dentro, o som do motor preencheu o espaço com um ruído constante e reconfortante. Kiara, envolta no casaco dele, não falou nada. Apenas afrouxou um pouco a respiração, como se a dor silenciosa que a havia consumido tivesse, por fim, encontrado algum alívio. E Nicolas, agora ao lado dela, não tentou invadir o silêncio. Apenas estendeu a mão, pousando-a suavemente sobre a dela. Sem pressa. Sem cobrança. Apenas presença. O carro seguia pela orla silenciosa, os faróis cortando a escuridão suave da noite. Kiara ainda olhava pela janela, o presente agora repousando ao lado, os dedos brincando com a costura do blazer dele em seu colo. A mente parecia longe, mas a pergunta surgiu com suavidade, carregada de um cansaço emocional que nem ela tentou disfarçar: — Você sabia? Nicolas manteve os olhos à frente por um instante. Depois deu de ombros, como quem não queria fazer drama, como se o que realmente importava estivesse ali, no banco ao lado. — Só me preocupei em não a deixar sozinha. Disse ele, a voz baixa, mas firme, como se dissesse uma verdade óbvia demais para ser escondida. Ela o olhou, os olhos ainda marejados, mas com um certo brilho de surpresa. Esperava talvez um julgamento, uma opinião, uma frase pronta. Mas Nicolas apenas estava ali — do jeito mais difícil de se encontrar: inteiro e presente. Ela encostou novamente a cabeça no encosto, o corpo se aproximando do dele, como se aquela pequena distância física finalmente pudesse ser vencida. E então, em silêncio, os dois voltaram para o lugar que mais parecia fazer sentido naquela noite.
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