20

1538 Palavras
Na manhã seguinte, a casa de Bruna estava silenciosa como um túmulo. Ninguém falava sobre a noite anterior. O ataque de JH deixara marcas profundas: na pele de Sabrina, no orgulho de RR, e principalmente, na mente de Bruna. Ela acordou cedo. Não dormira mais que duas horas, o corpo latejando de tensão, o cérebro tentando encaixar peças de um quebra-cabeça que parecia não ter bordas. Sentou-se na varanda com um copo de café na mão e o celular na outra. A última mensagem de VM ainda brilhava na tela: “Está pronta pra ouvir minha proposta?” Ela hesitou por longos minutos antes de responder: “Fale.” A resposta não demorou: “Eu quero os documentos do RR. Os arquivos físicos. Tem um cofre no escritório dele, atrás da estante de vinhos. Me dê o que tem ali, e eu dou a você JH nas mãos. Vivos ou mortos, você escolhe.” Bruna sentiu o coração acelerar. O cofre. Ela sabia da existência dele, mas nunca se atrevera a perguntar o conteúdo. RR era paranoico com segurança, e qualquer passo em falso colocaria tudo a perder. “Por que eu confiaria em você?”, ela digitou. VM enviou outra mensagem: “Porque eu te conheço melhor do que ele. Porque eu não sou seu pai.” Ela apagou o celular. Não era hora. Não ainda. Mas a semente da dúvida já estava plantada. .... Durante o café da manhã, RR entrou na cozinha de passos pesados. Estava de óculos escuros, mesmo dentro de casa. Tinha os olhos marcados pela noite sem sono. — Como ela tá? — perguntou, referindo-se a Sabrina. — Dormiu. Ainda sente dor. — Alex respondeu, mantendo o tom neutro. RR bufou, serviu-se de café. — Já mandei caçarem cada canto daquele beco onde ele sumiu. O JH vai pagar por isso. Gabriel olhou para Bruna, desconfiado do seu silêncio. — E a gente? Vamos ter que viver escondidos agora? — Não. — RR respondeu. — A gente vai viver em cima. Como sempre. Eles que vão ter que se esconder. Bruna sentiu o gosto amargo da mentira presa na garganta. Queria gritar. Dizer que o mundo estava ruindo. Mas engoliu em seco. .... Naquela tarde, Lorenzo apareceu. Trouxe um milk-shake de morango e um olhar preocupado. — Você tá sumida — disse, entrando no quarto de Bruna sem pedir. — Eu tô tentando entender o que aconteceu. — Ela não disfarçou o cansaço. Lorenzo se sentou na beira da cama. — Eu também. Não consigo parar de pensar que... se você tivesse mais perto do RR ontem, talvez ele tivesse acertado você. Ela olhou para ele. — Talvez fosse mais fácil. — Não diz isso. — Ele segurou a mão dela. — Você tem ideia do que eu senti te vendo ali no meio? Bruna sorriu fraco. — Eu tenho ideia do que você sente. Mas não sei se você tem ideia do que eu sou. Ele não respondeu. Apenas apertou mais sua mão. .... Mais tarde, Bruna foi visitar Sabrina. A amiga estava deitada no sofá, coberta até o pescoço. Juliana, Sophie e Sophia também estavam lá, cuidando dela como se fosse de porcelana. — Achei que você fosse morrer — disse Sophia, brincando com uma almofada. — Ela é resistente — disse Sophie. — Mais forte que muito macho por aí. Bruna sorriu. — Como você tá de verdade? Sabrina respirou fundo. — Melhor... agora que ele morreu. Todos silenciaram. Juliana pegou na mão da amiga. — Eu ainda não acredito que o Reinaldo morreu naquela operação. Foi tão... rápido. Bruna se aproximou e beijou a testa de Sabrina. — Ninguém mais vai te machucar. Sabrina tentou sorrir, mas as lágrimas escaparam. — Eu só queria ser amada... pela minha mãe, sabe? — A gente te ama — disse Alex, surgindo atrás com uma bandeja de suco. Todos se entreolharam, surpresos. Até Bruna percebeu o rubor no rosto do irmão. — E a gente vai estar com você — completou Lorenzo. .... Naquela noite, Bruna não conseguiu dormir. Pegou o pen drive deixado por VM, ainda intacto, e o colocou no computador. Fotos, áudios, vídeos... conversas gravadas entre JH e nomes que ela já ouvira sussurrados por seu pai. Tudo conectado. Tudo real. Uma nova mensagem apareceu: “Me dá os arquivos. Eu juro que é só isso. Depois você nunca mais me vê.” Ela digitou: “Preciso pensar.” Apagou antes de enviar. Ela sabia que estava pisando em areia movediça. Mas já estava até o joelho. No escuro do quarto, fitando a luz da tela, Bruna soube que não havia mais volta. E que, em breve, teria que escolher de qual lado da guerra realmente estava. Bruna esperou até o silêncio da madrugada tomar conta da casa. O som do vento contra as janelas era a única companhia enquanto ela deslizava pelos corredores como uma sombra. O escritório de RR ficava no fim do corredor principal, atrás de uma porta de madeira maciça que sempre rangia ao abrir. Ela respirou fundo, passou a mão tremendo pela maçaneta e girou com cuidado. A luz fraca do abajur do canto foi suficiente para iluminar o ambiente. Ela caminhou até a estante de vinhos, disfarçada de decoração de luxo. Seus dedos tatearam a lateral da parede até encontrar o botão de pressão escondido. Um clique baixo se fez ouvir. A estante deslizou, revelando um cofre embutido. Ela o encarou por alguns segundos. O coração batia no peito como um tambor. Pensou em VM, nas promessas, nas ameaças. Pensou em JH, em Lorenzo, em Sabrina... em sua mãe. Digitou a combinação que vira RR usar uma vez, por acaso: a data de nascimento de Gabriel e Alex invertida. O cofre se abriu com um estalo seco. Pasta sobre pasta. Fotos. Pendrives. Anotações manuscritas. Provas. Corrupção. Negócios ilegais. Nomes de policiais, políticos, empresários. E no meio disso, uma pasta vermelha, com seu nome rabiscado na lateral. Ela não teve tempo de abri-la. A porta atrás dela se abriu de repente. — O que você tá fazendo? — Gabriel perguntou, a voz baixa, confusa, quase suplicante. Bruna congelou. O papel tremia em sua mão. Gabriel deu um passo à frente e viu o cofre aberto. — Você tá roubando o pai? — Não é isso... — ela tentou explicar, mas a voz falhou. — Então o quê? Vai me dizer que isso é normal? Que você veio só dar uma olhada? Bruna respirou fundo. — Eu tô tentando salvar a gente. Salvar você. Ele já sabe que você foi ameaçado. JH não parou. — E você acha que entregar esses documentos pra qualquer um vai resolver? — Gabriel soava ferido. — Bruna, a gente pode morrer por isso! Ela olhou para ele, olhos marejados. — A gente já tá morrendo. Um pouco por dia. Gabriel não respondeu. Apenas abaixou os olhos para a pasta em sua mão. — O que tem aí? — Meu nome. Meu passado. E, talvez, o motivo pelo qual tudo tá acontecendo agora. ..... No dia seguinte, Bruna evitou a casa. Saiu antes do café e andou até a casa de Sophia, onde Sophie e Juliana também estavam. — Você sumiu — disse Sophie, abraçando-a com força. — Tava precisando de ar. — Bruna sorriu, mas as olheiras contavam outra história. Ela passou a tarde entre as amigas, rindo de coisas bobas, tentando esquecer que o mundo estava ruindo. Quando Juliana foi buscar algo no quarto, Bruna a seguiu. — Tá tudo bem entre você e o Gabriel? — perguntou, sentando na beira da cama. Juliana hesitou. — Não sei. Às vezes acho que sim, às vezes que não. Ele me magoou muito... e eu não sei se consigo confiar de novo. — Você ainda gosta dele? Juliana mordeu o lábio inferior e assentiu. — Mas gostar não é suficiente quando a gente tem medo. Bruna segurou a mão dela. — Eu entendo mais do que gostaria. .... À noite, a casa de RR estava em clima de descontração. Churrasco, piscina, risadas. Tios, primos, amigos próximos. Até Guilherme apareceu, rindo alto com Alex e Lorenzo. Bruna, porém, se sentia deslocada. Mesmo com o som da música, o cheiro da carne e os goles de cerveja, seu pensamento estava longe. Em VM. Na pasta. No cofre. Ela se afastou e sentou-se à beira da piscina. Lorenzo veio até ela, trazendo uma lata de refrigerante. — Você tá distante — disse ele, se sentando ao lado. — Às vezes é difícil fingir que tá tudo bem. — Você não precisa fingir comigo. Ela olhou para ele. Queria tanto dizer tudo. Mas como confiar plenamente em alguém, quando o mundo que ela conhecia parecia uma mentira? — Obrigada por não desistir de mim — murmurou. Ele passou o braço por seus ombros. — Eu nunca desistiria. Quando todos foram embora, Bruna ficou acordada até tarde, esperando uma nova mensagem de VM. E ela veio: “JH se movimentou de novo. Está preparando algo. Te mando as provas em breve. Confie em mim, Bruna. Confie.” Ela fechou os olhos e suspirou. Sabia que estava cada vez mais fundo no abismo. Mas talvez, no fundo dele, encontrasse a verdade que tanto procurava.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR