- OLHARES QUE QUEIMAM

1076 Palavras
ISABELA O corredor do prédio de Finanças sempre teve aquele cheiro de papel velho misturado com café barato, mas hoje… parecia diferente. Talvez fosse eu. Talvez fosse essa sensação estranha que vinha crescendo desde ontem, desde o momento em que os olhos dele encontraram os meus como se reconhecessem algo — como se eu fosse um problema que ele não queria admitir que precisava enfrentar. Ou desejar. Apertei meus cadernos contra o peito, respirei fundo e empurrei a porta da sala de aula. A turma já estava quase toda lá, espalhada, rindo, conversando, vivendo vidas normais. E eu? Eu tentava parecer normal desde que voltei. Mas eu nunca mais fui normal depois do que aconteceu. Lucas levantou a mão discretamente, chamando minha atenção. Ele sempre fazia isso — como se tivesse medo de ser visto demais. Sorria pequeno, doce, quase infantil… tão diferente de tudo que meu passado tinha me ensinado sobre homens. — Sente aqui — ele disse, puxando a cadeira ao lado da dele. Sentei. Não porque eu precisava de companhia, mas porque era confortável. Seguro. Ele falava baixo, nunca invadia meu espaço, nunca me olhava como se pudesse me despir com um único movimento. Diferente de Arthur Moretti. A porta se abriu e o silêncio caiu como uma cortina pesada. Ele entrou. E eu senti. O terno escuro, o olhar frio, o passo firme… ele era a definição de controle. Só que, quando passou perto de mim, aquele controle vacilou — mínimo, quase imperceptível, mas eu vi. Eu sempre vejo. Ele largou alguns papéis sobre a mesa e anunciou: — Hoje vamos falar sobre ética profissional. E sobre o que acontece quando ela é colocada à prova. A voz dele vibrava na sala. Grave. Precisa. Ele não olhou para mim de imediato, mas eu sabia… sabia que ele estava ciente da minha presença. Meu corpo inteiro estava. Lucas falava alguma coisa ao meu lado, mas eu não ouvi. Eu estava ocupada demais percebendo a forma como o professor segurava a caneta. Como a mandíbula dele ficava tensa quando lia alguma anotação. Como os olhos dele finalmente, inevitavelmente, encontravam os meus. E quando encontraram… não desviaram. Frio. Sério. Proibido. Meu estômago virou. Ouvi meu próprio pulso pulsando no pescoço. Ele me olha como se eu fosse um risco. E eu olho de volta como se não tivesse medo de queimá-lo. — Srta. Duarte — ele chamou, sem desviar o olhar. — Quer compartilhar sua visão sobre responsabilidade moral em ambientes de conflito? A sala inteira virou para mim. Lucas sussurrou: — Se você quiser, eu respondo… Mas não. Essa versão nova de mim não foge. Ergui o queixo, cruzei as pernas com calma — e vi os olhos dele seguirem o movimento por um segundo. Um segundo que ele não devia ter permitido. — Minha visão? — respondi. — Ética só existe de verdade quando custa alguma coisa. Quando exige sacrifício. Quando obriga alguém a abrir mão da própria reputação para fazer o certo. Arthur ficou rígido. Foi sutil, mas foi real. Eu continuei: — Qualquer pessoa é ética quando nada está em jogo. O silêncio estava pesado, tenso, quase elétrico. Ele piscou uma vez, lento, como se minhas palavras o tivessem atingido. E tinham. Eu não sabia exatamente por quê ainda… Mas sabia que havia tocado em algo. Algo dele. — Interessante — ele murmurou. — Muito interessante, Srta. Duarte. Meu corpo inteiro estremeceu. E naquele instante, eu entendi: Ele era perigoso para mim. Mas eu também era perigosa para ele. Quando a aula terminou, fiquei arrumando minhas coisas devagar, sabendo que ele me observava, mesmo sem olhar diretamente. Eu senti. E eu gosto de sentir. Quando me levantei, Lucas caminhou ao meu lado até a porta, falando alguma coisa sobre a próxima prova, mas minha atenção não estava nele. Estava na presença dele. Do homem atrás da mesa. Do homem que não deveria me olhar como olhou. Passei pela porta e deixei escapar, baixa, proposital: — Boa noite, professor. Eu não precisava olhar para saber que ele escutou. E que aquilo mexeu com ele. ⸻ ARTHUR Eu deveria ter ignorado. Eu deveria ter fingido que não senti nada quando ela entrou na sala, que não percebi o perfume suave, quase desafiador, que não reparei na forma como ela observava tudo com atenção de quem já sabe que o mundo pode ser c***l. Mas eu reparei. Desde ontem. E eu não posso. Não depois do que aconteceu anos atrás. Depois da acusação falsa. Depois de ver minha carreira quase ser destruída por algo que eu não fiz. Nunca mais permiti que uma aluna me deixasse desequilibrado. Nunca mais permiti que meus olhos demorassem demais, que meus pensamentos desviassem do profissional. Até ela. Isabela Duarte. O nome ecoava na minha cabeça de um jeito que já era inaceitável. E quando ela cruzou as pernas daquele jeito… meu coração deu um salto que eu odiei sentir. Porque era errado. Porque era perigoso. Porque eu já sabia que ela era o tipo de mulher que poderia quebrar qualquer defesa que eu construí em anos. E ainda assim… eu não consegui desviar o olhar. Quando a chamei para responder, foi um teste. Eu queria ver se ela suportava pressão. Quase torci para que não. Mas ela suportou. Ela me enfrentou com o olhar firme, a voz calma, a postura de alguém que já perdeu demais para temer julgamento. E quando ela falou sobre ética custar algo… Meu peito travou. Ela não fazia ideia do quanto isso me atingia. Ou fazia? A aula terminou e eu esperei a sala esvaziar. Mas ela não saiu rápido. Não. Ela demorou de propósito, movendo-se devagar, como se soubesse que eu estava lutando comigo mesmo. Quando levantou e caminhou até a porta, olhou para mim de forma direta — desafiando minhas próprias regras — e disse: — Boa noite, professor. A maneira como ela sussurrou professor quase arrancou meu ar. E então se foi. Ela não deveria fazer isso comigo. Mas ela faz. Quando saí do prédio, minutos depois, encontrei-a descendo as escadas externas. A luz do poste iluminava o rosto dela, e por um instante — apenas um — desejei que ela não estivesse olhando para trás. Mas ela olhou. Como se soubesse exatamente onde eu estava. Como se pudesse sentir meus pensamentos. E então sorriu. Um sorriso curto. Perigoso. Convincente. Meu corpo inteiro reagiu. Aquela mulher vai ser o meu limite. E talvez… talvez eu já esteja disposto a cruzá-lo.
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