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1366 Palavras
Monique Narrando Saí do mar com a alma em combustão. A água gelada não tinha conseguido apagar nada. Pelo contrário. Tinha feito tudo vir à tona com mais força. Cada mergulho, cada braçada, era como se o corpo tentasse apagar o que a mente não queria mais guardar. Mas ele ainda estava ali. Zangado. Latejando dentro da minha cabeça como uma ferida que não cicatriza. Me aproximei do barraquinha onde sempre paro. Pedi uma água de coco e me sentei no canto, de frente pro mar, de costas pro mundo. Só que eu nunca estou de costas de verdade. O olhar de uma oficial do BOPE nunca descansa. Meus olhos varrem tudo o tempo inteiro — famílias na areia, casal brigando na canga, grupo de amigos se filmando pra story. Tudo sob controle. Até que não estava mais. Senti. Primeiro como um arrepio na nuca, depois como uma pressão no peito. Quando ergui os olhos, ele tava lá. De boné enfiado no rosto, camisa clara, encostado quase atrás de um quiosque, à sombra de um guarda-sol vermelho, no ponto cego de qualquer olhar distraído. Mas o meu não era distraído. Nunca foi. E aquele olhar… era inconfundível. Fixo. Intenso. Animal. Zangado. Meu corpo congelou por um segundo. Um segundo longo o suficiente pra eu sentir o suor frio escorrer pelas costas, mesmo com o corpo ainda úmido da água salgada. A tensão me travou o maxilar. A garganta apertou. E, ao mesmo tempo, algo dentro de mim vibrou. Algo que eu odeio. Algo que me desafia. Algo que não deveria existir. Respirei fundo. Controle. Estratégia. Ele era um bandido. Um criminoso. Um dos donos do Dendê. Um dos homens que comanda o tráfico de armas e drogas no Rio de Janeiro. Um dos responsáveis pela morte do Reinaldo. E ainda assim… ele estava ali. Sozinho. Me olhando como se eu fosse dele. A arma estava na minha bolsa. Disfarçada, mas pronta. Só que eu não podia dar mole ali. Não na frente de um predador. Teria que ser inteligente. Precisa. Mortal. Terminei minha água de coco em silêncio. Me levantei com a calma de quem sabe que está sendo caçada. Encarei ele. De longe. Sem sorrir. Sem medo. Mas por dentro, o sangue fervia. Vesti meu short jeans com a mesma precisão de quem veste um colete. Peguei minha bolsa, entreguei o resto da água pro parceiro do quiosque e agradeci. Meu tom foi leve. Mas meus olhos estavam afiados. Saí da praia com passos firmes. Meu carro estava estacionado num ponto mais afastado, quase na sombra de uma moreta de pedra. Um lugar que eu sempre escolho pela visão estratégica que ele me dá do entorno. E quando comecei a me afastar da areia, percebi que ele vinha atrás. Calmo. Sem pressa. Mas determinado. Como quem já tinha traçado a rota e decidido o destino. Zangado, sozinho. Aquilo me intrigava. Um homem como ele… na pista? Sem segurança? Ou era arrogância, ou era armadilha. E de qualquer forma, ele tava achando que podia brincar com o perigo. Só que o perigo era eu. As pessoas ao redor diminuíam. O som do mar ficava mais distante, abafado pelo sangue pulsando no meu ouvido. Quando cheguei perto do carro, parei do lado da mala, fingindo procurar alguma coisa, mas o coração tava acelerado. Não de medo. Mas de raiva. De ódio. E de uma coisa ainda pior. Desejo. Um desejo sujo, desgraçado, indesejado — e real. Senti a presença dele se aproximar. Um passo. Dois. Três. O ar ficou mais denso. A atmosfera mudou. O sol parecia parar no céu. E no instante em que ele chegou perto demais, quando a sombra dele tocou a minha, eu virei de uma vez só. Puxei a arma da bolsa com precisão cirúrgica, destravei no movimento e apontei direto pra cara dele. O olhar dele nem se mexeu. Nem um passo pra trás. Nem um susto. Só aquele maldito olhar que me desmonta por dentro. — Tá fazendo o que atrás de mim, vagabundo? Minha voz saiu baixa, firme, cheia de veneno e sede de sangue. E mesmo assim… meu dedo hesitou. Ele me olhava como quem olha uma tempestade prestes a explodir. E eu… eu me odiava por estar tão perto. Por estar tão entregue à tensão daquele momento. Por lembrar do rosto dele no beco. Da respiração dele. Do silêncio que a gente dividiu com as armas apontadas um pro outro. Por lembrar do cheiro dele grudado em mim como uma maldição. — Não devia estar aqui — continuei, sem abaixar a arma. — Você não devia estar me seguindo. Você não devia estar vivo. Ele não respondeu. Só respirou. Profundo. Pesado. Com os olhos cravados nos meus. A boca dele se entreabriu. Mas ele não falou. E aquilo me deu ainda mais raiva. — Fala, p***a! — gritei, empurrando o cano contra o peito dele. — Fala alguma coisa! Me dá motivo! Me dá um maldito motivo pra te apagar aqui mesmo! E ele, com aquele olhar impassível, com aquela calma infernal, deu um passo a mais. Ficou tão perto que eu pude ver cada detalhe da pele dele. O suor no pescoço. O tremor discreto da respiração. A tensão nos ombros. E mesmo com a arma na frente, eu… senti. p***a, eu senti. O corpo dele como um imã. Como uma corrente. Como um segredo que eu nunca deveria descobrir. Meu dedo ainda tava no gatilho. Mas algo em mim… vacilou. De novo. Como no beco. Como naquela noite em que ele podia ter morrido e eu não deixei. A arma tremeu. O olhar dele não. E naquele silêncio mortal, naquela distância sufocante, só uma certeza martelava dentro de mim: Ele é o inimigo. Mas o que ele desperta em mim… é ainda mais perigoso. — Abaixa essa arma, Monique. A voz dele cortou o ar como lâmina. Baixa, rouca, certeira. Não tremia. Não suplicava. Era uma ordem embutida num pedido. E o pior? Parte de mim quis obedecer. — Se você quisesse mesmo me matar, se esse ódio que você carrega fosse maior que tudo… você tinha puxado o gatilho lá no Beco. Tinha me apagado no chão da minha favela. Tinha honrado o nome do BOPE. Mas você vacilou. Assim como eu. As palavras dele foram como estalos na minha pele. Doeram. Porque eram verdade. O dedo continuava no gatilho, mas a mira já apontava pro chão. Eu não conseguia manter o braço firme. A minha mente dizia uma coisa. O meu corpo… gritava outra. Ele deu um passo mais perto. E sem desviar o olhar, passou a mão por cima da minha arma. Devagar. Com calma. Como se desafiasse o meu instinto. Eu podia atirar. Eu devia atirar. Mas não fiz p***a nenhuma. O olhar dele cravou no meu como uma lança em brasa. Tinha fogo ali. Mas não era um fogo de guerra. Não era o ódio que eu esperava ver. Era desejo. Era fome. Era perigo do tipo que não se vê chegando. E isso… me assustou mais do que qualquer troca de tiro que eu já enfrentei. Porque eu devia odiar ele. Porque ele é o inimigo. Porque ele é responsável pela dor mais filha da p**a que eu já senti na vida. — O que você quer de mim, Zangado? — perguntei com a voz rasgada, a respiração descompassada. Ainda com a arma na mão. Mas fraca. Inútil. Ele não respondeu de imediato. Só me olhou. Aquele olhar que queima por dentro. Que arranca as defesas. Que me desmonta sem precisar tocar. E então ele disse: — Eu não sei. Mas tenho certeza que é o mesmo que você. E antes que eu pudesse reagir, antes que minha mente gritasse que aquilo era loucura, que era errado, que era insano… ele agarrou a minha nuca com força. Com brutalidade. Com a intensidade de quem carrega raiva e desejo no mesmo toque. E eu… não resisti. Meus olhos encontraram os dele de novo. E ali, no silêncio entre um suspiro e outro, no calor que começou a subir entre nossos corpos, ficou claro o que estava prestes a acontecer. Não era rendição. Era colisão. E ninguém ia sair ileso disso.
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